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Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes

Equipe Ludopédio 6 de outubro de 2010

No mês aniversário de 1 ano do site Ludopédio, temos o orgulho de ter como entrevistada Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes. Mestre e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, e atualmente socióloga do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fatima defendeu em 1992 a dissertação de mestrado “Futebol de fábrica em São Paulo”. Em 2004, publicou o livro “Com brasileiro, não há quem possa! Futebol e identidade nacional em José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues” (Ed.Unesp), com base em sua tese de doutorado.

Socióloga, Departamento do Patrimônio Histórico, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes é Socióloga do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.


Primeira parte

Em 1992, você defendeu a sua dissertação sobre o futebol de fábrica em São Paulo. Como foi a realização desta pesquisa numa época em que o futebol ocupava um espaço menor no mundo acadêmico? E podemos dizer que hoje esse “descaso” em relação ao tema já diminuiu?

Fazer minha pesquisa de mestrado, naquela época, foi um misto de desafio, coragem e, mais do que tudo, muita teimosia. Eu achava que podia mostrar para a academia que o futebol – minha paixão desde a adolescência – era um fenômeno social tão relevante quanto outros, capaz de revelar aspectos pouco explorados da constituição da sociedade paulistana. Na Sociologia, as áreas valorizadas eram a Sociologia do Trabalho e a Sociologia Econômica. Os estudos no campo da cultura começavam a ganhar espaço na academia e foi aí que encontrei o meu caminho. No início, minha intenção era abordar o desenvolvimento do futebol de várzea em São Paulo. Pensava no futebol como uma manifestação de cultura popular. Mas as dificuldades estavam por todos os lados, desde a escassa bibliografia, passando pela dificuldade na localização de acervos, até o “estranhamento” que eu provocava em todos, a começar de colegas e alguns professores. Uma colega me disse: “Futebol? Nossa! Que tema árido?” Essas reações me motivavam ainda mais a mostrar que o universo do futebol não era um tema insignificante ou irrelevante. O que havia, ainda, era um preconceito em relação ao futebol como fator de manipulação das massas. Muita gente ainda estava presa às imagens do General Médici e seu radinho de pilhas nos jogos da Seleção Brasileira, enquanto presos políticos eram torturados nos porões da Ditadura Militar. A ideia do “pão e circo” para desviar a atenção das pessoas das grandes decisões políticas, etc., etc.

Mas não seria justo dizer que só encontrei dificuldades pelo caminho. Em meio às adversidades, uma motivação especial e que serviu de inspiração na pesquisa sobre o futebol foram os estudos sobre o carnaval paulistano feitos pela Olga von Simson no Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) do Departamento de Sociologia, da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. Eu era assistente de pesquisa no CERU. Trabalhava com a Zeila Demartini numa pesquisa sobre educação. Mas todo mês havia um seminário interno, onde as equipes de trabalho expunham suas atividades e trocavam ideias. Nessas ocasiões, acompanhava a pesquisa que Olga fazia sobre as origens das principais escolas de samba paulistanas. A Olga era uma pesquisadora muita séria e competente, estudando um tema ligado às origens do carnaval paulistano. Se ela podia pesquisar o carnaval de forma tão séria, eu também poderia estudar o futebol. Tanto a Olga quanto a Zeila sempre me incentivaram muito a desenvolver o tema futebol. Também a Heloísa Fernandes, minha orientadora, teve um papel importante nesse processo. Ela me dizia que não entendia nada de futebol, mas me apoiava o tempo todo. Para ela, mais importante que o tema em si era a seriedade com que eu me dispunha a trabalhar.

A impressão que tenho, hoje, é a de que a receptividade dos estudos sobre futebol na universidade mudou completamente. Já perdi a conta do número de jovens estudantes que vi, interessados em começar um mestrado sobre futebol, falando do tema como algo cheio de charme, socialmente valorizado. Se é realmente valorizado ou não, a questão é que estudar futebol se tornou muito mais “natural”.


E como foi trabalhar com um tema tido como predominantemente masculino?

Bem, se pesquisar sobre futebol era algo incomum, imagine uma mulher fazendo isso! O estranhamento era inevitável. De certa forma, era mais uma dificuldade que eu tinha de superar, mas não via isso como uma tarefa difícil. Para mim, gostar de futebol era a coisa mais natural do mundo. Pensava: “Quando meu pai me entusiasmou a acompanhar os jogos e também a gostar de outras competições esportivas, ele não se preocupou com o fato de eu ser mulher, não é mesmo?” O que ele queria era me mostrar o quanto aquele universo era rico e apaixonante.

O futebol continua sendo um assunto predominantemente masculino, mas assim como as mulheres conquistaram mais espaços no mercado de trabalho, também avançaram muito nesse campo. Hoje, as pessoas já estão mais acostumadas ao futebol feminino, apesar do pouco ou nenhum incentivo que ele tem no Brasil. A jogadora Marta, por exemplo, é muito respeitada e reconhecida. Há várias mulheres jornalistas que trabalham dentro do campo de jogo. Há mulheres dirigentes de clubes e de ligas. Há muitas mulheres que se declaram fanáticas, que acompanham os jogos de seus times, que discutem de igual para igual com os homens.

No final dos anos 1980, quando comecei minha pesquisa, tudo era muito diferente. Ainda bem que as coisas mudaram. Acho que também faço parte dessa história.

Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, pesquisou sobre o futebol de várzea na cidade de São Paulo.
Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, pesquisou sobre o futebol de várzea na cidade de São Paulo.

Quais eram as suas principais referências nos estudos iniciais sobre a temática esportiva?

Os estudos eram poucos. Basicamente, as referências eram o livro O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho, com edições em 1945 e 1964, e um artigo de Anatol Rosenfeld, “O futebol no Brasil”, publicado na Revista Argumento em 1973. Outra fonte importante foram os trabalhos do jornalista Tomaz Mazzoni e uma coletânea de artigos publicada pela Federação Paulista de Futebol em 1955, 60 anos de futebol no Brasil. Também havia outra coletânea organizada pelos professores José Sebastião Witter e José Carlos Sebe, Futebol e Cultura, publicada pelo Arquivo do Estado em 1982, sem falar dos trabalhos de Roberto Da Matta, é claro. Quando defini o foco no futebol nas fábricas, tive acesso aos trabalhos de Simoni Guedes, Futebol Brasileiro: instituição zero, e de Ricardo Benzaquén de Araújo, Os gênios da pelota: um estudo do futebol como profissão, dissertações de mestrado em Antropologia defendidas no Museu Nacional.

A bibliografia escassa era uma das dificuldades na época. Na verdade, é a dificuldade encontrada sempre que se estuda um tema completamente novo. É como se você olhasse para trás e para os lados e encontrasse pouco apoio, pouca gente para dialogar com você, trocar ideias. Você começa praticamente do zero, sem referências ou termos de comparação. Quando o trabalho já estava mais adiantado, foi publicado o livro de Waldenyr Caldas, O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro.

Naquele período, ainda não tínhamos a internet e toda a facilidade de comunicação que ela trouxe. Descobrir outros pesquisadores que se dedicavam ao tema também era difícil. Era um verdadeiro trabalho de formiguinha. A gente ia juntando uma informação aqui, outra ali.


Quais foram os primeiros passos de sua pesquisa de mestrado?

Como já disse, comecei o mestrado pensando em pesquisar o futebol de várzea. Queria tratar do seu desenvolvimento em São Paulo durante a primeira metade do século XX, antes da grande expansão da cidade. Na época, o projeto de pesquisa era desenvolvido e definido enquanto se cumpria as disciplinas.

Logo no começo do mestrado, fui à Federação Paulista de Futebol em busca de antigos registros de clubes de várzea, clubes de futebol amador da cidade de São Paulo. As pessoas me ouviam, iam perguntar para outras pessoas e ninguém me dava uma resposta definitiva. De funcionário em funcionário, acabei chegando à sala do presidente da Federação, que na época era o Eduardo José Farah. Ele me encheu de perguntas, me observou e respondeu que o “arquivo morto” da instituição tinha sido doado para a campanha do papel do Hospital do Câncer. Em resumo, a Federação tinha jogado no lixo reciclável toda a história do futebol de várzea da cidade. Com essa possibilidade descartada, outro caminho seria recorrer a arquivos esparsos de clubes ainda em atividade e localizar potenciais entrevistados.

Enquanto isso, eu fazia o curso da Professora Beth Lobo, cujo tema era “Trabalho: dominação e resistência”. Precisava preparar um paper como trabalho de avaliação final e pensei juntar “trabalho” e “futebol”. Fui parar no acervo da extinta Eletropaulo, que, por sua vez, era herdeira da antiga Light & Power de São Paulo. Descobri todo um universo que eu desconhecia nos documentos da instituição e foi aí que mudei o projeto de pesquisa e comecei o trabalho com os clubes de futebol formados no interior das fábricas. A partir de então, fiz uma seleção de fábricas que mantiveram clubes, entrava em contato com a administração para ter acesso aos arquivos. Queria combinar os discursos dos industriais e dos trabalhadores, por isso recorri a documentos e a entrevistas. Aos poucos fui percebendo que meu tema de pesquisa se tornara socialmente mais palatável, pois se aproximara mais da Sociologia do Trabalho. Parecia ter ficado mais “sério”.


Quais razões a levaram a centrar a pesquisa no período entre as décadas de 1920 e 1950?

Quando defini o objeto de pesquisa e comecei o levantamento de dados, queria identificar a estrutura e o sistema de funcionamento dos clubes nos primeiros tempos do futebol nas fábricas. Percebi que os clubes começaram a se estruturar mais e melhor a partir dos anos 1920 e que, por volta dos anos 1950, a prática passou por transformações, tornando-se aparentemente menos atraente, tanto para os jogadores, quanto para os patrões. Na verdade, o recorte do período de estudo foi indicado pelos próprios dados da pesquisa.

Nos anos 20, o futebol já havia conquistado grande popularidade. O mesmo fenômeno chegava às fábricas. Havia muitos clubes e equipes formados entre colegas de trabalho. Uma de minhas preocupações era identificar o quanto o futebol poderia ter sido usado nas fábricas como um fator de dominação, por parte dos industriais, e de resistência, por parte dos operários. No período selecionado para o estudo, surgiram diversas associações de classe, depois os sindicatos e também a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Queria saber o quanto as questões trabalhistas, de lutas por direitos, teriam repercutido no universo do futebol de fábrica.

Posteriormente, nos anos 1950, nos clubes que estudei, o futebol operário enfrentou um período de desestímulo. Foi um ponto que, hoje, penso que poderia ter aprofundado mais. Nos anos 50, a industrialização ganhou um grande impulso na cidade. Aumentou o número de fábricas e, conseqüentemente, de empregados, de mercadorias disponíveis. Aumentou a concorrência entre as indústrias.  Algumas delas, que até então eram soberanas, começaram a sofrer com isso, como é o caso das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. As indústrias de caráter familiar, coincidentemente, os casos que estudei (Matarazzo e Votorantim), acabaram perdendo terreno na guerra pelo mercado. A Votorantim encontrou um caminho novo; se modernizou. A Matarazzo entrou numa crise que a levou à ruína. A disputa pelo mercado já não precisava tanto dos clubes de futebol como antes. Encontrava apoio na propaganda, nos meios de comunicação de massa: jornais, revistas, rádios e, em breve, a televisão também. Os industriais já não tinham o mesmo interesse em manter equipes com jogadores quase profissionais para representar bem os seus produtos nos torneios da categoria. O futebol de fábrica foi adquirindo novos contornos também.

Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, pesquisou sobre o futebol de várzea na cidade de São Paulo.
Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes publicou um livro sobre o futebol de várzea, baseado em sua tese de Doutorado.


Qual foi o papel do futebol de fábrica dentro da discussão sobre amadorismo e profissionalismo durante a década de 1930?

O futebol de fábrica foi um grande parceiro do futebol profissional. Os primeiros clubes ou equipes eram, pretensamente, amadores. Mas, à medida que os industriais começaram a se interessar por essa atividade de seus operários e empregados, passaram a incentivá-la, oferecendo vantagens de todos os tipos aos seus operários-jogadores: presentes, dias de folga, horário especial na fábrica para permitir os treinamentos e viagens. Alguns jogadores profissionais ou aspirantes a profissionais eram contratados e registrados como operários apenas para cumprirem com as exigências, as normas do campeonato. Normalmente, jogavam apenas um campeonato e iam embora em seguida. Também havia ex-profissionais, que haviam encerrado suas carreiras, que buscavam um emprego na fábrica graças às suas habilidades futebolísticas, já com vistas a um lugar no time. Clubes de fábrica recrutavam ex-profissionais, numa época em que os rendimentos ganhos durante a vida como profissional não garantiam a sobrevivência do jogador depois do encerramento da carreira. Em resumo, os clubes de fábricas revelavam jogadores para o futebol profissional e os acolhiam no fim da carreira. Para efeito de participação em ligas classistas e no Campeonato Amador da Federação Paulista de Futebol, a prática do futebol nas fábricas era considerada uma atividade amadora, mas, na realidade, era uma atividade semi-profissional.

Na Light, em especial, um clube de funcionários dos escritórios centrais insistiam na manutenção da atividade esportiva de forma totalmente amadora durante os anos 1930, quando a discussão em torno do profissionalismo no futebol pegava fogo. Foi o único caso que encontrei, totalmente a favor do amadorismo.


Confira a segunda-parte no dia 20 de outubro.

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