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Matthew Shirts

Equipe Ludopédio 10 de abril de 2013

Norte-americano, nascido no sul da Califórnia (EUA), Matthew Shirts carrega o título de “brasilianista”. Formado em Ciências Sociais, pela Universidade de Berkeley, e pós-graduado em História, pela Universidade de Stanford, Matthew Shirts também estudou na Universidade de São Paulo durante um ano. Sua carreira acadêmica foi marcada pelo trabalho com o historiador Richard M. Morse, da Universidade de Stanford, e colaboração (e amizade) com os historiadores brasileiros José Carlos Sebe Bom Meihy e José Sebastião Witter, participando inclusive da pioneira coletânea Futebol e Cultura (1982).

Entre idas e vindas, Matthew mudou para São Paulo nos anos 80. Passou a atuar como jornalista: trabalhou na revista Super Game Power; foi editor do caderno Folha Negócios, do jornal Folha de S. Paulo; em 1994, inicialmente escalado para cobrir a Copa do Mundo, começou a escrever crônicas para O Estado de S. Paulo, onde permaneceu como cronista até 2011. Atualmente, Matthew é cronista da revista Veja São Paulo (SP) e editor-chefe da National Geographic, além de atuar como coordenador do site Planeta Sustentável. Em 2010, publicou o livro de crônicas O Jeitinho Americano – 99 Crônicas (Ed.Realejo).

Matthew Shirts
Norte-Americano Matthew Shirts, participou da pioneira coletânea Futebol e Cultura (1982). Foto: Max Rocha.


Primeira parte

Matthew, vamos começar pela sua infância nos Estados Unidos. Você tinha algum contato com o futebol? O esporte despertava algum interesse?

Não, zero, eu aprendi a gostar do futebol. Eu gosto de esportes, gosto de todos os esportes. Eu gosto de jogar, eu gosto de assistir. Se eu conhecer a regra – eu ouvi isso de Woody Allen uma vez, e eu sou igual a ele – se eu conhecer a regra, já me pegou, eu já gosto, já assisto, qualquer esporte. Eu só não consigo entender críquete e eu estou tentando. Mas fora o críquete, que eu ainda não consegui gostar, eu gosto de tudo. Mas eu não tinha contato nenhum. Naquele tempo, nos anos 60, anos 70, nos Estados Unidos, havia muito pouco futebol. Teve aquele “momento Pelé”, mas ninguém sabia nada sobre isso. Quando eu vim para o Brasil pela primeira vez, aos 17 anos – foi em 1976 –, e eu fiquei hospedado numa casa no Mato Grosso com uma família sensacional, chamava Família Fedrizzi, e tinha um garoto, e eu tinha uns 17 anos, ele tinha uns 14, e ele era um palmeirense fanático. Aliás, a família inteira. O pai era um italiano, que tinha fugido para o Brasil depois da 2ª Guerra Mundial. Ele foi preso pelos ingleses. No primeiro dia na guerra ele foi preso pelos ingleses, passou a guerra num campo de prisioneiros no norte da África, sofreu muito, e queria sair da Europa. Ele olhou no mapa e foi lá para o fundão do Mato Grosso. E para lá que me mandaram no intercâmbio. E foi muito legal. E o garoto palmeirense, fanático por futebol, me ensinou tudo. Então, eu lembro dele mostrar uma revista Placar com a tabela do Brasileirão; tinha um bilhão… cento… tinha um monte de times! E eu fui pegando gosto por aquilo. Eu gosto de esportes, como eu disse. Eu fui pegando gosto, mas de assistir, não joguei. E aí eu saquei naquele momento, depois de tudo isso, que seria muito divertido se eu me declarasse corintiano naquela casa de palmeirenses. E isso foi logo antes ou depois, eu não me lembro, da invasão do Maracanã pela torcida do Corinthians em 1976. E eu me declarei corintiano e o impacto foi muito maior do que eu esperava, foi sensacional! Eles ficaram desesperados. “Mas como assim, corintiano? A gente fez alguma coisa? Te tratou mal?”. Foi muito bom! Aí houve a invasão, eu assisti esse jogo. Houve esse período muito rico na história do Corinthians, que vai terminar com o fim do jejum de 26 anos. E aí, bom, eu era corintiano, eu tinha virado corintiano. Quando eu voltei para os Estados Unidos e fui para faculdade tinha muito pôster do Corinthians, muita coisa na parede, e aí eu comecei a jogar futebol. Tinha obrigação de um curso de Educação Física lá na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e tinha todo tipo de atividade possível, e eu escolhi o futebol e fiz muitos cursos de futebol.

E lá você estava vinculado a qual curso?

Eu fazia Estudos Latinoamericanos, que era uma mescla de língua portuguesa, literatura latinoamericana, história etc. E aí eu voltei, e no terceiro ano eu fiz o intercâmbio, com o Zé Carlos [Prof. Jose Carlos Sebe Bom Meihy], e aí a gente começou a estudar; ele me botou para ler toda a bibliografia que existia sobre o futebol. A gente ia ao centro da cidade buscar, comprar livros naquelas livrarias que vendia livro de bacia, então eu li tudo quanto era coisa de sub-literatura, que era umas coisas medonhas sobre a história do futebol no Brasil, para participar daquele livro com ele e com o professor Witter [Prof. José Sebastião Witter].

Nesse cenário, quando você veio para o intercâmbio no Brasil, você tinha já conhecimento de elementos da cultura brasileira?

Quando eu vim no intercâmbio, já, muito. Eu já vim, já falava português, já tinha dois anos de faculdade, e nos dois anos de faculdade só fazia estudos latinoamericanos, então tinha uma boa noção. Na USP eu já era macaco velho. Quando cheguei, inclusive, o diretor antes do Zé Carlos, uma figura, chamado Carlos Bakota, americano-mexicano, de origem mexicana, me esperou no aeroporto e vieram 20 alunos americanos, e quase todos eles vinham pela primeira vez. Mas eu já cheguei com a camisa do Corinthians (risos).

Mas a primeira vez foi com 17 anos…

Foi ali que eu descobri, que comecei a gostar, comecei a seguir, e a partir daí, na Universidade, continuei jogando, aí voltei. Depois de me formar fui fazer pós-graduação. Eu estou tentando lembrar quando eu escrevi esse artigo. Porque, na verdade, o único trabalho acadêmico meu, sério, é sobre o futebol. É esse artigo sobre a democracia corintiana, que foi publicado num livro e depois republicado numa revista do Wilson Center. Como que foi isso? Quando foi isso? Caramba, eu não lembro exatamente como eu comecei a escrever, eu escrevi aquilo em inglês mesmo. Eu vou tentar achar esse artigo para vocês inclusive, se quiserem colocar no site. Porque é um trabalho acadêmico de verdade. É o único, porque depois eu abandono a academia; bom, fui ser jornalista. Mas ficou essa minha pequena contribuição (risos).

E como que você foi parar nesse ramo acadêmico do futebol?

Fui levado pelo Zé Carlos. Como parte do curso, fui um dos alunos escolhidos por ele; eu era muito entusiasmado, gostava muito do Brasil e o Zé Carlos falou “nós vamos estudar isso, porque você precisa, se você quiser falar do Brasil, você precisa entender a cultura popular brasileira, você não pode falar do Brasil sem entender o que é umbanda, ou o que é a macumba, o que é carnaval, o que é futebol…”. Então, é um ramo interessante, mas visto naquela época como muito pouco sério. Ainda é, hoje aparece um pouco desse estigma. Cada vez menos, acho que está melhorando muito. Mas não levava muito naquela época; ninguém levava o futebol a sério como assunto. O futebol era visto quase como um sintoma de subdesenvolvimento. A academia achava, desconfiava fortemente que fosse o ópio das massas, e provavelmente responsável por males que iam da pobreza à ditadura e tudo mais (risos). Eu acho que Sócrates dizia que a democracia mudou muito de muita coisa. Ninguém acreditava que um time de futebol pudesse ter esse tipo de inserção política naquele momento. Vocês deviam ser criancinhas ainda, né? (risos). É, então, vocês não pegaram, mas aquilo foi muito forte, muito novo, muito louco. Futebol era, como é, um pouco, mas era um reduto reacionário de uma tradição e moralismos, e a democracia corintiana trouxe um pouco da contracultura mesmo. E inclusive é interessante notar hoje essa contracultura e a luta contra a ditadura, mas tinha um componente fascinante que era a parte da liberdade de beber, de drogas, essa parte da contracultura que você vê que tanto Sócrates como o Casagrande tiveram problemas muito sérios depois, com isso. O Sócrates com álcool, o Casagrande com drogas, que são problemas da minha geração. São problemas maiores de quem abraçou a contracultura, é interessante. Mas teve um impacto enorme, enorme, de mudar a maneira como as pessoas olhavam para o futebol na universidade.

Você já tinha visto algo parecido nos esportes americanos?

Sim. É interessante isso, porque a contracultura teve um impacto nos esportes americanos. A maior figura disso é o Muhammad Ali, é o boxeador que era Cassius Clay, negro, que em 1960 ganha a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Roma, e era o fenômeno do boxe. E era para ele se comportar como um bom negro comportado, e dar graças a Deus pelo o que ele tinha de campeão de boxe. Mas ele não tinha nada disso, ele virou muçulmano, assumiu, mudou de nome, e isso teve um impacto gigantesco. E se recusou a lutar na Guerra do Vietnã. E ficou. Não sei se você sabe dessa história, mas o Ali muda de nome, e ele, depois de Olímpico, ele é campeão dos pesos pesados, uma, duas, não sei quantas vezes. É um dos maiores, senão o maior boxeador da História. Aí o exército americano o chama para o serviço militar obrigatório para o Vietnã, e ele claramente não iria, como era uma celebridade, ele não iria lutar, ele ficaria, não sei fazendo o que, mas ele se recusa por seus princípios, se dizendo pacifista, e perde o título e passa três anos preso. E ninguém acreditou, mas como que um boxeador pode ser contra a guerra? Isso foi, assim, um acontecimento da minha infância, me marcou profundamente. Eu tinha dez anos quando ele fez isso, e me marcou para sempre. Eu acho que foi um dos atos da minha geração e da geração mais velha que a minha – eu era muito precoce –, mas nos anos 60 a recusa do Muhammad Ali em lutar na guerra do Vietnã foi um dos atos mais importantes nos Estados Unidos. Então eu tinha isso, esses eram os caras que eu gostava, esses eram meus heróis. Eu não gostava dos heróis caretas, a favor do sistema, eu gostava desses caras mais de esquerda – hoje da contracultura, esquerda eu acho que é uma palavra errada. Então já tinha sim. Tinha o Ali, tinha outros atletas, tinha o quarterback do New York Jets, Joe Namath, que também exigia uma liberdade de comportamento e não era bem visto. Os esportes americanos sempre foram muito caretas também, e muito voltados para uma visão puritana do mundo, uma visão de que o esforço compensa o trabalho durol. E o Namath quebrou isso, ele queria levar uma vida de muitas mulheres e bebedeira, mas assumidamente. Isso sempre teve, mas era escondido. E tem outro livro sobre os bastidores do baseball, que chama Ball Four, e que é um clássico da literatura americana, que sai no fim dos anos 60, início dos anos 70, que faz a mesma coisa com o baseball, e conta como é na verdade, numa tentativa de acabar com a hipocrisia, de ser uma coisa para o público e outra coisa na verdade. Então tinha todo um movimento, nos esportes americanos, nesse sentido, que teve uma parte grande na minha vida. E na vida da cultura americana, de um milhão de pessoas, de milhões e milhões de garotos. Então eu tinha visto sim muita coisa parecida, e isso era muito novo para o Brasil e chegou em 1982. Mas então eu escrevi sobre isso, me capturou a imaginação.

E quais são essas contribuições da contracultura que você consegue ver na democracia corintiana? No que a democracia corintiana contribuiu para a transformação dessa realidade?

O brasileiro tinha um enorme preconceito contra o futebol. O futebol era visto, e ainda é, por muita gente, como uma atividade desnecessária, que não contribui, é um espetáculo de entretenimento, apenas, na melhor das hipóteses, um passatempo. Não era visto como uma coisa que efetivamente contribuía para a cultura do país. O que é um absurdo. Porque nada, talvez, tenha contribuído tanto para a cultura do Brasil como o futebol. O Brasil – eu vi um filme idiota outro dia, mas tinha uma frase que eu adorei, com o cara reclamando daquelas coisas, que “O Brasil não vai pra frente, isso aqui não é um país, isso aqui é apenas um time de futebol!” (risos). Eu dei risada com isso, eu achei legal (risos). É boa! Porque o Brasil é um país muito interessante, pelo seguinte: ele não tem uma cultura oficial. O Brasil é um país sem “cultura oficial”, então qual é a cultura oficial? Quais são as grandes datas do Brasil? Carnaval, Copa do Mundo, são todas festas populares. Mas o 7 de Setembro eles marcam todo ano e ninguém vai (risos)! Ninguém leva a sério. A cultura oficial não pegou, não deu certo. Por motivos mais ou menos óbvios, o histórico do Estado Brasileiro não é de glórias, é de corrupção, de sacanagem, de todo tipo de golpe, de movimentos antidemocráticos, então é muito interessante isso, que há um movimento, que as festas populares brasileiras vão assumindo o papel da cultura oficial. Então nos Estados Unidos a grandes datas, quais são? É 4 de Julho, é a independência do país. Na França, é 14 de Julho, é a Revolução Francesa. No Brasil não tem isso, é a cultura popular que fez, à sua maneira, é a cultura popular que faz a identidade. Por isso a identidade brasileira é confusa, às vezes. Porque é espontânea. E ela é interessante. Por isso que eu acho que o futebol é tão importante; ele realmente define a visão que o brasileiro tem se si mesmo, e a democracia corintiana foi muito legal, nesse sentido, porque ela fez com que a mídia e o país passasse a olhar com seriedade para o futebol. Porque o futebol tinha um lugar importante no Brasil, não é que é tudo, nem nada, mas é que ele é para ser levado a sério. Ao mesmo tempo você tinha um cara interessante escrevendo, que é o Juca Kfouri, que veio da universidade, é um produto da sociologia da USP, e que vai abraçar isso; você vê um publicitário interessante como o Washington Olivetto, que vai ver isso; então eu acho foi um negócio legal. E que teria acontecido de qualquer forma. Mas foi consolidado e liderado pela democracia corintiana. Hoje eu acho que todo mundo leva a sério o futebol como uma parte importante da cultura brasileira.

E quais foram os desafios de estudar o futebol, você sendo americano?

O mais difícil é jogar (risos)! Porque eu jogo muito, e eu sou muito ruim (risos). Porque eu não tinha cultura de pé, de bola no pé, entendeu?

O pessoal te coloca no gol então?

Muito! Eles tentam muito me colocar no gol. Mas eu sou melhor no ataque. Eu tenho essa tese, que se você é ruim, o costume, a tendência é colocar você no gol ou na zaga, o que é pior, porque você tem muita responsabilidade. Lá no ataque você não tem responsabilidade, o máximo que você pode fazer é um gol, assim, por acaso, mas como zagueiro ou goleiro você deixa entrar um monte de bola (risos)

Mas do ponto de vista acadêmico, você falou que existia esse preconceito sobre o estudo de futebol, como algo menor. Pelo fato de ser americano – visto que o futebol não é uma coisa muito presente, ou não era, pelo menos –, isso não foi de algum modo impeditivo para as pesquisas?

Não, não, pelo contrário. Eu acho que por ser gringo, tal como aconteceu com outros gringos, como o Anatol Rosenfeld, por exemplo, eu gosto, eu li – não é que eu estudei, mas é que eu li as obras dele, eu gosto dele, eu acho uma grande figura. Mas eu acho que isso é óbvio, para qualquer gringo. O brasileiro é que não consegue enxergar isso. Mas qualquer gringo chega aqui e a primeira, uma das primeiras coisas, é gritante, é óbvio. Era muito clara a importância do futebol no Brasil. E, hoje eu diria, no mundo. Isso mudou também, pois acho que o futebol é, talvez, a manifestação de maior impacto no mundo. São 3 bilhões de pessoas que seguem o futebol. Ou jogam, ou seguem, ou participam. Tá ali com o Google. Google e futebol, as duas coisas de maior impacto.

E falando um pouco do livro, como é que foi essa experiência, ainda muito jovem, de participar? Você tem três intervenções no livro…

É, na verdade, eu fui muito dirigido pelo Zé Carlos. Esse livro, eu acho, é cheio de erros – meus, não dos outros escritores, eu estou falando só da minha parte. Esse livro foi uma primeira tentativa de falar seriamente do futebol, tinha um exagero de marxismo ingênuo, um entusiasmo juvenil ridículo, hoje eu gostaria de mudar um monte de coisa. Mas enfim, hoje é o que é, e representou uma tentativa. E o Zé Carlos foi muito generoso em me incluir nesse processo, eu sendo tão novo e tal. Então, para mim, foi super importante; consolidou o meu gosto pelo assunto.

Você chegou a reler então em outras oportunidades?

Eu procurei evitar isso ao máximo (risos). Ao máximo! Mas é impressionante como esse livro reaparece toda hora. Depois eu voltei para os Estados Unidos, fiquei lá, fiz pós-graduação, fiquei indo e voltando, e anos depois eu mudei pra cá, e fiquei aqui. E fiz uma vida aqui. Eu tive três filhos brasileiros, duas mulheres, brasileiras – não simultâneas – e eu escrevo. Eu escrevi 17 anos no Estadão; comecei a escrever no Estadão sobre futebol, fui chamado na Copa de 94, e isso está contado no prefácio do meu livro “O jeitinho americano” que é escrito pelo Mário Prata, e o Mário Prata conta essa história. Mas na Copa de 94, o Estadão queria mandar um grupo de cronistas muito bacana, como de fato mandou. Tinha Luís Fernando Veríssimo, tinha Mário Prata, Danuza Leão, Pelé, era um negócio. E o Prata queria ir, foi chamado, mas ele morria de medo, porque ele não fala inglês. Não fala nada, coisa de mineiro, da geração dele. Ele conta isso. E aí ele inventou, falou para o diretor de redação que o americano tem que ir junto. O diretor de redação se chamava na época Aluizio Maranhão; hoje ele é o diretor de opinião do jornal O Globo, no Rio. Mas o Maranhão estava todo entusiasmado com seu projeto, e tinha grana, porque ele tinha vendido um puta patrocínio, e tinha grana para mandar um monte de gente, ele tem uma puta cobertura. E o Prata fala “não, eu vou, Maranhão, mas o americano tem que ir junto”. E ele, na hora, “mas quem é o americano?”. “Não, é o Matthew. O Matthew escreveu sobre isso e aquilo, e tal, entende de futebol, e é americano, então ele vai entender dos Estados Unidos, vai poder falar disso”. Na verdade, ele queria alguém pra segurar na mão dele e ser o tradutor… Nós éramos muito amigos, eu e o Prata. Somos muito amigos! Já éramos muito amigos. Então o Maranhão topou, por incrível que pareça, topou e me mandou. E eu tinha escrito, um pouco antes da Copa, em maio, quando o Ayrton Senna morreu, um longo ensaio no jornal, publicado no Estadão, sobre o Senna. Parou tudo, e surpreendeu todo mundo, então eu escrevi sobre isso como fenômeno sociológico. É um texto que eu gosto, pessoalmente, e que o Arnaldo Jabour me fez um imenso favor e me disse que só eu tinha entendido a morte do Senna. Ele falou isso na Folha de São Paulo, na concorrente, ainda por cima. Então eu estava bonito no Estadão. Assim, aí eles falaram “tá bom, vai o americano”. Mas eu não tinha experiência nenhuma em crônica. Aí na primeira noite, no primeiro dia, tinha que entregar uma crônica, e eu fiz, deixei de baixo da porta do quarto do Prata no hotel em São Francisco, e foi engraçado, e ele nunca esquece, o Prata voltou no dia seguinte, bateu na porta assim, e tal, falou “ó, Matthew, tá boa a crônica, só que tem metade do tamanho, você vai ter que escrever o dobro. E você não assinou, é bom assinar seu nome na crônica, e baseball escreve com ‘e’”. (risos). Era uma crônica dia sim, dia não. Aí fez sucesso, eles gostaram e me chamaram e eu fiquei escrevendo crônicas no Estadão por 17 anos por conta do futebol. E aí me mandaram para a Copa de 98 também, escrevi na Copa de 98, mas no resto eu escrevia sobre qualquer coisa. E recentemente meu passe foi comprado pela Veja São Paulo e eu saí do Estadão. Mas continuo de vez em quando. Como cronista você tem que tomar muito cuidado para escrever sobre o futebol. Porque se você falar do seu time você tende a alienar os outros caras. Então eu me permito muito pouco. Mas por motivo do campeonato mundial eu publiquei uma crônica agora sobre no fim do ano sobre o Corinthians. E realmente, não deu outra, cartas de são paulinos enlouquecidos (risos).

(risos) Leram?

Leram, leram. Os corintianos gostaram. Eu dei a entender que foi uma coisa importante para a cidade de São Paulo, e os são paulinos ficaram putos. “Nós já fizemos isso!” Eles, eu acho que foram campeões, quantas vezes?

Três vezes!

Três vezes (risos). Você é palmeirense ou são paulino?

Palmeirense!

Palmeirense, menos mal. (risos)

Você fala muito desse assunto ultimamente?

Não, mas eu vou te falar uma coisa. O Corinthians está bom hoje por causa da descida para a segunda divisão. O problema do Palmeiras é que ele não aprende, que eles só brigam (risos). O Corinthians aprendeu, foi impressionante, alguém se tocou de falar: “olha, isso não pode acontecer”. Aquilo é uma torcida de 16 milhões de caras, é só organizar isso, organizaram e tem sido só uma alegria de lá para cá. Mas o Palmeiras, eu tenho a impressão que tem muito italiano, né! (risos)

Matthew Shirts
Matthew Shirts carrega o título de “brasilianista”. Foto: Max Rocha.

Matthew, o professor Sebe comentou sobre um texto, que não tem nada a ver com futebol, mas que falava muito das relações entre as pessoas no Brasil, um que você escreveu sobre o vasilhame. Você pode falar um pouco sobre o texto?

É, esse texto ficou muito famoso, mas ele é melhor na memória das pessoas do que ele é de fato (risos). Eu vou reler (risos). Porque todo mundo ama esse texto. Mas porque realmente, é outra sacada minha, publiquei no Estadão um pouquinho antes da morte do Senna, e eu tinha um editor lá no Estadão que era amigo meu e gostava dos meus textos e publicava sempre que eu tinha alguma ideia; eu queria escrever alguma coisa e ele publicava. Uma foi a morte do Senna, e a outra foi sobre o vasilhame e o casco, o sentido social do casco. Então tem uma versão disso no meu livro, uma versão mais atualizada. Eu não sei se vocês entendem de casco. Eu acho que vocês não tem cultura de casco. Vocês tem cultura de casco? Vocês lembram de ver vasilhame de cerveja? Porque era um negócio…


Eu lembro. A gente era criança.

A gente era criança, mas nós não somos tão novos assim.

Mas eu via com meu pai.


É, porque quando eu mudei para cá, era uma questão muito importante você ter cascos. Então, eu sei histórias de um amigo que alugou uma casa; ele estava negociando o aluguel de uma casa. E o cara falou: “olha, não, eu quero dois mil reais de aluguel”, “não, mas é meio caro”. E o cara tinha dois engradados de vasilhame. Não de cerveja, só de vasilhame, vazio. Vazio era mais importante do que isso. E aí quarenta e oito garrafas vazias. E o cara falou “ó, e eu deixo os cascos”. E o cara fechou na hora. Quer dizer, porque casco não tinha um valor de compra. Então eu vou atrás nesse ensaio de tentar entender qual é o valor que tem o casco. Porque o casco tinha um valor moral. Continha uma promessa de que você devolveria aquilo. Você ia à padaria.. Se comprava casco, se comprava cerveja sem casco, isso já indicava um status social. Não é qualquer um que comprava uma cerveja sem casco na padaria. Então o artigo explora a sociologia disso e o que significava essa relação que não é contratual, que é uma relação que eu chamo de contextual. Eu acho que o Brasil tem uma cultura de contexto muito personalista, e tem um capital social muito grande, mas não tem dinheiro, não tem troco aqui, nunca tem troco. Isso desde a colônia. Inclusive tem um livro inteiro do Jorge Caldeira, sensacional, sobre a falta de troco. Ele não sabe que é sobre isso, mas eu encho o saco dele e falo que é sobre a falta de troco. Mas ele diz que o Brasil fez a acumulação de capital primitiva na colônia, sem moeda. Mas enfim. O casco sempre foi muito fascinante para mim. E eu escrevi esse texto que fez muito sucesso, as pessoas adoraram. E aí, na versão mais recente, que está no livro, que o casco se foi, né, lamentavelmente, eu conto um outro caso que é muito engraçado. Tem um amigo meu chamado Dain Borges. O Dain Borges é um dos brasilianistas mais importantes do mundo hoje, ele é professor de História da America Latina, sobretudo Brasil, na Universidade de Chicago. Mas o Dain estudou comigo, lá em Stanford, com Richard Morse, no início dos anos 80. E eu já tinha mudado para São Paulo, já tinha amigo aqui, e o Dain foi para Bahia fazer a pesquisa da tese de doutorado dele, que eu nunca li, mas eu sei que é sobre a história da família na Bahia. E é uma tese complicadíssima, que tem árvores genealógicas que ele montou a partir dos arquivos, assim, trabalho braçal e complexo de historiador de verdade. Então ele passou um ano fazendo isso e fez essa obra sensacional, importante, e quando ele estava saindo, ele passou de avião em São Paulo e ficou aqui, ficou comigo, para me visitar, e falou “Matthew, eu fiquei aqui esse ano e foi sensacional, Bahia, amei a Bahia, e tudo mais, foi bem, acho que eu vou escrever uma boa tese, consegui tudo para a tese, só teve uma coisa que eu não entendi”. Eu falei “O que é, Dain?”, “Como que é que você consegue casco?” (risos). E eu contei essa história. Aí eles enchem muito o saco do Dain, até hoje. Muito brasilianista leu esse livro, e eu uso o nome dele. Aí: “ô Dain, você conseguiu o casco?” (risos).

Dessas crônicas, Matthew, tem uma na qual você fala muito que vai olhar o futebol a partir do seu filho, com o álbum de figurinhas da Copa.

Eu não lembro dessa, qual que é?

Não lembro se é 2006 ou 2010…

Do Estadão?

É. Você vai analisar a febre do futebol a partir da coleção do álbum de figurinhas.

Eu teria que reler, eu não lembro que eu falei. Eu tenho muitas crônicas sobre futebol (risos). Porque, na verdade, eu já escrevi mais de mil. Dessas mil, umas cem são de futebol, provavelmente, que é um assunto que eu adoro. E depois de velho eu comecei a praticar – eu queria deixar isso registrado para posteridade – e aí eu jogo todo domingo com meu filho, Sammy, que tem nove anos. Tem uma quadrinha ali, super informal. Eles tentam sempre me colocar no gol (risos). Mas o outro lugar que eu jogo é na Tarrafa Literária. A Tarrafa Literária é um evento literário de Santos, que tem todo ano, e eu sou do conselho. É uma FLIP do B, assim, é uma FLIP super mais modesta, assim, do B. E tem um jogo todo ano – tem 5 anos a Tarrafa, eu acho, vai pro quinto ano agora – e eu participei de todos os anos, porque no primeiro ano um cara me chamou, depois ele editou meu livro, depois ele me colocou no conselho, então eu sou da Tarrafa Literária, e tinha um jogo de futebol, que era dos escritores contra um time local que chama Bambuzinho, que é um time de várzea dos anos 60, e os caras continuaram. Alguns morreram, eles estão velhinhos, eles têm minha idade ou mais – eu tenho 60 anos -, mas sempre continuaram jogando. Tem esse jogo todo ano e eu sempre sou o pior cara do jogo. Mas no ano passado, devido ao meu aprimoramento na quadra com meu filho Sammy, eu marquei dois gols. Então eu posso me aposentar… (risos) Não chegam a ser gols memoráveis, mas enfim… Ontem eu estava almoçando com o organizador da Tarrafa, e ele falou “pois é, mas esses dois gols vão ficar na história da Tarrafa”.

Confira a segunda parte da entrevista no dia 24/04/13.

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