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Juliana Cabral (parte 2)

Equipe Ludopédio 21 de setembro de 2011

Jogadora e capitã da Seleção Brasileira de futebol feminino que recebeu a medalha de prata nos Jogos Olimpícos de 2004, Juliana Cabral (jucabralfut.blogspot.com) hoje atua em outro campo, na televisão, como comentarista de futebol da Rede TV!. Conheça sua trajetória, bastidores do futebol feminino, o cenário atual da prática feminina, entre outros assuntos.

Juliana Cabral é jogadora da seleção feminina de futebol. Foto: Equipe Ludopédio.

 

 

Segunda parte

 

O bom desempenho nos grandes torneios é fundamental para a consolidação da prática?

Voltar para o Brasil sem ganhar pode levar a uma piora da situação atual. Além de tudo, a pressão psicológica é muito grande. É claro que muita coisa da parte das jogadoras também precisa mudar. Precisa ser mais profissional. Precisa cuidar um pouco mais da sua imagem, independente da opção sexual. Toda profissão tem. Quem vai querer investir numa mulher que tem uma imagem masculina?


Já que você tocou nesse ponto, gostaríamos de falar sobre essa questão estética do futebol feminino. Você defende que deveria ocorrer uma maior feminilização da imagem das jogadoras?

Sem dúvida. Não estou falando de coisas como ter que deixar o cabelo crescer caso a jogadora tenha o cabelo curto. Eu nunca me maquiei para jogar futebol. E nunca vou me maquiar. Não tem cabimento. Vou passar lápis e batom para jogar bola? Nunca fiz isso. A postura da mulher precisa ser feminina. Mas não adianta só ter uma ótima imagem, precisa saber jogar. Isso é o principal: a qualidade e os cuidados com a imagem precisam andar lado a lado.

Nunca fui muito vaidosa. Mas eu sempre fui minimamente vaidosa. É uma imagem que você está passando. Se você fizer uma pesquisa com os pais, para saber se eles querem que suas filhas sejam jogadoras de futebol, talvez hoje o discurso seja: “Não, porque não tem futuro, não dá dinheiro”. Mas há algum tempo, a resposta seria: “não, porque só tem sapatão”. Isso atrapalha demais. Eu sempre conversei com as meninas. Existe a homossexualidade no futebol masculino, no vôlei, na política, na televisão, em todo lugar. E não tem problema assumir a homossexualidade. Mas estamos falando de um esporte que lida com a imagem da mulher. Tivemos um Campeonato Paulista, em 2001, que proibiu o cabelo curto. Isso não pode ser feito, jamais.


A discussão sobre uniforme sempre esteve presente no futebol feminino? Você presenciou algum debate sobre isso: calção colado, ou maior (tal como os masculinos), ou pequeno?

Não cheguei a ver isso. Mas vou te dar um exemplo. No Campeonato Paulista de 2001 os uniformes eram indecentes. Eram shorts muito curtos, blusinhas apertadas. Eu, como zagueira, poderia ficar sem roupa ao dar um carrinho. Com isso eu não concordo. Se olharmos para os uniformes da maioria das seleções femininas, eles são bem femininos, coladinhos, mas dentro de um limite bom para a prática da modalidade. Mas precisamos ter um uniforme feminino sim.


Você presenciou algum tipo de preconceito contra homossexuais dentro do futebol feminino?

Nunca vi algo em relação a isso. Em certos momentos, era possível até perceber algo nesse sentido, mesmo sem a pessoa falar. Não devemos criticar aquelas que preferem usar bermudão, mas se quisermos tornar esse esporte forte dentro do nosso país temos que nos adaptar a certas coisas. Mas reforço que não adianta só ser bonita e ter uma ótima imagem, a qualidade e os cuidados com a imagem precisam andar lado a lado.

Juliana Cabral recebeu a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de 2004. Foto: Equipe Ludopédio.

Se a Sissi tivesse tido uma preocupação maior com a estética, tal como a Marta, ela teria tido uma projeção maior no Brasil?

Eu não posso garantir ou afirmar isso. Mas seria diferente sim. Depois que passou a ser assessorada, com uma equipe a orientando, a carreira da Marta deu um up. A Marta hoje está sempre com o cabelo arrumado. Claro que ela chama a atenção. Não estou falando que ela tem que andar de salto e minissaia todo dia. Isso pode ter atrapalhado a Sissi, mas ela teve muito sucesso nos EUA. Talvez lá isso não faça diferença. Lembro que no Mundial de 1999 era impressionante: as crianças americanas iam aos estádios com camisetas onde estava escrito Sissi. Hoje ela mora lá, com grande sucesso. O que traz a questão da sociedade. Infelizmente, a nossa sociedade é muito hipócrita. Só que existem regras. Se você não está dentro destas regras, você passa a ser o patinho feio. Infelizmente o futebol feminino ainda tem que lidar com isso.


Você foi a capitã da Seleção Brasileira durante vários anos. Disputou a Copa do Mundo de 1999 (3º lugar) e 2003; Jogos Olímpicos de 2000 e 2004 (medalha de prata); Jogos Pan-Americanos de 2003 (medalha de ouro). Principalmente no caso dos Jogos Olímpicos, o que você conseguiu aproveitar destes lugares? Os atletas conseguem contemplar e absorver a experiência vivida ali, para além das competições?

Eu não aproveitei nada. Sempre fui muito focada, para conseguir chegar aonde cheguei. Sempre quis estar na seleção. Nos Jogos Olímpicos de 2000 não fiz nada. Não conheci a Vila Olímpica, embora tenha ficado lá. Eu era nova, não dava um passo fora do lugar. Não sei se isso foi um erro na minha carreira. Sempre me cobrei muito, sempre fui muito disciplinada, muito focada. Se eu tivesse que ficar trancada uma semana dentro um quarto, eu ficava. Eu não saía, mas tinha jogadora que não parava no alojamento. Até brincava que algumas tinham rodinhas no pé: soltava e ela ia embora. Em 2004, sentamos com o treinador Renê e fizemos uma cartilha do que tinha que ser seguido dentro da Vila. O grupo almoçava todo junto. Sempre todas juntas. Quando acabaram os Jogos Olímpicos, as jogadoras estavam liberadas para passear. Como fui a capitã, eu sempre estava atenta a tudo. Em 2004, foi tudo uma maravilha. A chegada do Renê nos assustou um pouco. Ele já era um técnico consagrado dentro do futebol masculino, com passagem de sucesso pela seleção da Jamaica. Pensávamos: o que será de nós? No primeiro dia dele, a nossa apresentação foi no Dia Internacional da Mulher e ele deu uma rosa a todas. Aquilo já quebrou todo mundo. Todas foram com pedras para jogar nele e ele trouxe rosas. A convivência com ele foi muito boa. Ele ensinou muita coisa. Fui escolhida capitã, após vários testes e apostas dele. As 18 jogadoras foram escolhidas seguindo critérios e condições físicas, técnicas e psicológicas. Saíamos daqui muito confiantes. Foi um trabalho maravilhoso. Não trocaria por nada. Na época, eu jogava na Suécia junto com a Daniela Alves, e abrimos mão do contrato para disputar os Jogos Olímpicos. Jamais esquecerei aquele momento do pódio. Você sobe ali com a sensação de dever cumprido. Um sonho realizado.


Três anos depois da medalha de prata em 2004, o quão difícil foi ficar de fora da seleção que disputou os Jogos Pan-Americanos no Brasil?

Foi uma grande frustração. Em 2004, após retornarmos, eu já fiquei fora da seleção. Eles estavam fazendo uma renovação. Além disso, tinha batido de frente com nosso diretor durante os Jogos Olímpicos, por reivindicações, e acabei tomando um pé na bunda. Em 2007 seria o sonho da minha vida, pois nunca tive meu pai acompanhando num estádio um jogo meu na seleção. Pouco jogamos aqui no Brasil. Uma única vez e eu era reserva naquele jogo. Então, meu sonho era levar meu pai ao Rio de Janeiro para ele me ver com a camisa da seleção. Mas um pouco antes dos Jogos eu me machuquei. E o mais dolorido foi receber dois dias depois da lesão um telefonema que avisava sobre a minha convocação. O técnico na época, Jorge Barcellos, queria que eu voltasse. Foi uma dor difícil de superar. Eu achei que não fosse mais voltar a jogar por causa da lesão. Não sabia se o joelho ficaria bom. Nesse período, veio uma proposta da Rede Bandeirantes para atuar como comentarista durante os Jogos de 2007. Foi um modo de estar próxima à seleção. Na televisão não tive dúvidas e falei tudo o que tinha que falar: sobre o que as meninas precisavam, do que era prometido etc., e assim acabei ficando fora dos Jogos Olímpicos no ano seguinte. Foi uma das razões que me levou a parar de jogar. Achei que ali já não tinha mais espaço. Talvez não pelo futebol, pois eu tinha voltado com condições após a lesão. Mas pouco participei dos jogos durante a fase de preparação. Tive uma conversa aberta com o treinador na época, ele deixou claro qual era o objetivo dele comigo desde que eu cumprisse certas coisas. Foi um momento difícil. Era a oportunidade de disputar minha última Olimpíada. Pisaram feio na bola comigo.


Como foi jogar pelo Corinthians em 2009, seu time do coração? E quais as razões para a não continuidade da equipe? E essa experiência contribui para que você encerrasse sua carreira?

Sim. Não dá mais para suportar certas coisas. Durante 16 anos sempre busquei meus objetivos. Nada me derrubava. Passei várias dificuldades, de ter um time para jogar hoje e amanhã não. Comecei no Corinthians antes desse problema na seleção. Estava sem jogar, o Dema me ligou e disse: “e aí, vamos lá”. Fui e o time montado era uma maravilha. Começamos desacreditas, sem ter apoio nenhum, e por fim as coisas começaram a acontecer. O Corinthians cedeu toda a estrutura, utilizávamos os campos sintéticos do Parque São Jorge, o CT de Itaquera. Fizemos uma boa campanha na Copa do Brasil, disputamos a semifinal. Chegamos bem no Campeonato Paulista, mas perdemos pontos porque uma atleta jogou sem estar regularizada. Ao final do ano, recebi propostas de clubes da Espanha e da Alemanha, mas eu não queria ir. Sempre fui muito ligada à minha família. Naquele momento, acho que ganhava bem no Corinthians, podia estudar, estava perto da minha família etc. Quando virou o ano e fomos nos reapresentar, encontramos uma comissão técnica nova, um time novo. Foi grande uma falta de respeito. Se eu, que tinha uma história dentro do futebol feminino, não era respeitada, imagina as meninas que dependiam daquilo, precisavam ajudar a família. Naquele momento morreu minha paixão por jogar futebol. No ano seguinte, até tentei dar continuidade, jogando pelo São Bernardo, mas passei a dar prioridade às minhas aulas numa escola aqui de São Paulo e resolvi parar de vez. Foi até engraçado, porque o meu pai é muito fanático. No carro dele, tem fotos minhas, de jornais, o vidro traseiro só tem reportagem. Mesmo corintiano roxo, ele vestia a camisa do São Paulo quando joguei pelo clube. Eu dizia que quando eu parasse de jogar eu não sabia o que falaria a ele. Iria ser um desgosto para ele. Achava que para mim seria mais fácil, focaria outras coisas. Mas não. Para mim foi um baque, fiquei sem chão, imagina, dezesseis anos fazendo isso.


Isso aconteceu quando você tinha uns 29 anos. Você ainda era e está nova…

O problema é que eu não era reconhecida, mas essa era a minha profissão. Se pensarmos em termos de mercado, foram 16 anos jogados fora. No trabalho que eu estou hoje, como comentarista da Rede TV, esses 16 de dedicação ao futebol são reconhecidos. NA escola que dou aula eu comecei do zero, embora seja claro que o fato de ser uma medalhista olímpica contribua. Mas é uma coisa nova, tive que buscar credibilidade do mercado, buscar uma estabilidade que nunca tive, pois sempre morei com meu pai. Quando parei de jogar, pensei: “meu deus, o que vou fazer? Não vou mais acordar para ir treinar… acabou”. Foi difícil, mas agradeço a essa escola por ter me dado uma oportunidade. Depois surgiu a chance de trabalhar na televisão, uma forma de estar ligada ao futebol e vivê-lo como sempre o vivi. Ainda mais para uma mulher. Nunca imaginei que poderia viver disso.

Juliana Cabral foi capitã da seleção feminina de futebol. Foto: Equipe Ludopédio.

E como tem sido esses novos aprendizados: na área educacional e na área comunicativa?

Na educacional, como sempre fui muito certinha, eu estou tomando um baile dos meus alunos. Mas estou adorando. Tem sido uma experiência muito bacana. Foi até engraçado. No primeiro dia, numa classe de meninos, que esperavam um professor, chega uma professora. Pensei: “estou perdida”. Pedi para eles fazerem uma roda e disse: “quem fizer o que a professora faz com a bola, vou dar uma coca-cola”. Fiz embaixadinhas e alguns truques. Quando eles viram aquilo tudo se transformou. Os pais também têm me respeitado muito. Na televisão, tem sido uma experiência excelente, mas com muitas barreiras a serem quebradas. Mas estou com aquele gás de quando comecei a jogar.


Quais seriam essas barreiras? Uma comentarista mulher num universo de hegemonia masculina? Tal como uma jogadora num esporte tido como masculino?

É muito difícil. Fui muito bem aceita na Rede TV, por colegas como Marcelo Bianconi e Ronaldo, que me tratam super bem. Foi até engraçado uma vez, quando fiz um primeiro programa junto com o Ronaldo. A Paloma Tocci, que é fantástica, jogou uma pergunta e eu comecei a explicar: “por que o lateral na cobertura… o volante vem na primeira…”. O Ronaldo olhou para mim – e tudo ao vivo – e disse: “não é que você entende de futebol mesmo?”. É engraçado. Muitos respeitam. Costumo ir a treinos. Muitos ainda têm o pé atrás: “um programa só com mulher falando de futebol? Eu não assisto”. Já teve cara que falou isso para mim. Mas acho que quanto mais falarem será melhor (risos).


Fazendo um paralelo com a discussão que estávamos fazendo antes, o próprio nome do programa, “Belas na Rede”, remete à questão da estética no futebol feminino…

Você acha que eles me chamariam se eu me vestisse mal, se eu tivesse uma outra postura? Por isso é importante cuidar da imagem, independente da opção sexual.


Tem algum interesse em realizar trabalhos com esporte em outros papéis, como técnica ou dirigente?

Meu sonho é poder dar uma contribuição ao futebol feminino. Quando para de jogar, o jogador de futebol já tenta ser encaixado em algum lugar, pois tem conhecimento, viveu aquilo, sabe o que precisa melhorar etc. No basquete também. Oscar, Paula, Hortência aposentaram, já conseguiram se inserir para ajudar a melhorar o esporte. No futebol feminino não tem isso. Continua uma desorganização. Meu sonho é poder, em cima de projetos sociais, fazer algo em prol do futebol feminino. Tentar implantar um projeto de categoria de base e formar jogadoras dando suporte que elas precisam. Projetos para o futuro. Quando parei de jogar, comecei a pensar nisso. Como técnica, não sei se é uma coisa que eu faria. Embora eu goste daquele dia a dia, de estar próxima ao campo, na concentração, é gostoso. Mas ainda não pensei em correr atrás disso. Confesso que hoje estou num lugar que gosto muito, onde consigo falar de futebol, gira em torno do esporte, mesmo não estando dentro do campo.


Você acha que um próximo passo para melhorar o cenário do futebol feminino no Brasil é aumentar a participação de mulheres nos cargos administrativos, como técnicas ou dirigentes?

Sem dúvida. Temos poucas mulheres nesses cargos hoje. Temos a Magali, que foi técnica do Juventus. Formou grandes jogadoras. Ela não teve oportunidades na seleção, nem nas divisões de base. A Sissi foi um marco no futebol feminino. Por que não a convidam? Ela vive há vários anos nos EUA, a potência do futebol feminino, e nunca procuraram a Sissi. Será que quando a Marta parar ela terá poder para se inserir nesses espaços? Nas seleções estrangeiras existem várias técnicas. Precisamos, além disso, de pessoas qualificadas, treinadoras que fazem cursos, que se reúnem etc. A mulher teria que estar inserida. Hoje nenhum cargo da comissão técnica é ocupado por mulheres.

Juliana Cabral atua como comentarista de futebol na televisão. Foto: Equipe Ludopédio.

Enquanto atleta, qual competição para você era a mais importante, que não poderia ficar de fora: Copa do Mundo, Jogos Olímpicos? No futebol masculino com certeza é a Copa do Mundo…

Acho que a Copa do Mundo de Futebol Feminino é especial, mas nada se compara aos Jogos Olímpicos. Claro que estou falando por mim. As outras jogadoras podem pensar outras coisas. Mas acho que a Olimpíada é o máximo de um atleta, o topo onde ele pode chegar, seu auge. Nada se compara, tanto em relação à grandeza da competição quanto em termos emoção e envolvimento. Os melhores atletas do mundo estão ali.


Como você olha para o futebol feminino nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016?

É difícil. A seleção mudará até lá, passará por uma renovação. Se o Brasil não tomar cuidado com essa renovação, como as meninas vão conseguir adquirir experiência e confiança para disputar competições contra outras seleções. Esse último Mundial foi um exemplo disso. No último jogo, faltou um pouco de liderança, de psicológico, uma pessoa do lado de fora transmitindo calma. Se o Brasil não melhorar sua estrutura e planejamento, sempre vamos bater na trava. Vai sempre faltar alguma coisa. Seria legal fazer um documentário da vida dessas meninas, do dia a dia dos clubes, da pressão que elas sofrem. Pelas meninas, já era para ter sido campeão de tudo, pelo esforço delas, pelo trabalho, pelo envolvimento. Mas infelizmente sempre tem alguém na nossa frente.

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