Visões do Bi

Depoimentos de jogadores da Seleção

 

Nota Explicativa

Esta série é parte integrante do projeto “Futebol, Memória e Patrimônio”, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2012, com o apoio da FAPESP. A pesquisa foi realizada em parceria pelo CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), equipamento público vinculado ao Museu do Futebol/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Nesta seção, serão apresentadas as edições de 6 entrevistas concedidas por atletas brasileiros que estiveram presentes na Copa do Mundo de 1962, no Chile, a sétima primeira edição do torneio organizado pela FIFA. São eles: Mengálvio, Jair da Costa, Coutinho, Amarildo, Jair Marinho e Altair. O propósito dos depoimentos, com base em sua história de vida, método caro à História Oral, foi rememorar as lembranças dos futebolistas acerca de sua participação na competição, de modo a destacar os preparativos para o Mundial, os jogos e a volta ao Brasil. O depoimento a seguir foi concedido no dia 3 de agosto de 2011, na sede da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

Entrevistadores: Carlos Eduardo Sarmento (FGV/CPDOC) e Bernardo Buarque de Hollanda (FGV/CPDOC); Transcrição: Maria Izabel Cruz Bittar; Edição: Pedro Zanquetta

AMARILDO-P
Amarildo. Ilustração: Xico.

 

Amarildo

Amarildo Tavares da Silveira nasceu em Campos dos Goytacazes, cidade no norte do estado do Rio de Janeiro, no dia 29 de julho de 1939. Em 1956, começou a carreira de jogador no Goytacaz Futebol Clube. Dois anos depois, ingressou no Flamengo, onde teve uma curta passagem antes de se transferir para o Botafogo. Tornou-se um dos maiores atacantes da história do Botafogo, atuou em 238 partidas e marcou 135 gols. Conquistou o bicampeonato estadual de 1961-1962, foi campeão brasileiro em 1962 e conquistou a Copa Intercontinental de Clubes da França de 1963. Foi convocado para a Seleção Brasileira na Copa do Chile. Reserva de Pelé, substituiu-o após a contusão deste na segunda partida do torneio. O cronista Nelson Rodrigues apelidou-o “O Possesso”, em razão de sua estreia decisiva contra a Espanha: marcou os dois gols e classificou a equipe para segunda fase da competição. Em 63, deixou o Botafogo e foi para o futebol italiano. Na Itália, passou pelo AC Milan, pelo Fiorentina e pela Roma. Retornou ao Brasil em 1973. Jogou no Vasco da Gama e conquistou o título brasileiro de 1974 pela equipe cruzmaltina. Encerrou a carreira aos 32 anos de idade. Foi treinador em diversos times na Itália e no Oriente Médio.

 

Depoimento

Você é de uma família de jogadores de futebol, Amarildo. Nunca pensou em seguir outra profissão?

Meu pai[1] entrou para a história no álbum dos campistas, sendo o primeiro jogador convocado para a seleção brasileira. Campos[2] foi um imenso celeiro de craques do futebol.

O seu pai jogava em qual time nessa época?

No Goytacaz. Era um ponta-esquerda talvez não tão bem-dotado fisicamente, mas muito rápido, veloz e tecnicamente bem formado. Foi o primeiro passo que a família deu no sentido de prosseguir no futebol: o exemplo do velho Amaro Silveira. Meu irmão mais velho se enamorou muito cedo e, quando teve propostas de jogar em times do Rio de Janeiro, não veio porque preferiu a vida mais tranquila de Campos e ficar com sua namorada – que foi por muito tempo sua esposa. Dos irmãos, somente eu e o Renato – que jogou no América, no Flamengo, no Vitória…–, tivemos a oportunidade de galgar um nível profissional mais elevado. Meu pai morreu em 1964. O velhinho ainda teve a satisfação de me ver campeão do mundo! Tem até uma fotografia, porque nós fomos à televisão juntos. Ele ficou muito orgulhoso!

Você tem outros irmãos?

Seis homens e quatro mulheres. Fui o mais afortunado: conquistei um sonho. Eu queria ser alguém, um jogador de qualidade, que fizesse alguma coisa útil para o futebol brasileiro. Realizei esse sonho pela minha batalha e tinha muita convicção dos meus recursos. Era um jogador irascível no campo e não gostava de perder. Só pensava na vitória e isso ajudou muito na minha carreira. Tive dificuldades, é claro, porque tendo um caráter como o meu, não é fácil. Principalmente sem um guia. Antes de galgar os muros europeus tive um grande aliado: o Sr. Paulo Amaral, que percebeu meu gênio e entendeu que, para ser domado, eu não precisava de força e sim de um pouco mais de compreensão. Ele me ajudou muito porque, aqui no Brasil, tive expulsões de todo o tipo. Não levava desaforo para casa.

Foi o seu pai quem te levou para o Goytacaz?

Não. A minha família já era Goytacaz. Jogar no Goytacaz era uma assinatura de família. Todos os meus irmãos jogaram lá.

Você jogava na rua e no campo?

Claro! Tinha a hora do treino e a hora do lazer. Naquele tempo livre, ou você estudava ou jogava bola. A gente jogava até de noite. Depois do jantar, jogava pelada, assim, descalço. Jogava futebol qualquer hora que tivesse um tempo. Campos é uma cidade de atletas, principalmente de jogadores de futebol. Muitos deles não foram aproveitados justamente pelo bom caráter, por não afrontarem uma situação. Tinham que trabalhar para ajudar a família. O meu caso também era esse, mas eu tinha dez irmãos… Como os outros concordavam, isso foi possível.

Quais eram seus grandes ídolos do futebol?

Ah, meu grande ídolo era o Zizinho – o Zizinho era como se fosse o Pelé de agora –, o Jair, o Ademir, o Danilo, Rubens, Dequinha. Eram todos ídolos. Porque quando nós somos de fora, de outra cidade, os ídolos não são apenas os jogadores do time que você torce… Não. Eram os que você ouvia falar pelo rádio. E ter a possibilidade de vê-los uma vez – porque não tínhamos muitas possibilidades –, era uma coisa que dava mais impulso a nossa vida… Dava mais força para chegar lá àqueles que tinham mais ambição, como eu. Isso me ajudou muito também. Além do desejo de ser um deles, essa força de vontade e a confiança em si mesmo. Você não se deixa abater. Por exemplo: A paulada que eu levei quando saí do Flamengo, sendo mandado embora, foi como uma etapa perdida na minha vida… Poxa! Eu não contava com isso. Eu não acreditei. Mas reagi e falei: – Eu sou mais eu! E fui servir no Exército, dormia no quartel. Quer dizer, eu não me abati com aquela coisa. Se fosse outro poderia ter essa reação: – Não. Vou voltar para casa, para a minha família… Eu joguei no time do quartel! Foi quando o Paulistinha me disse: – Eu vou falar com o Paulo Amaral e o João Saldanha para você treinar lá! Poxa, eu nem dormi! Fiquei esperando o outro dia para saber: – Como foi? – Ah, ele falou para você ir lá amanhã. Aí eu fui, treinei e já fiz gol. Quer dizer, foi um sucesso. Para mim era uma final de Copa do Mundo. Veja como são as coisas: Muitas vezes basta um simples acontecimento para te botar fora do baralho. Se você não tiver força, perseverança, confiança em você mesmo, pode se perder. Então, futebol é isso também. Você não pode se abater por uma coisa ou duas. Ninguém te ajuda mais do que você mesmo. Dá para receber ajuda de quem tem maior experiência, para o teu comportamento e tal. Aí você aceita, mas não pode esperar que os outros venham te empurrar… Não. Você precisa ter confiança em você, no seu potencial e naquilo que realmente deseja alcançar.

O que sua mãe achava do filho jogar futebol? Outra coisa: você tem lembranças da Copa de 1950?

Ah, claro que eu tenho! Lembrança de rádio, porque era impossível viajar para o Rio naquela época. Eu tinha 11 anos. Viajar para ver um jogo no Maracanã seria impossível. Hoje, por exemplo, tem garotinho de três meses no Maracanã. Têm garotos de 11 anos que já viram o Maracanã nem sei quantas vezes. A minha mãe não colocava nenhuma barreira para o que nós queríamos fazer: ou estudar ou ser jogador de futebol. Mas estudar era o principal. – Você quer jogar? Mas primeiro vai estudar. Quando eu tinha mais ou menos 11 anos, tinha asma – bronquite asmática –, e saía mesmo assim para jogar. Chovia, eu estava jogando. De noite, aquela tosse, tal e coisa, e a minha mãe: – Eu falei para você! Ia lá e me trancava no quarto: – Você não vai sair hoje, não! Sabe o que eu fazia? Eu tinha uma coisa para abrir a janela, daí abria a janela, encostava de novo e saía para jogar. E voltava…

Todo molhado!

Não. Eu levava uma toalha e deixava a minha roupa dentro do quarto. E chuva com bronquite asmática… É a inimiga número um, não é? Eu fazia até isso para jogar. A bola era o meu travesseiro. Ia dormir com a bola. Quem tocasse naquela bola ali estava morto! Para você ver a minha fome de bola, a minha fixação em jogar, em ser jogador de futebol. Era uma coisa terrível.

Você estudou até qual série?

Primeiro ano do clássico. Eu já tinha até uma profissão. O meu irmão era lanterneiro e eu ajudava na lanternagem. Eu fazia alguma coisa – dos 13, 14 anos até os 16 –, para ganhar a minha graninha, ir ao cinema e me sentir um pouco independente. Mas a minha profissão ideal era ser alfaiate.  Eu gostava muito de ver fazerem um terno. Então, tinha um colégio no qual era possível escolher a sua profissão: lanterneiro, pedreiro, tudo. Eu escolhi ser alfaiate. Já estava encaminhado. Até hoje, por exemplo, quando cai um botão, eu costuro tranquilamente. Se tem um buraquinho assim, vou lá com a agulha e arrumo. Quer dizer, eu tinha habilidade nos dedos. São coisas que eu me recordo e realmente me dão prazer. O futebol era o top, mas tinha também umas reservazinhas. Se não desse, já estava encaminhado.

Temos muitos relatos sobre o sofrimento da população no Rio de Janeiro com a final de 1950. Em Campos também foi uma comoção geral?

Ah, foi. Campos é uma cidade realmente única. Nos jogos da seleção, todos se abraçavam e era um time só. A cidade ficou muda por muito tempo, todo mundo cabisbaixo… A gente só olhava um para a cara do outro…

Como é que o Zizinho não fez o gol, não é?

E o Barbosa? Coitado do Barbosa. Poxa – Eu fiz um gol contra a Tchecoslováquia que o Schroiff está até hoje tentando entender como é que foi –, mas por quê? O Ghiggia fez uma coisa que nenhum daqueles 150 ou 200 mil espectadores no Maracanã viu. Porque naquela bola na linha de fundo, normalmente, os pontas cruzam. Noventa e nove por cento dos pontas cruzam. Então, a posição do Barbosa não estava errada. Mas ele tomou uma posição de cruzamento, para se antecipar, e o Ghiggia mudou e chutou no primeiro pau, no contrapé. Não dá. Naquele tempo os goleiros não tinham treinamento. Era chutar em gol, chutar em gol, chutar em gol, e acabou. Então ele não tinha reflexo para prever que a bola podia ser chutada de outra maneira. No gol que eu fiz contra a Tchecoslováquia: O Paulo Amaral fez um estudo vendo um jogo comigo. Eu estava na tribuna e tinha México e Tchecoslováquia. Todas as vezes que os laterais mexicanos iam à linha de fundo para cruzar, o Schroiff saía e cortava todas as trajetórias. O Paulo me conhecia. Eu já tinha feito muito gol assim no Botafogo, pegando o goleiro no contrapé. Aí ele falou: – Amarildo, você viu o que o goleiro da Tchecoslováquia faz todas as vezes que os caras vão para a linha de fundo? Aquele negócio ficou gravado. E calhou: O Zagallo bateu a lateral para mim, caiu, e eu já sabia: – Eu vou para cima desses caras e vamos ver no que vai dar! Fui para cima do zagueiro, driblei e joguei a bola na linha de fundo. Quando eu ia chutar, o goleiro já ia saindo. Os meus pés estavam virados diretamente para a linha de fundo e o meu corpo ficou reto para dentro do campo. Então, para dar aquele efeito, eu tinha que fazer de três dedos[3]. Então eu bati. Quer dizer: meu corpo está assim, o Schroiff está saindo e a bola está fazendo uma curva lá. Eu fui cruzar? Não. Eu fui fazer aquilo que vocês viram. Eu fui chutar em gol. Fui preparado para aquilo. Porque o meu corpo já estava pronto para chutar de três dedos. Se eu estivesse em outra posição, a bola não ia fazer aquela curva.

Então você se vingou pelo Barbosa em 1962?

É justamente isso. Quer dizer, desculpo o Barbosa. Poxa, aquele cara fez uma coisa… O que eu fiz em 1962, ele já tinha feito em 1950. Eu praticamente copiei dele. Mas são coisas gravadas. Não dá para esquecer.

Como foi a sua transferência do Goytacaz para o Flamengo?

Em Campos, tinha um jogador, o Paulinho. Era um ponta-direita muito dotado, jogador muito técnico, rápido. Ele me viu jogar e resolveu falar com meus pais. Perguntou se eles me deixariam fazer um teste no Flamengo. Aí meus pais disseram: – Vamos pensar, vamos pensar… Mas antes de acabarem as férias o meu pai foi lá falar com ele: – Está bom. Ele vai com você. Mas cuidado! Toma conta dele! – Não, não se preocupa, não. Então, na verdade, o Paulinho estava sempre comigo lá na Gávea, na concentração, porque ele dormia ali também.

Foi a primeira vez que você foi ao Rio?

Foi. Mas o meu negócio não era conhecer o Rio, era conhecer a Gávea. Era a bola! Então eu passei dois anos maravilhosos, com todas aquelas feras ao meu lado: Garcia, Tomires, Pavão, Dequinha, Jordan… E aquela turma toda: Zagallo, Esquerdinha, o Henrique. Poxa, vou te contar! Tudo aquilo ali, assim, na minha cara. Nós jantávamos antes e eles jantavam depois. Daí, quando eu terminava o meu jantar, ia lá só para ficar junto deles. Ficava dando a volta na mesa olhando eles comerem… Eles falavam: – Por que você está aqui, garoto? Quer comer de novo? Está com fome? Eu respondia: – Não, não. Só estou… – Você não comeu, rapaz? Está aqui fazendo o quê? Eu queria era ficar atrás deles!

E você assistia ao treino deles?

Claro! O Fleitas[4] não me deixava treinar… Ele sempre apitava foul contra mim. Mas eu sempre estava lá no campo. Fiquei dois anos no Flamengo. A minha única decepção foi não ter jogado. Porque o meu time de coração, realmente, era o Flamengo. E depois se transformou no contrário… Fui para o Botafogo, a estrela solitária que guiou a minha carreira no futebol, me deu a oportunidade de ser titular aos 18 anos, de jogar com Garrincha, Didi, Quarentinha, Zagallo, Nilton Santos, Manga, Paulistinha… O Paulistinha foi o meu manager naquele período. Ele me orientou, falou com o Paulo Amaral e com o Sr. João Saldanha para eu treinar lá. Devo muito a ele também. E devo ao Botafogo o meu ingresso na seleção brasileira, junto com o Garrincha, o Didi e toda aquela turma, meus parceiros no Botafogo: campeão do mundo, campeão brasileiro, bicampeão carioca. Tudo aquilo que eu não tive no Flamengo… Mas se eu não tivesse vindo para o Flamengo, eu não teria ido para o Botafogo.

Você falou, antes de iniciarmos a gravação, da dificuldade na sua relação com o Fleitas Solich. Qual foi essa dificuldade?

Eu era terrível. O meu gênio… Eu era um driblômano. Achava o drible o melhor meio para conseguir o sobrevento sobre o meu adversário. Eu fazia e dava certo. Só que, em vez de driblar apenas uma vez, eu queria driblar duas, três… Um problema mais psicológico no meu confronto. Se eu tivesse um guia como Paulo Amaral para me orientar: – Em vez de fazer isso duas vezes, faz uma; em vez de fazer três, faz duas. Procura simplificar. Procura limitar mais a tua… Quer dizer, alguém que me ajudasse a compreender que futebol não é só drible. Futebol é objetividade… Eu estava em idade de aprendizagem, tinha só 16 anos. Faltou um pouco aquilo.

O Fleitas era muito duro?

Muito duro. Mas era um grande treinador. Ele pôs o Henrique, o Dida, o Babá, o Duca, o Paulinho, toda essa garotada no primeiro time. Botou mesmo. Não tinha esse negócio de cobra, não. Quer dizer, eu não era contra ele, mas não tinha ainda capacidade para compreender o que ele queria. Para mim, ele não queria que eu jogasse. O meu pensamento era: – Por que não quer que eu drible?! O drible era, para mim, a coisa mais importante no futebol. Coitado, não era culpa dele. Você vê, era destino. As estradas precisavam se dividir. Mas eu senti. Eu senti porque o Flamengo era o time dos meus sonhos. Depois se transformou no meu ponto de… Não de ódio, mais de vingança. Nem sei se é vingança… Eu sempre queria mais quando jogava contra o Flamengo. Tinha que jogar bem de qualquer jeito, não podia falhar.

Todos os flamenguistas tinham cara de Fleitas Solich. [risos]

Coitado. Era um grande treinador, realmente… O período de ouro do Flamengo foi com ele. Ele vivia para o futebol. Vivia para o Flamengo: Morava na concentração do time. Era um homenzarrão de quase dois metros. E tinha um sapato vindo lá da Argentina, um sapato que não fazia barulho nenhum. Quando ele veio atrás de mim…

O episódio do cigarro?

O negócio do cigarro. Poxa! Eu tomei um susto. – O senhor apareceu de onde?!

E não era você quem estava fumando?

Não. Era o Décio Crespo. Eu encontrei com ele quando estive em Campos e ainda falei: – Poxa, o cigarro era teu… – Ah, você foi legal, você não me entregou! Eu não falei que o cigarro era do Décio Crespo para não prejudicá-lo, mas até hoje quando nos encontramos ele lembra: – Poxa, você foi legal, foi um amigão! Eu já respondi: – Ah, é? Agora, não é? Você também podia ter sido meu amigão e dito: ‘não, Sr. Fleitas, o cigarro era meu’. E ele riu pra caramba. São coisas que acontecem na vida… Foi uma coisa ruim, mas que se transformou em outra coisa melhor para mim. Quer dizer, a gente não pode se lamentar. Tem que esperar as coisas acontecerem para depois saber se foram para o bem ou para o mal.

E esse primeiro contrato com o Botafogo oferecia valores muito acima do que você sonhava um dia receber?

Você sabe, nunca pensei em dinheiro, rapaz! Nunca pensei em quanto ia ganhar… No Flamengo, ganhava 400 cruzeiros por mês, que eu mandava para a minha casa em Campos. No Botafogo, uns 600 cruzeiros. Minha transferência do Flamengo para o Botafogo foi de 1.000 cruzeiros.

O Fleitas te dispensou, mas você permaneceu preso pelo contrato?

Sim. O Botafogo quis saber o que tinha acontecido, então, eu falei mesmo: – Foi por causa do cigarro. O Fleitas falou assim: – O Amarildo era irascível e não sei mais o quê, muito malcriado. E depois, fumava! Aí o pessoal do Botafogo duvidou: – Mas foi só por isso mesmo? Deve ter alguma coisa embaixo disso aí, alguma coisa mais grave… Mas eles foram lá saber a verdade e confirmaram.

Como foi jogar com veteranos como Garrincha, Nilton Santos, Didi? Existia alguma resistência por parte deles na relação com um jogador novo, cheio de gás e que, segundo o Paulo Amaral, estava pronto para jogar, como você? Eles colocavam algum limite? 

Poxa! Veja como são as coisas: Para a minha idade e com o meu físico, eu era acima da média… Não sentia nenhuma inferioridade em relação a ninguém. Tinha muito respeito, admiração, orgulho… Mas não me sentia inferior perante esses grandes jogadores. E aproveitava essa facilidade para me inserir naquele grupo sem nenhum complexo. O grupo me adorou justamente por isso, pela minha raça, minha maneira de jogar, de me comportar, pelo meu jeito de ser, tanto no campo quanto fora dele. Eles me viam muito profissional, muito consciente da minha profissão. Viam que eu queria ganhar. Era um vencedor. Então, isso me ajudou muito. Eles gostavam demais de mim. O Nilton Santos… Ah, o Garrincha, nem se fala! O próprio Zagallo. Nós nos entendíamos muito bem dentro do campo, bastava olhar um para o outro. O Didi, o Quarenta… Não tive nenhum problema com esses jogadores. Eu respeitava muito eles, como se fossem irmãos mais velhos. Respeitava o que falavam. Muitas vezes eles me controlavam em campo: – Garoto, vamos controlar aí, senão vai levar uns cascudos. Se você fizer besteira, a gente vai ficar com dez jogadores e vai piorar muito!  E então eu já abria a cabeça. Eles diziam: – Vamos acalmar aí os nervos. Se ele ficar cuspindo na tua cara, você vira e vai embora. Não adianta… Se ele te cospe e você dá um soco na cara dele, como é que vai ficar? Aí já começaram a me catequizar. Tanto é verdade que, contra a Espanha, poxa… Os espanhóis são fogo!

Na Copa de 1962, não é?

É. Eles são fogo! Cospem na cara, metem a mão aonde não tem que meter… Mastiguei espinho pra caramba, mas consegui. Só porque eles me orientavam. O Paulo Amaral também foi outro que falou: – Você pensa que homem só é homem quando um cara te dá um soco e você devolve três? Não. Homem é quando você leva um soco e mastiga, mastiga essa palha aí, e espera chegar à ocasião. Então, não adianta você dar dois socos e o seu time se prejudicar… Ele vai rir na tua cara depois! E é mesmo. Então, isso ficou na minha cabeça. Cada dia uma coisinha, entendeu? Fui aprendendo, me catequizando… Tanto é verdade que lá na Itália, também levei expulsão pra caramba, mas já foi menos, porque eu já tinha atrás de mim uma escola. Isso me ajudou muito.

Em 1961 você foi convocado pela primeira vez para a seleção brasileira. O que representava para um jogador ser convocado naquele momento?

Ah, poxa vida! Ser convocado para a seleção é a glória da carreira de um jogador de futebol. Eu já estava esperando por isso desde 1958… Quer dizer, esperei praticamente três anos. Mas naquela época era duro. Cada time tinha um celeiro! Eram 11 craques. Não era brincadeira entrar naquela turma, não. Se entrasse, era porque merecia mesmo. Eram todos do resto de 1958, jogadores que foram campeões do mundo… E também tinha os jogadores jovens, em ascensão, que estavam aparecendo naquele grupo. Para vencer a batalha e encontrar lugar entre os 22, era duro. Era um troço, uma guerra. Você tinha que estar na ponta dos cascos. Manter um período bom. Não de apenas um mês ou dois, mas um período de dois ou três anos. Subir é fácil, o difícil é permanecer. Então, de 1958 a 1961, foram três anos de luta para entrar no rol dos prováveis 22. Eram convocados 40 e não sei quantos… Era duro ter certeza absoluta de quem seriam esses 22.

Você se lembra de como recebeu a notícia da convocação?

A gente sempre recebia a notícia em grupo. O grupo já estava praticamente formado. Faltavam aqueles quatro, cinco ou seis, mas, praticamente, era a mesma turma de 1958 e mais alguns novos, tipo eu, o Jair da Costa, o Dorval – titular no Santos, mas que lá foi reserva do Jair da Costa, que depois veio para o Milan –, o Coutinho, centroavante, eu, o Quarenta, o Tupanzinho… Todos na ponta dos cascos, só esperando uma brecha. Cada um precisava se sobressair com a sua capacidade. Eu tinha a vantagem de jogar já há três anos com o Zagallo, com o Garrincha, Didi, Quarentinha, Nilton Santos… Formamos um grupo praticamente do Santos e do Botafogo. E isso também deu uma mão, porque não precisávamos mudar os esquemas. Entre eu, o Vavá, o Coutinho ou o Quarenta, não modificava nada.

Antes da Copa de 1962, você tinha disputado algum outro torneio pela seleção brasileira?

Disputamos a Copa Roca.  Ganhamos a Copa Roca, com a seleção. A O’Higgins. Com o Chile e Paraguai…

Era difícil jogar com o Paraguai?

Poxa! Com o Paraguai e o Uruguai era osso duro. Tinha mais rivalidade do que agora. Era muito mais duro… Na Copa Roca, eu me recordo do único jogo que joguei com o Pelé. Ganhamos da Argentina de cinco a dois: Ele fez três gols e eu fiz dois. O meu sonho era jogar com ele. Eu não queria secar ninguém, não, mas poxa! Com o crioulo ali ia ser… Ele era acostumado a jogar com o Coutinho, mas eu tinha a certeza de que ia dar certo. Tanto é verdade que, no único jogo em que jogamos juntos, ele fez três e eu fiz dois gols.

O Aymoré Moreira já era o técnico?

Era. Eu acho que fiz três e ele fez dois… Agora eu não me recordo bem. Estou na dúvida! Vejam se vocês descobrem isso[5].

E depois você substituiu o Pelé.

O Pelé, em 1962, jogou contra o México e a Tchecoslováquia. Mas no jogo contra a Tchecoslováquia ele se machucou. Aí, no terceiro jogo era Espanha! Ali era bola ou búrica, ou nós ou a Espanha.

Como você soube que ia substituir o Pelé?

Ah, a coisa veio normalmente. O Aymoré Moreira nem pensou… Os substitutos eram os que estavam ali. Era assim.

A contusão do Pelé gerou, não somente para os torcedores, mas para toda a crônica esportiva, a sensação de que o jogo estava perdido. Como foi entrar e substituir o Pelé, já considerado o rei do futebol, em plena Copa do Mundo?

Vou te dizer a verdade. Talvez tenha sido essa a minha força.  Como já falei, não me sentia inferior a ninguém. Nem superior, nem inferior. Tinha muita confiança no meu futebol. Os treinadores te estudam, te veem nos treinamentos, o teu comportamento no campo… Como você joga, como não joga… Isso pesou muito. Porque, tinham facções ali dentro que eram mais para o Coutinho do que para mim. Mas foi uma luta perdida no início, porque eram apenas dois ou três. O resto era todo ao meu favor, porque sabiam como eu era, como o jogo era. Eu estava aprendendo a substituição do Pelé como se não fosse nada. Quando o Aymoré Moreira disse: – Olha, você vai jogar –, eu estava tranquilo. Eu falei: – Opa! – Até fiquei contente. E joguei como se estivesse no Botafogo.

E você foi jogar com a Espanha, o jogo mais difícil!

O jogo mais difícil… Ou nós ou eles. Eu tinha essa vantagem, não tremia. Sabe quando eu tremi? No final, contra a Tchecoslováquia. Quando o Mauro estava pegando a taça da Copa. Daí entrou um flash. Eu pensei: – Poxa vida, rapaz! Se nós não ganhássemos essa Copa, se perdêssemos o jogo contra a Espanha, o que seria de mim? Onde é que eu estaria agora?! É verdade… Imagine, se eu fracassasse naquele jogo, quem pagaria por isso?

Amarildo, que não correspondeu. Seria isso.

O peso era todo sobre mim. Minha responsabilidade foi enorme. Eu só me dei conta depois. E agora digo: Os méritos são meus. Só eu poderia perder, ninguém mais.

Voltando ao jogo da Espanha, o Brasil entrou em campo e levou uma saraivada no primeiro tempo.

É. Nós podíamos ter perdido o jogo, porque começamos de forma completamente diferente dos jogos passados.

Alguns jornalistas dizem que o Didi estava travado, por causa do problema com o Di Stéfano[6] e o Real Madrid. Confere?

Eu acho que não. O negócio é o seguinte: O Gento[7] desestruturou todo o nosso sistema. Por quê? Porque ele não tinha que ter o espaço que teve do meio-campo para trás. Precisávamos ter alguém intermediário, que combatesse quando ele recebia a bola, e para cobrir as costas do Djalma Santos… Eles tinham um drible longo. Então, a nossa defesa ficava aqui e o Gento começou a ter metade do campo todo para ele. Quando ele recebia a bola, eles tinham 50 ou 40 metros de espaço livre para penetrar. E, com a velocidade que tinha, toda vez que chegava na linha de fundo… Você viu o videoteipe? Pode notar: todas as jogadas foram pela esquerda. Então, quando começamos o segundo tempo com o time mais para frente, mais no meio-campo, o Gento perdeu aquele espaço e o nosso time engrenou mais. Depois, fizemos o gol do empate e aí o jogo ficou mais… Mas era um timaço. Era nós ou eles.

No primeiro tempo teve aquele lance do Nilton Santos.

Do Nilton Santos, que deu aquele pulinho[8].

Teve gol anulado, a meia bicicleta do Puskás[9].

Aquele gol anulado… Sabe que nem eu sei como é que foi?

Foi uma meia bicicleta…

Eu acho que foi um foul.

Foi uma puxeta meio de bicicleta, e o juiz – que era chileno – deu falta: jogo perigoso!

É, jogo perigoso. Ele deu sim. Pulou de cabeça e o outro pegou a bola, mas teve um grau de perigo… Sabe como é, o juiz interpreta como perigoso. Para nós, foi ótimo. Aquele pulinho do Nilton Santos também chegou na hora certa, foi inteligente. Mas o importante é estar aqui contando vitória, e não derrota.

Vocês conversaram quando voltaram para o vestiário no intervalo?

Cada um se olhou… Eu não. Eu não olhei para ninguém. Era o mais novo ali. Eu só resmungava, porque a bola não chegava nunca lá. Era um tal de reclamar… Então, chegamos a um acordo com o Aymoré Moreira. Até o Didi falou que estávamos dando muito espaço ali no meio-campo para jogadores tipo o Puskas, com habilidade, e que, se deixar espaço, vai mesmo… Estão acostumados com marcação cerrada e aí pegam uma teta dessas e vão… A fala era: – Temos que apertar mais. Diminuir mais o espaço. Forçar mais a defesa deles. Porque na defesa, eles só dão porrada e basta. Então, vamos forçar mais! O Mané começou a acertar os dribles dele e aí veio o primeiro gol…

Aí veio um garoto e fez dois gols, não é?

É. [risos]

Desencantou, como se diz.

Aqueles gols ali vieram no momento certo. Senão ia ser duro, terrível. A gente estaria contando uma tragédia aqui.

O gol da virada foi quase no final, não é?

Foi no final. Poxa, eu vou te contar, rapaz… Foi um alívio! Foi tirar um punhal atravessado aqui… Eu me sentia engasgado. Estava ali apertando pra caramba. Quer dizer, foi um jogo terrível. Foi um dos jogos mais difíceis que o Brasil jogou na Copa do Mundo. Pode ver, em todas as finais da Copa do Mundo, o Brasil sempre dá de quatro, três… Com folga, tranquilidade. Quer dizer, até contra a Tchecoslováquia mesmo, na final. Eles fizeram um gol, depois empatamos, fizemos dois, três a um. Eu sabia que nós, a qualquer momento… Agora, contra a Espanha, a espinha ficou atravessada até o final.

Como você se sentiu quando o jogo terminou?

É como eu estava falando para vocês. O jogo acabou, a gente ganhou, tudo bem. Aí, depois, você começa a pensar no como foi realmente o jogo: – Puxa vida! Será que é verdade mesmo? Nós ganhamos? Passa aquele filme na sua cabeça. Você vê os gols que eles perderam, o gol anulado… E se tivessem sido? Todos esses troços aí vêm quando você esfria.

O público estava torcendo para que lado?

Estava do lado do Brasil. Os chilenos, apesar da língua espanhola, gostam muito do Brasil. Mas, no jogo seguinte, o Chile perdeu para o Brasil.

Esse jogo com o Chile foi bem confuso, não é? O Garrincha foi expulso.

Mas o Garrincha foi expulso por… Foi uma brincadeira, uma coisa de inocente. Ele estava disputando a bola com o lateral, mas o lateral caiu na linha de fundo e ficou com o bumbum assim, para dentro do campo. Então o Mané chegou e deu um toquinho de ladinho… E o cara deu um pulo para fora do campo. – Ai! Daí todos os jogadores do Chile vieram para cima do Mané. E veio o bandeirinha, o juiz… Dali a pouco o cara expulsou o Mané. Ele ficou sem graça, coitado. Nunca tinha sido expulso na vida dele: – O que foi que eu fiz? Depois a Comissão Arbitral viu que, realmente, ele não tinha feito nada de grave. Tanto é verdade que ele jogou a final. E disseram que a causa foi a pressão em cima da Comissão, mas não foi nada disso. Eles perceberam que a expulsão do Garrincha foi ridícula, e seria mais ridículo ainda se ele não jogasse a final! Eu estava ali perto e vi o que aconteceu. Ele fez assim, atrás, só de ladinho. Sabe como é, foi uma coisa de garoto. Ele fez assim: – Levanta daí, rapaz! Aí o cara aproveitou e deu outro mergulho mais para fora do campo ainda. E os caras também se aproveitaram, invadiram o setor deles e a confusão começou… A pressão foi tão grande que o juiz não pôde fazer outra coisa e expulsou o Garrincha. Depois foram ver que foi um foul sem nenhuma consequência, sem dano para o jogador chileno. Mas o Chile tinha um bom time.

Como é para um jogador o dia da final da Copa do Mundo?

É uma meta. Você sempre almeja e quanto mais vai se aproximando, mais importante vai ficando. Quer dizer, se o jogador não tiver um caráter forte, nervos de aço, um controle muito bom, vai chegar à final completamente… Foi o que aconteceu com a gente. Você viu o primeiro tempo? O primeiro tempo foi decepcionante. Aquilo foi acúmulo de tensão minando alguns de nós. No primeiro tempo até mesmo o Garrincha…

Mas você resolveu. Terminou o primeiro tempo…

Mas, eu digo, foi uma coisa geral, porque contamina todo mundo. Tem que ter força para reagir. Depois desse trauma, você precisa reverter – são 45 minutos. É duro. Se você não tiver nervos de aço, um caráter forte, aquele espírito de reação, fica no meio da rua. Ainda bem que tínhamos jogadores experientes, como o Nilton Santos, o Zagallo, o Mauro… O Zito, o Djalma Santos… Eles pegaram no ponto certo. Falaram lá entre eles e o negócio melhorou: passamos a jogar o nosso jogo. O Mané voltou a ser o Mané… Quando ele começou a acertar, os caras começaram também – O homem acordou, hein! Então, o Mané ganhou confiança: – Dá a bola para o Mané, dá a bola para o Mané! E vieram os gols daquele lado ali. Você vê: psicologicamente, nós superamos a fase mais aguda que o time atravessou. Isso foi bom… A experiência dos nossos valeu naquele momento.

Diziam que, desde 1958 – com o Paulo Machado de Carvalho –, houve uma maior profissionalização da parte administrativa na copa. Como foi a parte da organização e de preparação em 1962?

Não teve nada de excepcional. A organização era tão perfeita que não tinha nenhum jogador insatisfeito. Você não via jogador perturbado pelos jornalistas. O Carlos Nascimento, nosso supervisor, não deixou nenhum jornalista falar comigo antes do jogo da Espanha. Eu não sabia de nada. Foi até melhor… Eu passei um período tranquilo, sem ninguém me perturbando, sem pressão. Ele estava certo, estava com medo da pressão: substituir o Pelé! Qual era a pergunta que os caras iam fazer? – Você vai substituir o Pelé. O que você acha? Quer dizer, ia mexer com a minha cabeça. Eu já estava preparado, como disse antes, mas você nunca sabe o que passa pela cabeça dos caras na hora de fazer uma pergunta… Então, em vez de te deixarem tranquilo, podem ir metendo mais pilha. Foi uma coisa muito sensata e eu só fui saber depois. Eram todos cientes da nossa responsabilidade. Sabiam que a Espanha era uma das melhores seleções naquele momento. E eles também não se metiam na parte técnica. Quem falava era só o Aymoré Moreira. Quer dizer, cada um fazia a sua função, sem nenhuma superação. Cada um no seu dever.

Então a relação com os dirigentes era boa? Em alguns depoimentos, os jogadores falam que a delegação costumava ser imensa, como foi para a Suíça: eram políticos, amigos… Um verdadeiro excesso! Mas, a partir de 1958, isso mudou.

A relação era ótima. Não teve nenhum problema desse tipo. Como você bem falou, a experiência passada ajudou a remodelar o comportamento e a maneira de agir de cada um.

Repetiram, então, a fórmula de 1958?

É. Se deu certo em 1958, por que não daria em 1962? Talvez precisassem somente encaixar algumas coisinhas… O resto estava dentro do programado. Não deviam ter nada de excepcional para mudar. Era um trabalho correto, muito bem feito, sem nenhum problema. E depois, os nossos jogadores também eram todos muito corretos. Não tinha jogador com cabeça fora… Tudo tranquilo. Nunca vi problema entre o grupo, que era muito unido: todos eram amigos um do outro, não tinha panelinha, grupinho. Todo mundo igual. Isso também ajudou muito à seleção. Sabe como é: Conviver com um grupinho dali, um grupinho de lá, é duro. Mas você vendo todo mundo certinho… Chegavam todos juntos para o almoço, para o jantar, jogar baralho… Quer dizer, o grupo estava concentrado e muito bem, em harmonia.

Como foi voltar ao Rio de Janeiro como herói nacional? Multidão, presidente da República…

Poxa vida, rapaz! Ver aquela turma toda contente é a melhor coisa que você pode ter. Aonde você ia: toda aquela gente feliz, dançando, fazendo de tudo para corresponder, agradecer aquilo que você fez. É uma coisa muito gratificante. Dever cumprido! Uma satisfação muito grande. Porque é duro, hein?! A trajetória pela Copa do Mundo não é longa, mas é estressante. Então, se você não estiver preparado, pode botar tudo a perder…

Ainda mais no seu caso. Você disputou quatro jogos eliminatórios.

Verdade. Quatro jogos finais. Os quatro jogos decisivos.

E aí o Nelson Rodrigues escreveu que você era um Possesso[10] e o apelido pegou, não é?

O grande Nelson! Poxa, vou te contar, adorei essa coisa! Eu era um possesso mesmo. Era fogo! Vocês não me alcançaram, porque são muito novinhos, mas eu era terrível. Os beques me marcavam e eu marcava os beques: – Não, não vai, não, meu filho! Você vai ficar aqui comigo! Não tem esse negócio de beque ir para frente comigo, não. – Se me marcar, eu vou marcar também! Era assim. Ninguém precisava me ensinar. Eu perdi a bola para você, eu vou tomar de você. Não tinha o negócio de mandar… Perdi, vou recuperar. A minha mentalidade era essa, jogar para ajudar os companheiros… Se eu puder fazer mais, eu faço. Isso é espírito de colaboração, de grupo. Quando alguém se comporta assim, vai dar certo com todo mundo. Todos precisam correr. Cada um para si e para todos. Eu corro para você, você corre para mim e vamos correr todos juntos, cada um para o grupo. Esse negócio de dizer que agora a tática é ter um para marcar, outro para distribuir… Não. Todo mundo precisa saber fazer tudo. Se fizer igual e mais, melhor. Não pode estabelecer um dever dentro do campo: – Você só vai distribuir. Você só vai ficar ali… Poxa, isso é brincadeira! Não é o futebol moderno. O futebol moderno é cada um colaborar dentro do campo, cada um por si e o grupo unido. Aí você vai conseguir alguma coisa. Mas o negócio de você ter que correr 100 ou 500 metros? Por quê? Vamos nos preparar para todos correrem 500 metros ou mais. O time vai ficar muito mais forte, mais unido e todos só vão ganhar, ajudar os companheiros. Eu, quando vejo técnico estabelecendo: – Você vai fazer isso, você vai fazer aquilo… Não. Tem um limite. É claro, se você é mais cotado para fazer uma certa coisa, tudo bem, você vai fazer mais. Não vai fazer menos. Mas você precisa ter capacidade de aumentar o seu rendimento, não diminuir. Os bem-dotados são os que têm mais volume na sua responsabilidade. Os menos dotados têm menos volume, mas isso não significa que eles não tenham que fazer o deles no máximo. São essas coisas que precisam existir no futebol moderno, porque o futebol é isso: é progresso.

E foi depois desse retorno como campeão do mundo que surgiu o interesse dos clubes europeus em contratá-lo como jogador?

Claro! Muitos times da Europa queriam me contratar, mas o Botafogo não queria se desfazer de mim, porque eu era novo, tinha 21 anos. Muito novo ainda para pegar um voo para a Europa. Mas tinham uns times, inclusive da Espanha, times italianos…

Mas o Milan levou, não é?

O Milan me levou porque foi uma oferta muito vantajosa. Eles ofereceram 400 mil dólares. Quatrocentos mil dólares, naquela época…

Para quem foi comprado por mil cruzeiros, não é?

Quatrocentos mil dólares era dinheiro pra caramba. O Botafogo me vendeu por 400 mil dólares e comprou o Gerson, do Flamengo, por 50 mil. O Gerson cobriu a minha venda. Venderam um ótimo jogador e compraram um ótimo jogador. Quer dizer, tecnicamente, o Botafogo não perdeu em qualidade. Foi esse o motivo para me venderem. 400 mil dólares era uma senhora grana e o Botafogo fez muita coisa em benefício do clube.

A estrutura do Milan era muito diferente da estrutura do futebol brasileiro?

Ah, era. A estrutura do Milan era como é agora. Já tinha base de treinamento, provas físicas… Vanguarda. Tinha campo de futebol, concentração, tudo no local. O Milanello[11], por exemplo, foi modernizado, mas a estrutura é mesma de quando eu estava lá: três campos de futebol, uma cobertura de cento e não sei quantos metros quadrados, que depois foi remodelada para um grande campo sintético, todo coberto. Tem um hotel dentro para a concentração dos jogadores. Restaurante, departamento médico, tudo. Era um troço… Só aumentou, só melhorou. E o Inter seguiu a mesma estrada, porque o modelo do Milanello e do Interello[12] é quase igual ao do protótipo do departamento técnico do Inter e do Milan.

Como foi a sua adaptação na Itália?

Eu tive a sorte de ter viajado muito para a Europa com o Botafogo.  Fizemos muitas excursões no inverno, quer dizer, eu já tinha ciência daquilo que ia encontrar. É claro, a dificuldade é o campo gelado. Porque campo com lama pesada, aqui no Brasil, você pega em todos os lugares. Campo gelado era um pouco difícil… Eu era muito leve e aí inventei uma maneira de ficar em pé. A chuteira tinha as travas assim, pregadas, e elas eram feitas de couro e depois limadas, para fazer uma pontinha. Sabe o que eu fazia? Pegava umas tachas, aquelas tachinhas…

De metal?

É, aquela tachinha pequenininha assim. Cruzava e fazia uma estrela na sola, nas últimas e nas primeiras travas. Aquilo arranhava o gelo, pregava e não deixava escorregar. Mas eu precisava fazer aquilo e trocar de chuteira, porque quando você entra em campo, o juiz manda levantar os pés. Então eu mandava o massagista levar a chuteira e, depois, se via que não tinha muito gelo, ficava com a chuteira sem tachinha mesmo. Mas se estivesse escorregando, eu dava uma de migué, me machucava, saía e mudava a chuteira sem o juiz ver… Ninguém me pegou porque eu fiz o negócio discretamente. Aquilo me ajudava um pouco… Mas o resto era normal… O gelo, o campo gelado, era assim para todo mundo. Os outros jogadores, mesmo sendo de lá, escorregavam também. Depois que eu implantei esse truque, eles escorregavam mais do que eu. Aí eu me adaptei bem.

Você logo enfrentou seus antigos companheiros de seleção, na final do Mundial, não foi?

Poxa vida! Quando eu cheguei aqui, eles me chamaram de traidor, porque me viram disputar o Mundial com o Brasil e depois disputar outro Mundial contra o Santos. Achavam que eu não tinha que jogar contra o Santos… Eu falei: – Mas, meus amigos, isso aqui não é… Mas eu compreendo. A recordação deles era do Amarildo campeão do mundo, bicampeão do mundo… E daí me verem jogar contra time brasileiro, disputando uma Copa do Mundo de Clubes… Eles não engoliam, não entendiam por quê. – Não, você não tinha que jogar, não. Você é um traidor. Eu disse: – Poxa, se eles me pagaram, me compraram para jogar com eles, eu preciso disputar a final. Quer dizer, eu não posso dizer não, senão vai ser ao contrário, e aí sim vai ser traição! Depois eles compreenderam. Mas eu fiquei assim… Até entendi, porque o amor deles por mim, naquele momento, era como se ainda estivesse na seleção brasileira, então… Ainda bem que eles ganharam!

Mas você não era o único brasileiro.

Não. Tinha o Dino Sani e o Mazzola. Mas comigo, não sei por que… Talvez porque fosse recente…

Você foi o herói de 1962.

A Copa do Mundo estava muito recente, então, era uma imagem completamente diferente daquela de 1962.

Em 1966 você estava na Itália e foi convocado para a Copa na Inglaterra.

Fui convocado e cortado, porque eu tive uma distensão. Uma semana antes de começar a Copa do Mundo tive uma estafa muscular, na Suécia, jogando num amistoso. Fiquei dois meses parado. Inclusive, quem entrou no meu lugar foi o Paraná. Não sei se vocês se recordam desse jogador. Era um jogador do São Paulo, um ponta-esquerda.

Quando você foi convocado, veio para o Brasil participar da preparação?

Claro! Em Campos de Jordão, Águas de Lindoia…

Em cidades com estâncias hidrominerais.

É. O negócio era a tranquilidade.

Como era o Feola como treinador?

O Feola era muito diplomático. Nós quase não tínhamos contato de grupo, palestra do Feola… O Aymoré, como selecionador, era mais ativo… O Feola estava mais para um pai de família. Ia nos quartos dos jogadores e conversava com cada um. Era um treinador muito afetuoso, muito carismático. Então, a recordação dele é essa. O treinador, antigamente, era diferente. Não era como agora, com uma participação completa para os atletas. O treinador hoje é um treinador 24 horas. Antigamente era diferente… Eles eram mais dos clubes do que da seleção. O treinador era mais um manager.

Você se casou com uma italiana?

Italiana. Tenho duas filhas e um filho. A primeira nasceu na Itália, em Florença, a Katiutcha. A segunda nasceu aqui no Brasil, em 1973, a Jennifer. E o Rildo nasceu na Itália, em Florença também. A Jennifer e o Rildo estão aqui comigo. Eu tenho, vamos dizer assim, uma mágoa, porque ainda não conheço a minha neta de três anos. Eu vim embora e só conheço a minha neta de foto.

Ela está na Itália?

Sim. A gente se fala por telefone e agora tem a Internet… Mas não é a mesma coisa.

Você só tem uma neta?

Tenho três netas: uma tem 19… tem 18, 9 e essa com três anos. É duro. Quando eu falo, me dá um nó.

Na Copa do México de 1970, na final Brasil x Itália, você estava na Itália. Como foi essa experiência?

Eu estava no meio do inimigo, porque a minha família é italiana. Eu torcia para o Brasil, é claro! Mas meus familiares, parentes da minha família, minha mulher, meus cunhados, torciam todos para a Itália. Depois, todo mundo foi festejar. O Brasil ganhou e fizemos uma espaguetada a la brasiliana.

No início da década de 1970, você continuava na Itália – jogando pelo Roma. Como foi a decisão de voltar para o Brasil e encerrar a carreira no Vasco?

A minha esperança era voltar para o Botafogo. Eu saí do Roma imaginando que o Botafogo se interessasse. Mas acabei indo para o Vasco. Foi o time que mais se interessou. E eu fui feliz: Fui Campeão brasileiro. Então, aceitei de bom grado. O Vasco era um time bom para encerrar uma carreira como a minha, ainda mais porque fui campeão. Quer dizer, acabei no auge, em um grande clube, com jogadores como Roberto Dinamite – em início de carreira –, Tostão, Moisés, Alfinete, Andrada, Zanata… O Jorginho Carvoeiro, Alcir, Moisés, René… Ih, tantos jogadores, muitos no início. Para mim foi ótimo. Teve até um reencontro, agora, de 34 anos de campeonato. Uma festa muito legal lá no Vasco.  Encontrei com quase todos eles. Então, foi uma coisa muito importante no encerramento da minha carreira.

E como foi a decisão de parar?

Eu tinha operado o joelho e foi um sacrifício enorme voltar a jogar. Esse problema estava tirando aquela minha raça, a minha vontade. Eu já chegava atrasado… O joelho me dava trabalho. Tinha que fazer muitas aplicações para jogar um jogo. Ficava um jogo fora e o outro não. Quer dizer, jogava e não jogava. Então, depois desse campeonato, decidi parar sem nenhum trauma. Vi que era a hora, então deixei de ser jogador profissional para ser um futuro treinador de futebol. Eu tinha 34 anos. Se não tivesse o problema no joelho, poderia alongar minha carreira e jogar mais um três ou quatro anos.

Como foi a decisão de se tornar treinador e viver experiências em diversos países?

Como disse antes, não tive nenhum trauma, nem quando parei de jogar, nem quando virei treinador. Na Itália eu fiz um supercurso da Coverciano[13] para treinador. Lá os treinadores precisam de uma carteira de primeira categoria para treinar os times profissionais. Fiquei três anos na Coverciano me preparando. Naquele período, eu treinava a categoria de base da Fiorentina. Primeiro fui para o Esperance de Tunis, um dos melhores times da Tunísia, onde fiquei três anos. Ganhei campeonato, Copa da África, Copa da Tunísia. Fui duas vezes campeão da Copa da África. Depois, fui para os Emirados Árabes, para o Al-Ain. Fui campeão da Copa da África de novo. Mudei de time e treinei o Sharjah: ganhei outro campeonato. Quer dizer, eu aproveitei ao máximo tudo o que aprendi como jogador, o tratamento, e mais ainda como treinador. Aproveitei realmente bem, sem nenhum trauma, de uma fase a outra da minha carreira, como jogador e como treinador. Fiz tudo com muito prazer, muito empenho, vontade, entusiasmo. Então, fazendo as coisas com entusiasmo é possível adquirir certa vantagem e bons resultados. Eu perdi um pouco… Quando você sente que perdeu uma coisa, é melhor não misturar, ou não vai fazer aquilo tão bem como antes. Agora estou fazendo outras coisas, que também me dão uma grande satisfação. Ver jogadores para outros clubes e supervisionar categorias de base para formar jogadores.

Quais são as perspectivas do Brasil para a copa de 2014?

Olha, a única coisa que paira é sempre a nuvem negra de 1950, porque o Brasil perdeu essa Copa. O brasileiro não esqueceu e jamais vai esquecer. Então, quero apenas isso: Que o Brasil se prepare, antes de mais nada, não pensando apenas na Copa do Mundo, mas no que tem para receber de fora. O Brasil vai ser o espelho do esporte. O importante é que esse comportamento, essa transformação que estão fazendo, seja uma transformação conscienciosa. Pensar em quais são as principais coisas que o Brasil precisa para fazer uma Copa do Mundo brilhante, sem faltar nada. Que seja uma Copa do Mundo de muita fraternidade, muita união entre nós mesmos. Ninguém tem que tirar proveito próprio. Aqui, o proveito tem que ser tirado é pelo Brasil. Somente o Brasil tem a ganhar com essa Copa do Mundo. A própria seleção brasileira precisa se em casa, protegida, em condições de se exprimir da melhor maneira possível, para que não aconteçam coisas passadas, as quais eu tenho até medo de nominar. Essa é a ocasião do Brasil cancelar a mancha de 1950, e fazer com que a Copa do Mundo seja realmente brilhante. Cabe a nós, brasileiros, fazermos as coisas com consciência e critério, e tornar essa Copa um espelho para o mundo todo.

Amarildo, agradecemos muitíssimo a sua entrevista.

Sou eu quem agradeço a vocês. Agradeço, realmente, essa atenção. Foi maravilhoso. O tempo passou e eu nem percebi! 


[1] Amaro Silveira: jogador da Seleção Brasileira nos anos trinta.

[2] Campos dos Goytacazes, RJ.

[3] Trivela ou três dedos: jogada executada com a parte exterior do pé, que imprime à bola um efeito oposto ao esperado e exige muita habilidade técnica.

[4] Manuel Fleitas Solich: jogador e treinador paraguaio, apelidado de “El brujo”. Atuou no Flamengo na década de 50.

[5] Copa Roca de 1963: Brasil 4 X1 Argentina, no Maracanã lotado por 130 mil pessoas. O Brasil deu um show de bola com três gols de Pelé e um de Amarildo.

[6] Alfredo Di Stéfano: grande jogador Argentino e, posteriormente, técnico de futebol, que atuou por muito tempo no Real Madri, clube no qual ocupa o posto de presidente honorário desde 2000.

[7] Francisco Gento: grande craque do futebol espanhol.

[8] Nilton Santos, no jogo Brasil X Espanha da Copa de 1962, cometeu um pênalti claro, mas deu dois pulos para frente da linha e enganou o juiz, que marcou a falta fora da área.

[9] Ferenc Puskás: maior jogador da história do futebol húngaro.

[10] Crônica de Nelson Rodrigues, intitulada “O Possesso”, publicada pelo jornal O Globo no dia seguinte ao jogo.

[11] Milanello: Centro de treinamento do clube de futebol italiano Milan.

[12] Interello: Centro de treinamento do clube de futebol italiano Inter de Milão.

[13] Coverciano ou Casa Itália: complexo no qual se localiza a sede técnica da Associação Italiana de Futebol, em Florença, e que promove eventos técnicos e cursos formação para os times de futebol italianos.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Daniela Alfonsi

Antropóloga, Diretora Técnica do Museu do Futebol e doutoranda pela USP. Trabalha com e pesquisa sobre os museus esportivos.
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