10.8

Sérgio Miranda Paz (parte 2)

Equipe Ludopédio 23 de abril de 2014

Sérgio Miranda Paz é um apaixonado por futebol e passeios pelas cidades.  A voraz sede por conhecimento uniu as duas paixões do paulistano, cuja longa trajetória uspiana é assinalada por graduações e pós-graduações em múltiplas áreas. Atualmente integra o Memofut – Grupo de Literatura e Memória do Futebol.

O ‘flâneur’ Sérgio – na acepção baudelairiana do termo – compartilha com o leitores do Ludopédio algumas histórias, causos, propostas e opiniões, abalizadas pela experiência de quem já acompanhou in loco diversas edições da Copa do Mundo e faz do futebol um tema de pesquisa.

Boa leitura!

 

 

Sérgio Miranda Paz é integrante do Grupo de Literatura e Memória do Futebol (Memofut). Foto: Max Nigro Rocha.

 

Segunda parte

 

Recentemente no Museu do Futebol você apresentou uma vídeo-aula sobre as origens do futebol na cidade de São Paulo. Conte como foi essa experiência bem como os principais pontos abordados.

Não foi a primeira vez que ministrei essa aula. Ela já fazia parte do curso que eu ofereço para terceira idade. No dia da defesa da tese a banca falou: “Isso deveria virar um livro”. É gostoso ouvir isso da banca. Se fosse há trinta anos, quando tinha pouca coisa sobre futebol, talvez publicasse. Mas hoje tem tanta coisa, embora seja um tema de certa forma pioneiro. Pensei: ‘mais um livro de futebol?’. Optei por preparar um curso. A minha tese não tem ilustrações, acho que só duas reproduções de quadros em uma folha. Não coloquei ilustrações, só texto. E eu tinha preparado algumas apresentações só de texto. Mas percebi que estava chato. Fiz uma pesquisa iconográfica, com base em imagem, áudio e vídeo. Pesquisei na internet imagens que refletissem a minha tese. Portanto, em vez de dizer “goleiro pitoresco – Rogério Ceni”, optei por colocar o Rogério Ceni cobrando uma falta, um vídeo do Rogério fazendo um gol. Fiquei muito feliz quando ele fez o centésimo gol da carreira num jogo contra o Corinthians. Como corinthiano que sou, acho que isso valorizou ainda mais o feito dele. Procurei fazer uma apresentação mais interessante quando surgiu a oportunidade de oferecer esses cursos para a terceira idade. Há cinco anos sou voluntário da USP Leste, que tem curso de Gerontologia. Talvez por causa disso, a UnATI – Universidade Aberta Terceira Idade lá seja mais forte, oferecendo aulas de diversas áreas do conhecimento, e lá tem muitos alunos. Conheci um professor do Turismo que aceitou assinar a autorização para o oferecimento de um curso de futebol, mesmo eu não sendo professor da USP naquela ocasião. Tem sido quase como uma oficina. Faço o pessoal cantar, levar e produzir objetos que tenham relação com o futebol. Eu resolvi começar pela origem, pela história. Como é que o futebol apareceu no mundo e no Brasil? Começo com o Napoleão Bonaparte, que invadiu Portugal, fez os portugueses correrem para cá e assim consolidarem uma aliança com a Inglaterra. Uma dívida com a Inglaterra que perdura até hoje. Por causa disso os ingleses começaram a vir em meados do século XIX para construir estradas de ferro, instalar companhias de gás. Utilizo imagens da São Paulo Railway, do Barão de Mauá, do Gasômetro em São Paulo, até chegar ao Charles Miller. Descobri que a esposa do Charles Miller, Antonieta Rudge, era pianista, então coloco foto da Antonieta, aliando música e futebol. A apresentação ficou mais digerível para as senhorinhas da terceira idade que frequentam as aulas na USP. Depois ofereci também esse curso na PUC-SP. Essas conexões extracampo me agradam. Vocês são pesquisadores, eu sou um curioso. Talvez eu até conte de forma enviesada, pois não vou fundo nos livros. E também tem minhas relações familiares. Minha avó era de 1898, ela tinha algumas lembranças do começo do século. Quando vou falar das companhias de gás inglesas, coloco a música com a Inezita Barroso, “Lampião de gás”, na minha apresentação. É futebol? Sim, pois a Companhia de Gás participou do primeiro jogo do Charles Miller na Baixada do Glicério. O curso já estava montado, mas foi emocionante ministrar no Museu do Futebol, principalmente devido à minha afetividade com o Pacaembu e o Museu. E foi muito divertido, pude colocar para tocar o Nelson Gonçalves cantando a música “Estação da Luz”… As estações de trem têm tudo a ver com futebol. Depois falava da D. Veridiana, personagem que tem tudo a ver com a cidade, com o Velódromo e a origem do clube Paulistano; abordei também o casal de americanos que fundou a escola que deu origem ao Mackenzie. Não sei se vocês sabem dessa história, mas o Mackenzie era um milionário americano, que tinha lido alguns textos do José Bonifácio. O José Bonifácio era cientista antes de ser político e passou quase toda a vida na Europa pesquisando minerais. O minério andradita é assim chamado em homenagem a José Bonifácio. Anos depois, o Mackenzie, que se interessava por minérios, descobriu e leu textos do brasileiro José Bonifácio. Decidiu que parte de sua fortuna, após sua morte, seria destinada à criação de uma escola de Engenharia no país do José Bonifácio. Quando Mackenzie morreu, um casal de missionários da Igreja Presbiteriana tinha uma escola primária em Higienópolis. O dinheiro foi encaminhado ao casal para que eles comprassem o terreno e fizessem uma faculdade de Engenharia, que deu origem à Faculdade Mackenzie. E o primeiro gol oficial do futebol brasileiro foi marcado pela Associação Atlética Mackenzie. Veja que curioso: o José Bonifácio está ligado à origem do Mackenzie, que está ligado à Portuguesa, clube que posteriormente entrou na vaga do Mackenzie, pois este na época era um time fraco, não ganhou títulos. A Portuguesa queria entrar no Campeonato Paulista, mas não tinha vaga, pois era um número fixo de times. Acabou-se por criar a Portuguesa-Mackenzie, ou Mack-Portuguesa, não recordo. Durante três anos os clubes atuaram coligados. É uma coisa gostosa de pesquisar, pensando num público heterogêneo. Nessa vídeo-aula no Museu, o público era formado por pessoas do Turismo; uma professora de Turismo levou seus alunos; um professor da USP de Turismo também levou alunos; meu primo Zé Francisco foi porque gosta de futebol e porque é meu primo (risos). Poucos vieram por contatos do Museu do Futebol, uns dois ou três. Inclusive, tinha um casal e a moça ficou dormindo; o rapaz estava mais entusiasmado, mas acho que ele se decepcionou um pouco, pois esperava uma palestra sobre futebol no Museu do Futebol, e o palestrante tocou Inezita Barroso e Nelson Gonçalves (risos).

Na tese, uma das propostas também passa pela realização de eventos esportivos internacionais no Brasil. No confronto entre teoria e prática, como foi a experiência de trabalhar como voluntário na organização dos Jogos Pan-Americanos de 2007?

A minha tese no Turismo não foi muito na base da teoria. A banca até fez algumas ressalvas. Sabe quando dizem: “nossa, que tema diferente!”. Isso significa que não é muito acadêmico (risos). Então não sou a pessoa mais indicada para discorrer sobre as teorias no Turismo.

Sérgio Miranda Paz  trabalhou como voluntário nos jogos Pan-Americanos de 2007. Foto: Max Nigro Rocha.

E teoria no sentido de organização para um evento esportivo, principalmente no plano discursivo dos eventos?

O voluntário fica muito distante da cúpula. Talvez alguém que foi contratado para trabalhar no evento, remunerado, pudesse falar alguma coisa. Minha participação como voluntário nos Jogos Pan-Americanos ficou concentrada na Hospitalidade e Família ODEPA. ODEPA (“Organização Desportiva Pan-Americana”) é o organizador do evento e eu, por ter facilidade com o inglês, fui contratado para ficar “pajeando” os membros que ficavam na área VIP; indicava o local dos assentos; informava sobre os coquetéis; quando aparecia uma xerox dos resultados levava para esses membros. As moças que participavam da cerimônia de premiação também faziam parte do grupo. Mas era uma coisa muito focada, específica, não tínhamos uma noção do geral. Atuei mais nos jogos de vôlei de praia na Praia do Leme. Foi um lugar atraente, legal para trabalhar como voluntário. E o Brasil foi finalista, não lembro se nas duas, mas nas duplas masculinas com certeza. Eu ficava na arquibancada com o público. E tinha um rapaz que trabalhava como segurança na porta de entrada, na Avenida Atlântica, junto com um voluntário. Nos últimos cinco pontos saí da arquibancada e troquei de lugar com eles: “Podem ir lá assistir ao final do jogo e eu fico aqui cobrindo a de vocês”. Podia ter visto o último ponto, a vitória do Brasil, mas eu estava na porta. Eu tinha algumas pretensões, mas estava desprendido. Eu brinco: “eu queria ter acendido a pira na abertura”, “eu queria dar o pontapé inicial no Itaquerão”. Na verdade, eu faço qualquer coisa para poder ajudar, ainda que estivesse naqueles Jogos Pan-Americanos fazendo uma coisa que estava aquém do meu potencial, acredito. Por isso não tinha acesso aos bastidores, tal como os remunerados, os coordenadores, o pessoal da área de marketing, os patrocinadores que frequentam os eventos. O voluntário fica numa posição periférica nesse cenário. Mas é emocionante estar lá… Voluntários me ajudaram muito nas cinco Copas em que estive presente. Neste ano quero retribuir um pouco e quero sentir que estou participando, nem que seja para ficar na rua, de segurança.

Sérgio, você esteve in loco em diversas Copas nos últimos 20 anos. Juntando essas experiências com as suas pesquisas e observações aqui no Brasil, até que ponto você pode afirmar que o Brasil é o ‘país do futebol’?

Quando voltei da França achava que era, mas agora acho que é “um dos” países. Na Inglaterra o futebol também é significativo. Não só a Inglaterra, mas a Grã-Bretanha de forma geral. Receberemos muitos escoceses em junho e a Escócia não está na Copa. Eram muitos escoceses na África do Sul, nos Estados Unidos. Eles são divertidos, gostam de futebol, entendem e acompanham. Às vezes sabem mais sobre a nossa seleção do que nós mesmos. Até achava que eles eram brasilianistas, mas eles também sabem dos outros países. Eles gostam de futebol, diferente de nós. Na Inglaterra o pessoal torce pelo time da quinta divisão e vai a todo jogo. Isso acontece também na Itália, Alemanha e Argentina. Acredito também que o Brasil já foi mais o país do futebol, como na minha geração. Hoje existem muitas coisas que atraem a garotada. Talvez em números absolutos a audiência do futebol da Rede Globo esteja aumentando, mas em termos relativos está diminuindo, porque a população está aumentando e outros interesses estão surgindo. Existem duas formas de responder isso: se o Brasil é o país do futebol por ser, dentre todos os países, o mais interessado pelo esporte; ou se o futebol é o que mais interessa à população brasileira independente dos outros países. Acredito que as duas coisas decaíram um pouco. Quando somos crianças acreditamos que futebol só existe no Brasil, que o futebol foi inventado aqui. Depois que comecei a andar por aí percebi que existem outros povos tão fanáticos quanto o brasileiro, caso da Inglaterra, Argentina, Itália, Alemanha e talvez até alguns países africanos. Não somos tão absolutos do ponto de vista de gostar. Na questão do praticar também acho que já fomos mais ativos. Como disse, acredito que vivemos o ápice na década de 1970. A Alemanha tem não sei quantos milhares de atletas profissionais, todo mundo joga. Até nos Estados Unidos, pois agora os homens estão jogando, mas as mulheres já jogavam desde sempre. Eles nunca serão o país do futebol, pois lá tem o basquete, o beisebol e o futebol americano. Mas eles podem se aproximar do Brasil em termos de qualidade técnica. Lembro-me do vôlei de quadra: os americanos não tinham tradição e ganharam do Brasil nos Jogos de Los Angeles. Quando eles estão determinados a fazer algo, eles fazem. Pensando no interesse pelo futebol, pela cultura do futebol, eu estava mais empolgado quando comecei a pesquisa. Achava que todos gostavam de futebol no Brasil. Hoje menos. Meus sobrinhos gostam, acompanham, têm a carteirinha do Fiel Torcedor que ganharam do tio, mas eles têm outros interesses. Na minha geração todos paravam para ver um jogo ao vivo. Eu mesmo não paro para ver os jogos hoje. Gosto de ouvir no rádio (risos). Perco alguns jogos, mas ainda acompanho, faço minha tabelinha. Vejo que não existem mais tantas pessoas como eu. Assim, podemos olhar de dois modos: comparando com outros países e comparando o futebol com outros interesses. Acho que nos dois casos não somos absolutos. O Brasil é “um dos países do futebol”. Ainda temos uma imagem internacional muito forte por conta das conquistas. Éramos o país dos atacantes. O prêmio de melhor do mundo foi para Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho, Kaká. Mas infelizmente, pelo menos por agora, não é mais. Talvez com o Neymar…

O interesse do brasileiro pela Copa do Mundo, por exemplo, está decaindo. Se os brasileiros gostassem o que eu achava que eles gostavam, no meu ponto de vista, não ocorreriam manifestações, deixariam para depois, não nesta época. Por mais que você seja contrário às coisas que estão acontecendo, se gostasse tanto quanto eu achava que gostava, deixaria as manifestações para depois. Se tiver um fanático pelo U2 e tiver manifestação contra show do U2, ele vai ao show. Eu fiquei incomodado na Copa das Confederações. Tive dificuldade em Fortaleza. Foi muito difícil assistir Brasil x México, não conseguia chegar, estava com a bicicleta, tentando achar um caminho, e quase todos os lugares estavam bloqueados pelos manifestantes. E eram pessoas que também estavam de camisa amarela, de cara pintada, pareciam torcedores!. “E o direito de ir e vir? Você não gosta de futebol? É o Brasil que vai jogar. Não conseguiu comprar ingresso? Vai assistir pela televisão. Pô, é jogo do Brasil!”. Não sei se na Alemanha aconteceria uma coisa dessas, por mais que os alemães estivessem incomodados com a situação. Se fossem os times deles, Ceará x Fortaleza, eles fariam isso? Em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro aconteceu a mesma coisa. No Mineirão, eu tinha deixado a bicicleta perto do estádio. Mas eles interditaram uma saída por causa das manifestações e todo mundo teve que dar a volta no Mineirão para o outro lado. Demorei mais de uma hora para voltar ao lugar onde estava a bicicleta e poder ir embora. A Copa das Confederações foi horrível. Vi uma equipe de imprensa mexicana que não conseguiu passar de carro entre os manifestantes e os jornalistas tiveram que ir andando, carregando o equipamento. Acho que algumas reivindicações são justas, mas não é hora, não é local. Se o Brasil quer ser o país do futebol não pode ter manifestação em dia de jogo.

Sérgio Rodrigues Paz, acredita que o Brasil não é unanimidade como país do futebol. Foto: Max Nigro Rocha.

Sérgio, para finalizar: sabemos que você tem uma ótima história envolvendo a Copa do Mundo de 1994…

Minha primeira Copa foi nos Estados Unidos. Comprei uma passagem bem barata quando a Copa já estava rolando. E comprei para pegar o jogo das quartas de final, disputado no Texas. Para isso, o Brasil precisava ser primeiro da chave. Comprei a passagem e o Brasil estava jogando contra a Suécia e perdendo. O Brasil estava classificado, mas perdendo da Suécia iria ser segundo do grupo, e não iria jogar no Texas. Mas o Romário empatou o jogo com aquele gol de bico. Era o estilo do Romário, acho que todos os mil gols dele foram assim (risos). O Brasil conseguiu ficar em primeiro lugar. Cheguei nos Estados Unidos no dia 4 de julho. O brasilianista Matthew Shirts conta que uma vez levou o filho brasileiro aos Estados Unidos, era 4 de julho, e o filho perguntou: “Pai, com quem os Estados Unidos jogam hoje?”. Na cabeça do garoto, um monte de bandeiras americanas significava que os Estados Unidos iriam jogar. Na verdade, eram as comemorações do 4 de julho. No Brasil, em épocas anteriores, quando o garoto tinha cinco anos, bandeiras na rua expressavam jogo do Brasil. Mas hoje não é mais. Eu cheguei num 4 de julho, vi um monte de bandeiras americanas… e era jogo dos Estados Unidos… contra o Brasil! Foi a primeira vez que botei o pé nos Estados Unidos. Aliás, foi minha primeira viagem de lazer para o exterior que fiz sozinho. Antes tinha feito viagens pela USP para congressos. Essa era uma experiência totalmente diferente para mim. Logo de cara aluguei um carro, nunca tinha dirigido um carro automático e na primeira tentativa de “mudança de marcha” o carro brecou: “o que aconteceu aqui?”. Eu não conseguia nem descobrir um lugar para assistir ao jogo. Eu estava em Miami e o jogo era em São Francisco. Comprei um jornal e descobri um restaurante brasileiro. Cheguei lá e tinha um monte de brasileiros assistindo. Era um dos poucos lugares para se ver o jogo, ainda mais num feriado americano. O jogo foi um sufoco, com um a menos, Leonardo expulso. Só pensava: “Se o Brasil não ganhar, não vou conseguir ver nenhum jogo”. Já tinha comprado o trecho Miami-Dallas. Mas o Brasil ganhou e fui para Dallas. Eu não tinha ingresso. Como fazer? Quem pode, compra pacote com ingresso incluso. Mas eu sou econômico. Se eu gastasse em pacote, só conseguiria comprar um a cada dez anos. Um pacote custa 25 mil dólares. Minhas viagens têm tido um orçamento de 6 mil e 7 mil reais para ficar a Copa inteira, contando tudo: passagem, estadia, ingresso. No USA Today, um jornal mais popular nos Estados Unidos, tinha anúncio de ingresso. O próprio cambista anunciando ingresso. Era em Dallas, aluguei um carro, fui lá e comprei por 105 dólares. Acho que o preço normal do ingresso era 40 dólares. Fui para o estádio. Ao meu lado, sentou-se um escocês que tinha comprado ingresso na porta do estádio por 20 dólares. Mas eu não me arrependi, pois eu não queria correr o risco de chegar na hora e não ter ingresso. Lembro que no dia em que comprei o ingresso fiquei super feliz: “nossa, meu primeiro ingresso de Copa do Mundo”. Estava dentro do meu orçamento. Fiquei em albergue, diária de 15 dólares para poder gastar em ingressos. Assisti ao jogo, o Brasil ganhou. Na semifinal, a Suécia novamente pela frente, em Los Angeles. Paguei 80 dólares pelo ingresso, menos do que nas quartas de final, mas de novo acima do preço. Porém, tive um problema: enquanto escrevia alguns postais na praia, quebraram o vidro do carro que eu tinha alugado e levaram minha sacola de roupas. Deixaram uma sacola de roupas sujas, mas fiquei quase sem roupas. Porém era uma época em que o real estava equiparado ao dólar, um para um, então comprei aquelas camisetas de Los Angeles que na primeira lavagem já estraga. O carro era barato também, acho que uns 20 dólares por dia. Era bem barato quando o dólar estava um para um. Acabou o jogo, o Brasil ganhou, e encontrei três paranaenses que estavam procurando lugar para ficar. Acabamos ficando juntos no hotel. E eles tinham achado na arquibancada uma camisa nove do Corinthians. Na época, a camisa do Viola, centroavante do Corinthians. Quando o Ayrton Senna morreu, eu acompanhei o cortejo do Senna com a minha bicicleta. Vendo o caixão naquele momento, pensei: “ainda verei esse caminhão de bombeiros trazendo os jogadores da Seleção Brasileira, o Viola com o caneco na mão e ele fará o gol da vitória”. Dias depois, o Viola apareceu na televisão narrando: “Eu sonhei que o Parreira falou: entra aí, Viola. E eu vou fazer o gol do título”. Eu juro que pensei naquilo no dia do cortejo do Senna, antes de ver a entrevista do Viola, acho que para o Fantástico.

Bem, eu fui para o estádio na final da Copa de 1994 usando a camisa do Brasil e com a camisa do Viola pendurada no ombro, ganha dos paranaenses. Como não tinha ingresso, cheguei com bastante antecedência. Nos outros dias consegui pechinchar, afinal, os estádios eram enormes e o público estava desinteressado. A maioria era composta por mexicanos e porto-riquenhos. Mas na final não foi fácil. O mundo inteiro queria estar lá. Tem muito italiano nos Estados Unidos, por exemplo. Comecei a ficar preocupado. Eu tinha reservado 2 mil dólares. Era o que tinha sobrado no último dia após deixar tudo pago. Naquele tempo se levava dinheiro em notas, hoje as pessoas utilizam mais cartão de crédito. Encontrei três mexicanos que também estavam querendo ingressos. Começamos a procurar. Apareceu um cara oferecendo um ingresso por 2 mil dólares para o setor 1, o melhor setor. “Não, a gente quer setor 3”. Se bem que agora, para a Copa de 2014, tentei comprar os ingressos mais caros. Bem, mas depois encontramos um cara que, depois de muito pechinchar, ofereceu um ingresso por 500 dólares. Mas era um ingresso só. E eu estava com três mexicanos. Cada um olhou para a cara do outro e decidimos esperar um pouco mais, pois notamos que o preço estava baixando. E faltavam ainda duas horas. De repente apareceu um brasileiro, com uma câmera filmadora grande, monstruosa, numa época em que surgiam esses equipamentos caseiros. Ele disse que tentou entrar e não tinham deixado, pois parecia filmadora profissional. Era regra da FIFA. Lá nos Estados Unidos, como no Japão, o que está escrito é o que vale. Esse é o estilo do torcedor brasileiro que vai para a Copa: pessoas com muita grana, que não estão acostumadas a ver jogos em estádios. Tipo: “Eu não vou nessa porcaria de jogo coisa nenhuma, não querem me deixar entrar com minha câmera. Vou vender meus ingressos”, “Ah é? Quantos ingressos?”, “Quatro. Só vendo os quatro”. Cada um tinha custado 180 dólares. O ingresso da final. “Eu quero 350 dólares cada um”. “Legal. Fechado!”. Mas os mexicanos tinham sumido. E apareceu o Ribeiro, conhecido como Cotonete, um cabeludo, torcedor do Corinthians, que era camelô no centro de São Paulo. Ele era um desses torcedores profissionais. “Eu vou comprar, mas espera um pouco, já volto…”. Alguma pessoa devia estar financiando o Cotonete. Acabei comprando os quatro ingressos antes dele, 1.400 dólares. O cara vendeu, verificou as notas para ver se não eram falsas. E eu fui procurar os mexicanos, mas não os achei. O que ia fazer? Estava com três ingressos sobrando. Botei um ingresso no bolso e comecei a cantar: “Três ingressos por 400 dólares”. Joguei para cima, pois era a chance de tentar recuperar algo, afinal minha mala tinha sido roubada. Um cara se aproximou, mas só estava interessado por ingressos do setor 1. Veja que já tinha abaixado o preço. Ele queria o setor 1 por 400 dólares. Veio outro, olhou os ingressos e disse “Mas espera aí: aqui está dizendo 180 dólares”, “Foi o que eu paguei”, eu respondi. Ele disse: “Come with me”. Puxou meus braços para trás, colocou um par de algemas. Era um cara bem forte, com um rabo de cavalo. Ele me arrastou e me fez subir uma escadinha num trailer utilizado como posto policial, destes utilizados agora nos estádios brasileiros. Ele me levou para interrogatório.

Eu não comentei antes, mas tinha visitado no Texas um professor para tentar engatar minha pós-graduação em Engenharia. Fiz uma entrevista com ele e já tinha acertado que voltaria no ano seguinte, como de fato voltei. Bom, começou o interrogatório e comecei a chorar desesperado. Eu sou muito careta. Nunca fui a uma delegacia no Brasil. Nunca me meti com nada ilegal. Quando dirijo, paro até no sinal de pedestres às duas da manhã. Meu pai era muito certinho e eu também. Eu sou fiscal da FUVEST. A FUVEST não dá recibo, mas eu declaro no imposto de renda. Imagina… (risos). Eu sou solteiro, tenho uma vida tranquila e despreocupada. Moro com a minha mãe e, até hoje, aos 87 anos, Dona Alzira faz café da manhã para mim todo dia. Comecei a ficar envergonhado: “Estou preso aqui. O que vai acontecer comigo? Serei deportado, não poderei voltar para o mestrado, minha ficha vai ficar suja. Eu gastei 1.400 dólares por nada” (risos). Comecei a ficar desesperado e não parava de chorar. Eu tinha 35 anos! O cara começou a me entrevistar. Lembro que ele perguntou a minha altura e eu falei correto, no sistema métrico deles, em pés e polegadas. E o cara tomando nota de tudo. Ele pegou os três ingressos e colocou num envelope. E sossegou um pouco, me livrou das algemas, quando contei a história sobre como comprei os ingressos, o cara com a filmadora, viu que eu tinha um ingresso guardado no bolso, percebeu que eu não era cambista, falei que eu era pesquisador universitário, engenheiro. De repente, chegou um policial com um cara que estava tentando vender um bolo enorme de ingressos. Acho que eram falsos. O policial que me interrogava percebeu que tinham pegado um peixe graúdo, colocou meus documentos em cima mesa, disse para que eu ficasse calmo e foi falar com o cara que tinham acabado de trazer. E do nada bateu um vento forte e meu ingresso, que estava junto com meu passaporte, voou para fora da janela no meio da massa lá embaixo. Se alguém disser que assistiu Brasil x Itália em 1994 com um ingresso que caiu do céu, é verdade, pois eu estava no segundo andar de um trailer. O interrogador estava de costas para mim, mas o policial que tinha trazido meu “colega” de detenção estava de frente. Ele viu e comentou com o interrogador, que abriu o envelope, tirou um daqueles três ingressos que eu estava tentando vender e disse: “Se você não parar de chorar, vou te prender…”. Parei de chorar, me contive, ele me deu um ingresso e disse que eu estava dispensado. Antes de sair ainda perguntei: “O senhor acreditou na minha história?”. Não queria sair de lá sendo considerado um bandido. Fui um bobo, trouxa. Depois eu vi que é permitido vender até certa distância do estádio. Existem certas regras, como poder vender pelo jornal. Se eu quisesse vender na porta do estádio, teria que ser pelo preço do ingresso. E o jogo? Quando entrei no estádio já estava no começo do segundo tempo. Perdi a Carly Simon, que eu amo de paixão, e que fez o show do intervalo. Ao meu lado tinha um mexicano. Eu sentado torcendo com a camisa do Brasil e com a camisa do Viola. Teve o segundo tempo e a prorrogação. Estava desesperado. Minha primeira final de Copa do Mundo. E o Viola entra em campo. Na hora lembrei-me do meu pressentimento e da declaração no Fantástico. Eu falei para o mexicano ao meu lado: “Essa camisa é dele, do time em que ele joga”. O mexicano perguntou: “Mas o Viola é seu irmão?”. Na hora em que o Viola fez aquela jogada e quase fez o gol, eu estava do outro lado. Brinco até que quase levei uma bolada do Baggio na hora do pênalti (risos).

Enfim, depois de um tempo recebi uma carta aqui no Brasil: “Por favor, compareça à Delegacia de Pasadena”. Eu tinha um amigo que morava em Los Angeles. Fiquei com medo; pedi para ele ir. Ele telefonou perguntando qual era o assunto. O pessoal da delegacia informou: “Ele tem que comparecer aqui para retirar dois ingressos que lhe pertencem” (risos).

Sérgio Miranda Paz, possui doutorado em turismo, cuja temática aborda o futebol como patrimônio cultural do Brasil. Foto: Max Nigro Rocha.
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