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Ronaldo Lima (parte 2)

Equipe Ludopédio 20 de fevereiro de 2013

A entrevista desse mês é com Ronaldo Lima, produtor e narrador do futebol de várzea em São Paulo. Criador do jornal “A voz do futebol amador”, Ronaldo é uma figura conhecida no cenário varzeano de São Paulo.

Nessa entrevista, Ronaldo conta sua trajetória, fala sobre a paixão pelo futebol e pela locução esportiva, relata seus principais projetos etc. E conta histórias… muitas histórias da várzea!

Boa leitura!

Ronaldo Lima concede entrevista ao Ludopédio. Foto: Max Rocha.

Segunda parte

Qual a sua opinião – de alguém que vem acompanhando a várzea nos últimos cinco anos – sobre o atual cenário do futebol varzeano em São Paulo?

Quem chega hoje para ver o futebol da várzea, só vai encontrar o futebol da várzea mesmo muito pouco: o campo de terra, o cara que joga no time da sua vila. Infelizmente e até felizmente o futebol da várzea evoluiu, está evoluindo, e não volta mais.

Você acredita nessa ideia que se tem falado muito de que vem ocorrendo uma “profissionalização” da várzea?

Só não é profissionalizado porque não tem um órgão, como um CBF, uma Federação, ou uma liga, que trabalhe isso profissionalmente. Mas as equipes, pelo menos a maioria, trabalha muito sério isso aí. Se você pegar e ver que tem clube que antes de final de Copa Kaiser concentra três dias em hotel cinco estrelas, vamos falar mais o quê? Isso para disputar uma final de Copa Kaiser. O Pioneer fez isso, Vida Loka fez isso. O Classe A ia concentrar no sítio do jogador Marcos Assunção, por causa do Fá, irmão dele. Mas acabou não dando certo. É um trabalho que é feito profissionalmente. Eu mesmo fiz vários vídeos motivacionais para o Pioneer. Eles acertam bicho, você assina contrato. É tanto por jogo, tanto de combustível, tanto para assinar. Por isso que tem jogador profissional que vem para a várzea, pois vai receber mais que no futebol profissional.

Eu já escutei histórias de valores muito altos pagos a jogadores, presenciei também algumas negociações bem caras. Quais os valores mais altos que você já ouviu falar?

Dois jogadores que foram campeões em 2011, e em 2012 o time não passou nem para as fases finais, chegaram a ganhar apartamentos para trocar de time. Ganharam dinheiro para comprar apartamento no CDHU. Isso eu vi e isso é fato. Tem jogador que ganhou carro. Não vou citar nomes, mas tem jogador que ganhou carro, apartamento. A procura é muito grande. Hoje, para você ser campeão da Copa Kaiser, tem que ter elenco e tem que mesclar com experiência. A experiência custa caro.

Mas podemos dizer que existe muito futebol de várzea para além da Copa Kaiser?

Existem muitos torneios, muitas copas, tem a Copa Negritude, Copa da Paz, Copa BlackPower, ou seja, muitos torneios, muitos festivais. Mas a Copa Kaiser disciplinou o futebol da várzea. Antes tinha muita confusão, muita briga, tinha problemas sérios. Quando o Flávio Adauto pôs a mão e disciplinou, aí se passou a jogar futebol no futebol da várzea. Ainda tem confusões e problemas, mas a comissão disciplinar da Evidência é muito rigorosa. Tanto que o Vida Loka está suspenso três anos porque bateram na arbitragem. Enrico, você viu a confusão lá no campo. O time, um ex-campeão da Copa Kaiser, está suspenso por três anos. Se não fizer isso, perde o domínio, pois a rivalidade é grande. Aqui temos o Inter. Ali temos o Baffô, o Pioneer, e estes times se cruzam na Kaiser. Outros times estão lá mais pro lado de Diadema. Tem o Missionários. Tem muita rivalidade. E a rivalidade começa na contratação de jogador, pois um time vai e tira o jogador do outro.

O papel da Evidência Promotions nisso é fundamental? A organização da Copa Kaiser tem sido boa?

A organização deles sim. Eu não tenho o que falar do Vavá e do Flávio Adauto. Muito pelo contrário. Sempre me deram autorização, sempre me deram autonomia, nunca falaram nada sobre o que publicar no jornal ou não: “Ronaldo, é o seu trabalho, pode fazer tranquilamente”. O torneio organizado por eles não tem comparação. Todos elogiam. Em alguns outros estados, onde a Copa Kaiser é muito forte, pode até ser um pouco melhor, mas esse nível de competitividade, rivalidade e equilíbrio entre as equipes só tem na Copa Kaiser de São Paulo. O Diego já voltou para o Pioneer; estava no Adega, e já voltou para o Pioneer. É um zagueiro renomado, que se paga para ter no elenco. O Pioneer foi eliminado no começo da Copa Kaiser de 2012, um prejuízo enorme. Surpreendente. No ano anterior, chegou à semifinal e perdeu para o Baffô. Mas por quê? Elenco com muitas estrelas. O que acontece no profissional, acontece na várzea. Muita estrela no elenco não funciona. Tem que ter os ‘carregadores de piano’, e com vontade de comer o prato de arroz e feijão. E muitos não gostam, mas o Ajax ganhou em 2012. Acabou aquela estigma de que a Evidência privilegia o Ajax. Não tem nada a ver. O time tinha perdido várias semifinais e finais. Perdeu para o Pioneer, Vida Loka, NósTravamos. O Ajax é algo que eu não esperava encontrar no futebol da várzea. Eles têm sócio-torcedor; comercializam por volta de R$3 mil ou R$4 mil de venda de produtos do time num jogo.

Eu já fiquei quase uma hora ao lado da banquinha, observando a venda de camisetas e outros produtos. Contabilizei a venda de mais de vinte camisetas em 40 minutos. E R$60 cada camiseta.

Vem gente de fora comprar camisetas deles. Ainda não vi o presidente Kiko do Ajax – apenas nos falamos por email. É gratificante o time ter sido campeão nesse último ano, pois esse homem quase morreu dentro de campo. Ele teve um mal súbito, começou a ter parada cardíaca dentro do campo num jogo do Ajax. O time começou o jogo muito tenso e nervoso, ele caiu, começou a enrolar língua, foi aquele alvoroço. Pô, e nesse ano ser campeão; uma hora vou dar um abraço nele, pois é um cara que sofreu demais à frente do Ajax. Ali não é fácil; diretoria antiga, presidência antiga, é tudo ativo. É complicado. É um negócio que eu gosto, adoro, mas preciso me afastar um pouco para cuidar da parte de estabilidade familiar e financeira. Senão, você fica nesse mundo e deixa a vida correr. Você se envolve, a vida vai indo e eu tenho que cuidar da família.

Ronaldo Lima é produtor e narrador do futebol de várzea em São Paulo. Foto: Max Nigro Rocha.

Se você fosse o Flavio Adauto, ou outra pessoa ligada à organização do futebol de várzea em São Paulo, quais seriam suas propostas para melhorar a prática varzeana?

A primeira coisa que tinha que melhorar no futebol da várzea é ter uma liga, uma confederação, ou associação específica que desse assessoria para os times e jogadores. Muitos destes jogadores se machucam e são pais de família; dão o sangue, quebram a perna, aí têm que se afastar do trabalho na vida cotidiana, sem estrutura nenhuma. Muitas vezes é o presidente do clube ou a comunidade que ajuda a família desse jogador. Isso precisa melhorar. O cara que vai jogar na lama, debaixo de sol e chuva, num jogo ríspido, está sujeito a qualquer tipo de fratura. Teve um jogo que narrei, acho que em 2012, que o jogador quebrou a costela e saiu no meio do jogo. Numa entrada que ninguém percebeu nada; quando viram, ele não pode voltar. Muitas vezes quem segura essa bronca é o dono do time, ou o pessoal faz uma vaquinha, faz um churrasco, uma rifa da camiseta, para ajudar os jogadores. Um primeiro passo é ter alguma coisa nesse sentido. Um segundo ponto: pensar na premiação. Você não pode dar só cerveja para um time com os gastos atuais que os clubes têm na Copa Kaiser. 100 engradados de cerveja para a festa do time campeão. Isso tem que mudar. Eles têm que pensar em alguma coisa, até para beneficiar a própria comunidade, a sede do time, alguma coisa nesse sentido. E outra coisa que precisa, e é importante: a TV aberta. Uma TV aberta comercial. Por ser uma Copa Kaiser, há uma dificuldade de vender o produto; está vendendo uma marca, não um torneio. Mas o torneio ficou maior que a cerveja. Isso poderia ser mudado. Acho que essas são três situações que poderiam mudar. Premiação, assessoria para jogador, com sindicato ou outra coisa, e uma TV aberta, comercial. Iria dar uma audiência para o SBT que ele a emissora nem imagina. Se o Silvio Santos olhasse um pouco, se alguém tivesse um espaço, o SBT teria uma audiência que não tem num dia determinado, horário determinado, fora de concorrência, que eles nem imaginam. Nós estamos mexendo num universo de milhões de pessoas.

Os investimentos que a empresa tem feito nos últimos anos têm dado certo? Mais propagandas, página do torneio na UOL, álbum de figurinhas…

Assim como a Claro fez. Vou falar das duas, Claro e Kaiser. Para você trabalhar uma comunidade, ou um time de comunidade, você tem que ter gente dentro disso. Tem que saber como funciona. A Claro quando entrou – e por isso ela veio pro meu jornal – achou que iria vender os chips dela, assim, fácil. Mas para fazer um trabalho que deve ser feito você tem que saber o perfil, o que eles estão buscando e estão querendo. Se você não, não vai ter nada. A Kaiser, por exemplo, fez o álbum de figurinha. É inovador, é legal, futebol de várzea com álbum de figurinha; é até engraçado, pois tem muito diretor que posou como jogador. Cheguei a falar: “Você é cara de pau…”. Mas se você vai fazer um álbum de figurinha, chega aqui na sede do Inter, faz as fotos dos jogadores, tudo certinho, e reverte a renda para a sede do Inter. Você já está gravando a sua marca, que é interessante, vai estimular a venda do produto. O que eles fizeram? Eu vi na semifinal que eles estavam dando álbum e figurinhas, porque não vendeu. Você não cria estímulos. Você tem que estimular. Vem aqui, conversa com a presidência. Todos esses times têm ata, presidente, vice-presidente, diretor, tem tudo. “Olha, só o seu time tem tantas figurinhas para vender nas bancas do bairro”. Isso estimula. Acho que esse é o erro deles. Eles querem só colocar a marca, e aí se perde com o produto. Tanto que no jogo da Kaiser o cara está tomando Brahma. É a realidade. Outra coisa: a Heineken assumiu esse ano e o pessoal da Kaiser é muito fechado. Tentei muitas vezes conversar com eles sobre várias coisas. Deram muito pouco retorno. Não por arrogância. Mas até pelo instrumento que eu tinha, eles poderiam usar a favor. Esse trabalho que você está fazendo aqui e o que eu fiz não são fáceis. Debaixo de chuva, viemos de Osasco, ou da Barra Funda, ou do Socorro. Viemos porque gostamos do que a gente faz. Não adianta criar uma estratégia de marketing. Tem que fazer isso aqui. Comunidade é carente. Mas gera um emprego, gera uma situação diferente. Pelo menos essa é a minha forma de pensar. Eu estive na Copa Kaiser em São José do Rio Preto. Fui para lá conhecer o torneio. Meu amigo, quando voltei mandei as fotos para o Vavá e Flavio Adauto. Falei: “Olha os campos que os caras jogam lá…”. Coisa de profissional. Para você ver e comparar, tem um campo ruim lá, quase igual à Arena Kaiser, e no qual eles não gostam de jogar. Lá só tem tapete. Eu fui para São José do Rio Preto, com a camisa do Classe A, dentro da sede do Urano, que perdeu a Copa Kaiser Brasil para o Classe A em Curitiba. Cheguei lá, eles me abraçaram, fizeram churrasco. E por quê? Em Curitiba fiz entrevista com eles para o jornal, para a TV, tratei todo mundo igual. Cheguei lá e camisa deles; eles pediram a camisa do Classe A, eu dei, colocaram na parede. A Copa Kaiser lá é fantástica; é incrível o que eles têm lá. Eu falei: “Vocês deviam jogar contra o Ajax no campo do Flor”.

E qual sua opinião sobre as reformas dos campos de várzea, e a mudança do terrão para gramado sintético?

Acho ótimo para os jogadores. Eles são as estrelas principais da Copa Kaiser. Não só da Kaiser, mas de todas as copas. Vai facilitar o trabalho, sem estar sujeito a contusões, pois são pais de família, pessoas do dia. Eles não ganham R$200 mil por mês para na segunda-feira estar fazendo churrasco. Eles vêm aqui, jogam pelo Inter, mas na segunda-feira têm que trabalhar. Acho que a grama sintética é uma ótima evolução para os jogadores. Eu sou a favor. Já tive discussões com o Cocada, pois ele é do tempo da várzea antiga.

Você escuta o pessoal mais antigo reclamando?

Escuto. Mas sabe por quê? Vou te dizer e vou arrumar mais briga. Muita dor de cotovelo. A rapaziada nova que cuida do Internacional, por exemplo, tem que pensar com a evolução, não pode ficar parado, senão o Inter morre. O Baffô a mesma coisa, Pioneer também. Como é que vai ficar pensando na várzea de anos atrás se você tem que disputar a várzea de hoje? Não tem como. Então a várzea de antigamente junta os veteranos, faz um torneio e joga. Agora, quando o bicho vai pegar, não tem jeito. Eu sou a favor. Adorei a final no Pacaembu. Fantástico. Acho que para um jogador de várzea pisar no gramado e disputar um título no Pacaembu é um sonho. Um sonho! Tem jogador, como o Mentirinha, que em 2010 foi campeão pelo Pioneer, em 2011 ficou doente e não conseguia andar. Uma doença difícil, perdeu os movimentos do corpo. Sabe quem segurou? O presidente Sérgio e a Força Sindical de onde ele trabalha. Foi quem segurou ele, a família dele. Foi uma gratificação acompanhar a volta dele num jogo, quando fiz uma matéria especial com ele: ‘A volta do Mentirinha’. Um cara que estava condenado no futebol voltou a jogar. Quem faz isso? É o presidente, o diretor, a empresa em que trabalha, a Força Sindical tem um time de várzea, tem o emprego dele. A várzea pode dar tudo isso. É interessante.

Ronaldo Lima é criador do jornal “A voz do futebol amador”. Foto: Max Nigro Rocha.

Nesse sentido, para você, é “futebol de várzea” ou “futebol amador”?

Para mim é “futebol amador”, e que está próximo do futebol profissional. Tanto que mudei no jornal. A primeira edição era “A voz da várzea”. Mas a conotação é pejorativa, eu acho, pois tive dificuldades com algumas empresas. Eu tenho que pensar no financeiro. Já na segunda edição eu mudei: “A voz do futebol amador”. Eu vi isso na prática. Não se fala “Copa do Mundo da Várzea”, mas sim “Copa Kaiser”. Para disputar a Copa Kaiser, não dá para pensar como a Kaiser de antigamente. Tem que pensar como amador ou algo a mais.

O que você achou do documentário “Futebol de Várzea”, dirigido por Marc Dourdin, no qual você aparece com destaque narrando alguns jogos?

Adorei. 1h30 de filme. Ele pegou a alma do negócio. O dia a dia da várzea. Aparece o Dourado, a dificuldade que é apitar um jogo de futebol amador. E o Dourado ainda apita jogo de várzea. Aborda a dificuldade que é jogar futebol com a história do Douglinhas. Achei que o Marc foi feliz, pegou a alma do negócio. Da várzea até a elite, que é a Copa Kaiser. Muito bom.

E como foi ter colaborado com o trabalho da equipe do Museu do Futebol?

Muito legal. Senti que no começo elas estavam num terreno estranho, não conheciam. No Museu tudo é muito profissional, lidam com times profissionais. Lembro até hoje a primeira vez que a Karina foi na Arena, ela subiu na cabine, gravou um monte da minha narração. Ali comecei meu contato com elas, com o Paulo. E é muito bom abrir esse espaço para falar do futebol da várzea, do futebol amador. Quem for visitar terá acesso a uma riqueza de informação e cultural muito grande.

E quais são seus próximos projetos para 2013?

Dentro do futebol pretendo cuidar do jornal “A voz do futebol amador” junto com o Giba. Quanto estiver em São Paulo vou acompanhar algumas coisas, alguns jogos, mas a maioria das coisas ele vai fazer. Vou ver se a gente setoriza algumas coisas. Fazer fotos no Pioneer, no Ajax, no Baffô. Setorizar pelo menos as imagens fotográficas. No futebol, por enquanto, será isso. Não tenho pretensão de voltar a narrar. Se acontecer de alguém me chamar, pode ser que eu narre. Eu sei de uma coisa. No interior, futebol amador muito forte. Em algumas cidades pode acontecer de ser mais fácil arrumar patrocinador do aqui em São Paulo. Sondei algumas situações. Mas, a priori, é o jornal, que vai sair nos primeiros meses de 2013.

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