Por que “caso Aranha” não foi um marco no combate ao racismo no futebol

Equipe Ludopédio 17 de novembro de 2019

28 de agosto de 2014. O Grêmio recebeu o Santos para jogo de ida das oitavas de final da Copa do Brasil. As câmeras de televisão flagraram torcedores chamando Aranha, goleiro do time paulista, de “macaco”. O caso tomou grande proporção.

 

Aranha, então goleiro do Santos, denunciou racismo vindo da torcida do Grêmio durante partida pela Copa do Brasil de 2014. Foto: Reprodução.

“Não acho que foi um marco. Teve uma grande repercussão, em ano de Copa do Mundo no Brasil. Era preciso dar uma satisfação para a sociedade. Então, o Grêmio foi punido daquela forma”, avalia Marcelo Carvalho, pesquisador e mentor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Em primeira instância, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva chegou a eliminar o Grêmio da competição, além de aplicar multa e afastar dos estádios por 720 dias os torcedores que cometeram os atos racistas. Num segundo julgamento, o Pleno tirou a exclusão direta do time gaúcho, mas o puniu com a perda de três pontos. Como o Grêmio havia perdido a primeira partida por 2 a 0, acabou eliminado de qualquer forma. Na época, a sentença foi tida como referência para possíveis novos casos.

Quase dez anos antes, a primeira punição por racismo aplicada pelo STJD também gerou a mesma interpretação. Tinga, volante do Internacional, sempre que pegava na bola, ouvia a imitação de macaco vinda da torcida do Juventude. “Disseram que a decisão inédita seria exemplar, que dali pra frente, se voltasse a acontecer, os casos teriam punição rigorosa no Brasil. Isso foi em 2005. Depois, veio a sentença de 2014, basicamente com a mesma ideia de usar o caso para intimidar os torcedores. Mas, de lá pra cá, as punições foram sem perda de pontos”, informa Marcelo Carvalho.

“A Justiça Desportiva sempre esteve atenta a qualquer tipo de discriminação. Porém, o Tribunal tem muitas limitações no que diz respeito às provas e punições. Trata-se de crime, e como tal, a responsabilidade maior é da polícia, Ministério Público e Justiça Comum”, esclareceu Felipe Bevilacqua, procurador-geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva.

De fato, o racismo vai muito além do futebol, é cultural. “Devido à ideologia da democracia racial, encampada pelo Estado desde os anos 1930, a discriminação no Brasil é algo ‘cordial’, dissimulado, envergonhado, embora seja difuso. Muitos acham que somos todos ‘mestiços’, que racismo é o que existe nos Estados Unidos e na África do Sul, mas aqui é tão estrutural quanto nesses países. A diferença é que lá o flagrante conflito racial resultou em leis de ação afirmativa, com décadas de antecedência”, pondera Marcel Diego Tonini, doutor em História Social pela FFLCH-USP.

O STJD, em 2018, julgou 32 casos de racismo, com 15 absolvições e 17 punições por multa. Em 2019, denúncias julgadas procedentes também tiveram a aplicação de penas pecuniárias. “Paralelamente, o Tribunal sempre procura promover ações sociais nos jogos e com os atletas. Inclusive, com a doação de parte, ou totalidade, das multas aplicadas a instituições que cuidam do combate ao racismo”, informa o procurador-chefe Felipe Bevilacqua.

Os clubes brasileiros e federações receberam notificação, em agosto desse ano, a respeito do posicionamento da Justiça Desportiva em relação aos casos de discriminação. Como consequência, agremiações e entidades ligadas ao futebol mudaram a postura. Muitos clubes fazem campanha pela igualdade e condenam as atitudes daqueles que ainda insistem em comportamentos preconceituosos.

É o exemplo do Atlético-MG. O clube publicou nota de repúdio e baniu os torcedores flagrados insultando seguranças do Mineirão, na última rodada do Campeonato Brasileiro. Tais atitudes são levadas em consideração no Tribunal. “Não por uma norma legal, mas pelo contexto. Demonstrar que o clube definitivamente não compactua com aquilo é de muita valia. O mesmo ocorre com a violência e arremesso de objetos nos estádios”, informa o procurador-geral do STJD.

Mesmo aqueles que cometeram os atos condenáveis pedem desculpas e buscam isentar os clubes. O que chama a atenção é que o arrependimento vem sempre acompanhado com a negação do rótulo “racista”. “As pessoas não se assumem racistas. Casos assim são sempre ‘excepcionais’, ‘nunca’ fazem parte de uma prática costumeira. Essas são as justificativas”, analisa o historiador Marcel Diego Tonini.

“Diria mais: numa sociedade racista como a nossa, todos são racistas, incluindo pessoas como eu e você que lutamos contra isso. Pois fomos educados assim por anos. O racismo está em nossas mentes, em nosso inconsciente. Precisamos lutar contra nossos impulsos racistas, tal qual eles nos foram ensinados, entende? A negação do problema só mostra quão profundo ele é nas pessoas, na sociedade”.

Cabe a reflexão. 20 de novembro, próxima quarta-feira, é o Dia da Consciência Negra.

Por Ivana Negrão / blog Lei em Campo / UOL.

Publicado originalmente em: <https://leiemcampo.blogosfera.uol.com.br/2019/11/15/por-que-caso-aranha-nao-foi-foi-um-marco-no-combate-ao-racismo-no-futebol/>.

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