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Betão (parte 2)

Marcel Diego Tonini, 6 de novembro de 2015

A entrevista faz parte do projeto Memórias dos boleiros: histórias de vida de atletas e de integrantes de comissões técnicas brasileiras que atuaram no exterior. Esse projeto foi fruto de uma parceria entre LUDENS-USP, Museu do Futebol e o portal Ludopédio.

Esse projeto tem como proposta reunir as histórias de vida de jogadores de futebol e de integrantes das comissões técnicas que tenham atuado no exterior. Ao optarmos pela história de vida, teremos acesso a uma série de discursos até então pouco investigados. Isso pode ser verificado quando se recorre à história do futebol e se percebe que existe uma história que é considerada “oficial”. Essa pesquisa será uma forma de ampliar discussões sobre o futebol a partir da história de vida dos jogadores e integrantes das comissões técnicas. A história oral será o método adotado para a construção de um diálogo com o referencial teórico das Ciências Humanas, mais especificamente a produção da Antropologia, da História e da Sociologia. Por meio da história de vida, ainda será possível registrar memórias, histórias e experiências dos sujeitos mencionados, além da criação de um banco de vídeos com as entrevistas realizadas de modo a constituir um acervo para preservar a elaboração de tal memória, quer se refira de modo restrito à carreira dos mesmos, quer, de modo geral, ao futebol brasileiro.

 

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Betão durante a entrevista. Foto: Museu do Futebol.

 

 

Segunda parte

Quando você foi para a Europa, sua esposa foi junto ou você foi sozinho?

Não, eu fui sozinho à princípio, porque como tinha esse mês fora então minha esposa ficou, e ela foi depois de um mês pra morar comigo. Só que ela tava meio assim de ir sozinha, então um primo veio junto com ela, só que eu acho que foram os seis meses mais difíceis da vida dela, porque você chega num país totalmente diferente, num idioma que você nunca viu, aquele alfabeto cirílico que é tudo desenhinho, que pra gente é desenhinho, não é letra. Pra mim era mais fácil, que todo dia ia treinar, e no fim de semana eu viajo pra jogar, mas ela chegou a ficar com medo em casa, ela ficava trancada, com medo de sair na rua, de alguém perguntar alguma coisa pra ela, dela não saber responder, alguém pedir passaporte, sei lá, a polícia querer investigar, enfim, passa milhões de coisas na cabeça de uma pessoa. Mas eu posso dizer que a minha esposa foi uma guerreira, tem me acompanhado todos esses quatro anos, depois, com o tempo, ela foi se adaptando, se acostumando, porque, quando eu cheguei, também, todos os brasileiros estavam no Brasil, esse também foi um ponto que pesou.

Pra você ou pra ela, no caso?

Assim, como eu sou um cara mais extrovertido, então pra mim não fez muita diferença, mas pra ela pesou muito. Porque de repente o Corrêa tinha voltado, acho que pro Palmeiras, o Diogo Rincón tinha vindo pro Corinthians, o Kléber Gladiador tinha voltado também pro Brasil, não lembro pra qual equipe que ele veio, Rodrigo, zagueiro, tinha voltado, o Maicon foi na minha negociação com o Santos, então a gente chegou sozinho. É bom você chegar num lugar que você tenha alguma referência, pelo menos de mercado, “Ah, pode comprar ali, pode fazer isso, aquilo”, e minha esposa não tinha, ou de repente uma academia, ou um curso de inglês, ou sei lá, pra fazer alguma coisa, e a gente não tinha nada. O nosso tradutor falava português, mas ele era ucraniano, então ele tinha um jeito dele de ser. E uma outra situação que aconteceu: eu falei “Eu quero fazer uma listinha do mercado, pra mim ter, enquanto a minha esposa não chega, vou fazer uma listinha pra mim ir no mercado, pra ter algumas coisas”, porque o apartamento eles disponibilizavam também, daí eu cheguei pro tradutor, falei “Viu seu Boris, eu preciso fazer uma compra no mercado”, daí ele falou “O que você precisa?”. Bem seco assim. “Eu falei “Ah, coloquei arroz, macarrão, sal, as coisas básicas, óleo, pano de prato”, ele falou “Tá bom”, daí ele chegou no mercado comigo, correndo “Aqui tá o arroz, aqui tá o macarrão, aqui tá…”, daí, que de repente você vai no mercado, você quer olhar, você faz uma lista, mas de repente você quer ver alguma coisa que vem na hora, ele falou “Aqui tá isso, aqui tá isso…, vamos embora?”, eu falei “Vamos”. Aí chega em casa, tá faltando um monte de coisa, então, é difícil você contar com o tradutor. Foi aí que nós conhecemos um peruano, na época tinha sete anos que ele morava lá, e aí foi que eu fiquei sabendo que ele sempre ajudou todos os brasileiros, então ele começou meio que, entre aspas, trabalhar com a gente, então ele trabalhava com todos os brasileiros. Você precisava pedir uma pizza “Pô Alex, pede uma pizza aí”, você precisava, sei lá, um galão de água pro filtro “Alex, ó, pede dois galões pra tal dia”, então, “Alex, precisa levar não sei quem no médico”, e esse Alex fazia tudo. O Alex foi um cara que quebrou um galho, quebrou uma árvore pra todo mundo, um cara muito legal. Hoje, infelizmente, ele tá sozinho lá, porque só tem um brasileiro, que ficou no Dínamo, mas ele é um cara que nos ajudou, e era um cara pra toda hora, “Ô Alex, minha família vai chegar no aeroporto quatro da manhã”, “Não, deixa que eu busco,!”. Então ele fazia tudo, foi um cara que acabou ajudando nessa ausência de outros brasileiros, pra ter a referência da cidade.

E a tua sua esposa, nesses seis meses que você falou, ela teve alguma interação com a comunidade?

Não, não teve nada, a única coisa que teve foi a televisão, a gente tinha aqueles canais internacionais. E a saudade… E o fuso horário também. Tem época do ano que fica quatro horas de fuso, por causa do horário de verão, e tem época do ano que fica seis, então passava a madrugada acordada pra falar com a família, em computador, então foi triste, no começo foi triste pra ela, muito difícil, mas depois foi se acostumando, depois foi ficando mais tranquilo. E lá, também, o legal é que sempre tem folga, na Ucrânia. Por que é folga? Porque normalmente tem os jogos das seleções, e quando tem os jogos das seleções não tem rodada, e nossos jogadores, os jogadores do Dínamo praticamente eram todos da seleção, então, como ia todo mundo pra seleção, iam ficar poucos, e lá eu ficava brincando que era uma Torre de Babel, lá tinha jogador de tudo quanto é lado, da Romênia, nigeriano, tinha o pessoal do Chipre, enfim, milhões de lugares, e quando chegava nessa época de jogos da seleção eles davam folga, três dias de folga pra gente, “Ó, vocês têm três dias de folga”, e a gente pegava e ia pra Itália passear, a gente pegava e ia pra França, pra Disney, então, nesses momentos dava uma relaxada, assim, o lado legal da situação.

E para quais lugares você costumava ir, em termos de restaurantes, museus?

Então, lá era assim: como Kiev se baseia tudo praticamente numa avenida, que infelizmente é essa avenida que tá totalmente destruída, lá é onde gira Kiev, porque lá são as melhores lojas, são os melhores restaurantes, são os melhores bancos, então nosso passeio era praticamente ir na avenida andar, passear nos restaurantes que tem por ali, no verão a gente ia num clube, tinha um clube privado lá, que ou você pagava por dia, ou você pagava por ano, enfim, podia pagar pra entrar, pra frequentar o clube, ou viajar, nessas folgas, a gente viajava, mas era meio restrito, tinha, não sei se em português fala, acho que golfinário, o negócio de golfinhos. E, também a gente ia em museus, foi onde eu me interessei mais pela Segunda Guerra Mundial, pelos acontecimentos, pelo cultural, por que tudo aconteceu, como aconteceu, eu sou bastante curioso com isso, então eu acabei conhecendo também um pouco desse lado.

Como você viu essas manifestações? Você ficou surpreso com isso ou você já tinha percebido uma tensão que um dia podia explodir?

Não, não achei, fiquei muito triste, porque é estranho você ver um lugar que você sempre andou, todos os dias você ia caminhar com os seus filhos, aquela avenida. Nos fins de semana eles fecham a avenida, você passeia com as crianças, então onde o meu filho corria, brincava, de repente tá em guerra, tá tudo destruído, você vê na televisão, você meio que não acredita que tá acontecendo aquilo. Mas a divisão política lá sempre foi clara, é um país jovem, teve a divisão da União Soviética em 91, então as pessoas ainda viviam um pouco desse comunismo, ninguém tinha muito coragem de falar as coisas, o pessoal era mais fechado. Eu perguntava pros mais velhos “O que vocês achavam…?”, eu gostava de ficar cutucando eles também, “O que era melhor? Comunismo ou como é hoje?”. Os mais velhos falavam “Ah, tanto faz”, mas fugia do assunto, você via uma insatisfação dos jovens, porque lá os jovens queriam sair pra vida, por exemplo, lá tinha uma placa, que eu achei muito interessante. Indo pro CT, a gente pegava uma estrada, e tinha uma placa assim “Seu carro, seu status”, então, acabava instigando os jovens, então você via muitos jovens lá com carro bom, com roupa boa, eles davam muito valor pra isso, mas só que na época do comunismo tudo isso era privado, eles falavam que tinha cinco modelos de carro na rua, então você via uma insatisfação dos jovens, mas sem força de manifestar, toda essa insatisfação. Por exemplo, a divisão política é no futebol também, você via que o Dínamo é mais pro lado ucraniano, o Shakhtar, mesmo por estar na Ucrânia, ele é mais voltado pro lado russo, tanto que na Ucrânia, em Kiev, você via pessoas, do Oeste Europeu, o oeste ucraniano, que é ali Volyn, que é mais perto da Polônia, Kiev, fala um pouco de ucraniano, agora, do Leste Europeu, do leste da Ucrânia, não se fala ucraniano, então, se percebe que tem um racha lá em Donetsk, por exemplo, que são os minérios, foram mais os russos que ficaram com aquela região, então desde aí você vê que tem uma divisão política, e isso influencia no futebol, não é só uma rivalidade do futebol, é uma rivalidade política. Agora esse presidente, que teve o impeachment, o Viktor Yanukovich, ele tava querendo fazer em Donetsk o centro comercial, o centro turístico, ele apoiava mais o Shakhtar do que o Dínamo, então você via que a política influenciava muito nisso, agora aquela Yulia Tymoschenko que foi solta agora, desde que eu tava lá ela já tava presa, e presa por que? Porque ela queria uma abertura de tudo, queria que as coisas fossem mais claras, porque tudo que fazia lá na Ucrânia, de repente, era meio enrustido, ninguém podia meio que palpitar, porque a Rússia meio que influenciava em tudo na Ucrânia, então ela foi solta agora por que? Porque eles conseguiram dar esse grito de liberdade, essa, essa luta pra entrar no sistema europeu, pra ser uma coisa mais aberta. Por exemplo, euro, lá você não conseguia movimentar euro, muito, dólar, você entrava com dólar em qualquer lugar, mas euro você não conseguia, então acho que com essa fúria, vamos dizer assim, dos jovens, eu acho que vai ter uma mudança na Ucrânia, mas assim, como eu falei, é muito triste chegar a esse ponto, pra ter essa mudança.

O próprio estádio do Dínamo, se eu não me engano, foi ocupado, ou a frente dele…

Então, me falaram, não cheguei a ver essa imagem, mas eu vi ali na Praça da Independência, que é um lugar que a gente ia bastante, totalmente tomada, totalmente destruída, então, acho que era uma situação que poderia acontecer, mas não achava que isso ia chegar a esse extremo e tão pra já.

Você conversou com alguém nesse período?

Então, com o Alex, a gente acabou criando um vínculo, o peruano, que ajudou a gente, conversei com ele pra saber como que tava a família dele, ele tem filho pequeno, eu queria saber se atingiu ele de alguma forma. Ele falou que fisicamente não, mas no dia-a-dia não tem como. Como eu falei, ali é o centro, onde gira tudo em Kiev, então tá tudo parado. Ouvir dizer que há pouco tempo os transportes públicos também foram parados, bloqueados, então acabou influenciando todo mundo, acaba tendo uma influência grande.

Como é que foi que surgiu a proposta para jogar na França?

Então, chegou um momento pra mim, depois de quatro anos e meio na Ucrânia, aquela coisa de você tá de saco cheio de ficar lá, justamente pela cultura. Aguentei o meu contrato, faltou um meio ano, mas eu não ia voltar, mas queria sair, já tinha falado ao presidente, minha esposa tava grávida do segundo filho, mas bem aberto, porque eu tinha essa liberdade com ele, falei “Já tive o primeiro filho aqui, agora minha esposa tá grávida do segundo filho, não vai ser fácil pra gente criar, viajar 15 horas de voo com duas criancinhas, não vai ser fácil…”, eu costumo falar que morar fora é bom com filho adolescente, com filho pequeno é complicado, daí ele entendeu a minha situação, falou “Se você tiver uma proposta, a gente te libera sem problema nenhum, te libera desses seis meses de contrato que você tem, mas se você quiser renovar, você fala pra gente quanto você quer receber, o tanto de tempo de contrato, que a gente tenta entrar num acordo”, eu falei “Não, presidente, tá bom, obrigado”. Daí quando foi chegando a época de voltar, eu tinha que voltar pra Ucrânia, acho que dia 12 de janeiro, daí quando foi no dia 10, me liga um francês, perguntou “Olha, como tá a sua situação”, daí eu falei “Olha, eu tenho que voltar dia 12” “não, tem um clube assim pra você…”, então falei “mas tem que tentar resolver até o dia da minha volta, pra mim não precisar ir pra Ucrânia”, ele falou “Não, vou ligar no clube”, daí ele ligou no Dínamo, conversou com o pessoal, da situação, consegui prorrogar um pouquinho a minha estadia no Brasil, daí quando foi acho que dia 14 ele me ligou “Ó, já tá tudo certo, vai lá pra Ucrânia pegar suas coisas e de lá você já vai pra França”, daí eu falei “Graças a Deus, deu certo”, daí eu fui pra França, muito feliz, muito legal lá o lugar que eu fiquei, eu fiquei em Évian, fica no leste da França, na divisa ali com com Genebra, com Lausanne, eu fiquei bem num lago, numa cidade montanhosa, muito legal, uma experiência muito boa, um campeonato que eu voltaria a disputar tranquilamente, e bem competitivo, é mais ou menos igual ao Brasil, de repente um time que tá lá em baixo ganha do que tá lá em cima, agora que o Paris Saint-Germain fez essa essa máquina, o Mônaco também fez, mas nós vencemos o Paris Saint-Germain, eliminamos eles, foi um jogo muito bacana. Mas é um país que eu gostei de jogar. Por que eu saí de lá? Eu saí de lá porque eu tava esperando aparecer uma outra situação um pouco melhor, porque o Évian é um time que financeiramente não é aquela grande coisa, mas quando eu tava lá quem pagava o meu salário era o Dínamo, eles fizeram um acordo entre eles, o Évian pagava 15% do meu salário e o Dínamo pagava o outro resto e, enfim, daí as coisas acabaram não acontecendo, aconteceram de outra forma, acabei voltando pro Brasil, mas essa minha passagem na Europa foi de muita valia, principalmente culturalmente falando, pude aprender o russo. Vou usar o russo? Não sei, quem sabe agora na Copa, algum, alguém precisa, aprendi um pouco do francês, aprendi um pouco do italiano, falo espanhol, inglês, dei uma melhorada, acho que, culturalmente, pra mim foi muito boa essa passagem pela Europa.

E a sua esposa, não ficou com você na França?

Então, na França ela ficou um mês, principalmente pela gravidez, não ia dar o tempo de voo, por causa que só pode voar até uma determinada data, mas ela passou um mês, ela foi no inverno, saiu do inverno da Ucrânia, foi no inverno da França, ela pegou a parte do inverno, lá também é muito forte, por ser na montanha, mas ela ficou pouco tempo comigo lá.

E, depois de quatro anos no Leste Europeu, você passando pra Europa Ocidental, você sentiu uma grande diferença cultural, algum choque?

Ah, sim, não digo choque, mas é mais próximo da gente, eles costumam dizer lá na França mesmo que o francês de Paris é diferente dos franceses das cidades mais afastadas, o pessoal fala que o francês de Paris é um francês um pouquinho mais arrogante, um pouco mais prepotente. Mas nessa cidade, acho que por ser uma cidade pequena, é um povo totalmente acolhedor, é simpático, você precisa de informação, te dão informação, parece que você faz parte da família, parece que a cidade inteira é uma família, mas teve essa diferença, porque na Ucrânia era um pessoal totalmente reservado, afastado, sério, e lá na França é totalmente mais acolhedor, tudo era de mais fácil acesso, como eu falei, eu pegava o carro e ia pra Genebra, dava 40 minutos, em Genebra tem um monte de brasileiros, gente de tudo quanto é nacionalidade lá, então, esse também é o lado bacana, acho que foi muito válido também.

E o seu retorno pro Brasil, como é que foi, você pretendia ou queria continuar lá?

Então, não era minha pretensão voltar, eu queria continuar na Europa, mas não aconteceu, as coisas que apareceram não foram aquilo que eu esperava e eu resolvi voltar pro Brasil. Só que a volta do Brasil, muita gente não entende isso, a mesma adaptação que você tem pra sair, depois de um certo tempo você tem pra voltar, porque você acostuma com o jeito de jogar, com o estilo de futebol, com o sistema de concentração, com o jeito de lidar com tudo, ambiente de clube, essas coisas toda, por mais que você é brasileiro, você acaba se adaptando a uma outra situação. Daí eu falo pro pessoal que a volta é mais difícil pra zagueiro do que pra atacante. Por que? Porque lá na Europa você joga assim: normalmente em linha de quatro, você faz só a sua função, você não precisa fazer a função de mais três jogadores, que aqui no Brasil é assim, toda hora o zagueiro ele tá exposto, é lateral que ataca junto; só que aqui no Brasil as pessoas não dão tempo pro tempo, e eu cheguei sem pré-temporada, tanto na França, quando eu fui pra França eu também não fiz uma boa pré-temporada, aqui no Brasil, na Ponte Preta, eu também não fiz uma boa pré-temporada, então, pela experiência, você aguenta jogar três, quatro jogos, aí depois você começa a sentir o estilo de jogo do país, a parte física começa a reclinar. Eu esperava dificuldade? Sim, esperava, mas não tanta como foi. Só que daí você vê jogadores que são mais consagrados, que tão num nível aqui superior e eu tô aqui inferior, que tiveram dificuldades, até hoje têm, então você fala “Espera aí, então é normal”, da posição. Caso o Lúcio quando voltou. O Lúcio é mal jogador? Muito pelo contrário, o cara é Seleção Brasileira, mas as pessoas colocam ele como um depois da volta dele, pelo fato da adaptação, como se ele fosse mais um, mas ele não é mais um, o Cris, também não é mais um, é um jogador de um alto nível, jogou oito anos no Lyon, na França o cara é ídolo, daí chega aqui o cara é grosso? Não é, o cara precisa de adaptação, só que no Brasil você não tem esse tempo de se adaptar, as pessoas não te dão esse tempo, pela cultura do futebol, você não tem. E na Ponte Preta foi assim, acho que eu joguei sete jogos, eu cheguei lá na metade do campeonato, joguei acho que quatro jogos, depois joguei mais três, e não tive mais sequência de jogo. Então, não esperava que a minha volta fosse assim, que eu tivesse tanta dificuldade, e agora eu tô com passaporte europeu, eu consegui tirar a minha cidadania italiana, através da minha esposa, eu tô esperando agora, nesse começo do ano eu tive umas propostas pra disputar estadual, mas eram contratos, contratos curtos, daí eu falei pra minha esposa “Não, vamos esperar um pouco, vamos ver se aparece alguma coisa lá pra fora, com mais tranquilidade de contrato, um período mais longo, se não acontecer lá pra fora, vamos tentar alguma coisa aqui no Brasil, pro Campeonato Brasileiro, mas que seja alguma coisa mais estável”, e agora eu tô tentando aprimorar a parte física, ficando legalzinho pra poder chegar, jogar e estar bem.

E em termos culturais, você sentiu alguma diferença? Depois de tantos anos lá fora e voltar pra cá e se deparar com nossa sociedade…

É, meu irmão fala muito que eu pareço um estranho aqui agora, porque você começa a ter tudo de lá, então, quando eu ando na rua lá, por exemplo, você não vê motoqueiro na rua, então quando eu ando aqui, ainda hoje, e vejo moto, ainda assusta, você fica meio tenso, sei lá, tanto em termo de batida, essas coisas, como assalto, lá só passa desgraça do Brasil, lá só passa coisa ruim nos jornais, então todo mundo tem medo do Brasil, essa é a bem da verdade, lá o pessoal acha que você vai andar na rua, você vai tomar facada na barriga, vão roubar você. Eu vim e você vem meio com a mentalidade de lá, como você vê jornal de lá, internacional, você vê desgraça, coisa acontecendo, então, quando eu ando na rua, e eu sou assim, eu ando na rua mesmo, não fico com esse negócio de segurança, vou de chinelo pro mercado, vou bem tranquilo, e quando eu ando na rua com o meu irmão, eu fico meio que ligado, meio que observando pros lados, e meu irmão: “Ô, relaxa! O que tá acontecendo?”. Então você vem um pouco com os trejeitos de lá sim, sinto diferença de ter vivido tanto tempo lá, de repente eu não vi um negócio de assalto lá fora, tanto na Ucrânia quanto na França, nunca, pelo menos aonde eu tava, claro que tem, mas não por perto, nunca vi nada dessas coisas, aqui no Brasil você sabe que tem, então você fica um pouco tenso, você fica um pouco preocupado.

Isso é uma coisa que te preocupa em termos de família?

Olha, se eu pudesse criar meus filhos fora, acho que seria interessante. Mas não tendo a possibilidade de mudar pra lá, não é uma coisa que eu vou ficar desesperado, porque, afinal, eu cresci aqui, toda a minha família é daqui, mas se falar assim: “Escolhe, hoje, o que que você quer”, acho que eu preferiria ter a criação deles lá fora.

Betão, você falou tanta coisa bacana. Uma coisa que a gente sempre pergunta: quando você vai pra lá pela primeira vez, o que que você leva na bagagem? Você lembra disso, o que é que você levou do Brasil?

Ah, eu gosto de palavra-cruzada, acho que é uma coisa que eu levei. Acho que o que vem na minha cabeça é palavra-cruzada, acho que a bíblia, sempre levo, pra onde eu vou, mas acho que das coisas mais do dia-a-dia foi a palavra-cruzada…

Você falou de comida. Você levou já da primeira vez?

É, acho que a minha esposa deve ter levado, acho que eu, quando eu fui, acho que não levei, mas acho que quando eu tive todas as informações, como funcionavam as coisas, acho que a minha esposa levou. Mas, comida, palavra-cruzada, bíblia… acho que foi, assim, não lembro outra coisa específica que eu peguei e levei.

E, no balanço geral, o que você sentia mais falta do Brasil lá fora?

Ah, o contato. O contato com a família, de estar junto com os amigos, acho que isso não tem como, você sente mesmo, datas especiais você não tá, que nem aniversário, eu fiquei cinco anos passando meu aniversário sozinho, sem poder estar com o pai, aniversário de pai, aniversário de mãe, do meu filho deu certo porque a gente programou, foi meio que programado o nascimento do meu filho, então deu pra mim acompanhar os aniversários dele, ele faz em dezembro, então a gente tava sempre de férias, mas o da minha esposa, eu tô junto com a minha esposa acho que tem treze anos já, acho que desses treze anos eu passei três aniversários dela com ela, porque de repente era época de pré-temporada, porque ela faz em fevereiro, então o contato, acho que foi o que fez mais sentir falta. O contato.

Uma coisa que eu gostaria de explorar um pouco é justamente a questão do racismo que você tocou lá no início. Como é que você vê esse racismo que você observou lá na Ucrânia em comparação ao racismo aqui no Brasil?

Então, acho que aqui no Brasil as pessoas fingem, na verdade, eu tenho essa ideia, que as pessoas aqui tapam o sol com a peneira, fingem “Não, que o Brasil é um país que tem uma mistura, miscigenação”, mas poxa, aqui tem racismo preconceito, desde o gordo, desde o muito magro, do nordestino, do negro. O Brasil é um país que tem esse racismo muito aflorado, por exemplo, o gordinho é sempre referência, o negro é sempre referência, então, eles colocam isso ainda como diferente. Por exemplo: “Ah, porque é costume”, costume nada, costume veio a partir do preconceito, você fala assim “Ah, aquele neguinho ali”, você vê alguém falando “Pô, aquele branquinho”? Não vê esse termo, as pessoas falando esse termo “Ah, mas é natural falar”, é natural, mas veio de um preconceito, entendeu? Ah, igual quando, por exemplo, não sei se algum de vocês aqui é nortista, mas a pessoa se veste de uma maneira fora do comum, fala “Pô, tá se vestindo que nem baiano”, tipo, é um preconceito, entendeu, acho que aqui no Brasil é muito preconceituoso, acho que as pessoas fingem que não, mas acho que o preconceito aqui no Brasil é muito grande, e no futebol tem de monte também. Você vai, por exemplo, jogar no sul do país, que a maioria lá é de raça branca, então você vai lá, e as pessoas “Pô, é favelado!”, porque vê que é negro e já associa com favela; “Ah, volta pro Carandiru!”. Então você vê que o preconceito no Brasil existe, e muito ainda.

E você sofreu isso aqui no Brasil?

Ah, sim, quando vai jogar no Sul, principalmente, não que tenha só lá, aqui em São Paulo também tem, você vai e te xingam “Pô, é macaco, que não sei que lá!”, aquela coisa toda, então existe, até mais, numa intensidade maior que na Ucrânia, porque lá na Ucrânia você sentia o preconceito na maneira de te olhar, aqui é mais na maneira de falar, entendeu? Acho que existe bastante.

E dentro de campo, você nunca sentiu isso lá?

Não, aqui sim, não entre jogador, nenhum jogador chegou pra mim e falou, mas torcida sim. E lá na Ucrânia, como alcancei um respeito muito grande por todos, não só do Dínamo, mas por todos, porque eu dava entrevista em russo, então as pessoas me respeitavam, tinha um respeito na Ucrânia, eles tinham mais uma admiração. Agora, as pessoas que não eram do futebol poderiam ter mais esse preconceito. Mas no futebol em si, nos outros clubes, até torcedores de outras equipes, tinham um respeito, então não tinha essa coisa de preconceito.

E em outros lugares que você jogou assim por lá, quando o clube saía pra jogar em Copa da Uefa, na Liga?

Não, não. Assim, é igual eu falei, é mais com os africanos…

Com companheiros de equipe?

Sim, aconteceram!

Dentro de campo e fora?

Isso, entre jogadores eu nunca vi, pra falar a verdade, mas torcida sim. E eu falo assim, que é interessante, você falou de viajar. No futebol eu tive o privilégio de conhecer mais, outro dia eu tava contando, eu conheço mais de vinte países, e dentro desses vinte países, sei lá quantos, eu nunca tive tantos problemas com racismo não.

E com esses jogadores africanos que aconteceu isso, teve algum destaque na imprensa?

Não, não. Se o jogador não se manifestar, a imprensa não vai se manifestar. Como o Roberto Carlos, aquela vez que jogaram banana e ele tacou a banana de volta, se eu não me engano. Balotelli, hoje em dia, que ele se manifesta bastante em relação a isso, acho que o Eto’o, também, acho que já saiu de campo ou alguma coisa assim. Então, se o jogador não se manifestar, as pessoas não vão querer entrar nessa polêmica. “Ah, então o jogador não se sentiu ofendido, então vou fingir também que não foi nada”, eu acho que gira mais em torno disso, entendeu? Acho que na Itália teve um caso, acho que contra o Balotelli, que ele tava sendo ofendido, acho que o sistema de som, sem o Balotelli fazer nada, deu uma “Poxa, vamos maneirar”, sei lá o que foi falado. Igual o Tinga. O Tinga não se manifestou, mas a imprensa se manifestou, foi aqui na América do Sul, eu acho que por causa disso, mas o Tinga não falou nada, então, de repente, durante o jogo deve ter passado batido, mas depois, como foi acontecer na América do Sul, acho que aí sim a imprensa brasileira quis fazer um alarde maior, mas acho que também já foi, já baixou, acabou, passou.

E como que você vê isso lá na Europa? Você vê acontecendo com vários negros, brasileiros, africanos? Até teve uma oportunidade, pelo que a gente acompanhou, você até lançou uma campanha lá na época do Roberto Carlos. Fala um pouquinho disso pra gente.

Então, porque na Europa eles não têm mistura de raça, tem, mas pouquíssimos países que têm mistura racial, então você vê, na Ucrânia, a gente até brinca, é meio que todo mundo igual, assim, alemãozão, grandão aquele jeitão, mulher a mesma coisa, então você vê tudo os mesmos traços, você vai, sei lá, na Alemanha, também é mais ou menos o pessoal meio que parecido. E o mundo precisa saber que têm outras raças que estão em outros países, então eu tenho dó de uma criança que nasce negra na Ucrânia, por exemplo, não precisa nem nascer negra, mas que nasce com os traços negros. Vou colocar já um exemplo: a gente visitou uma creche lá na Ucrânia, o Dínamo fazia um pouco essas visitas, um lugar humilde, todas eram loiras, e tinha uma menininha que era um pouquinho mais morena, que tinha o cabelo crespo, provavelmente deve ter sido filha de um africano, e o nosso time tinha um atacante que chamava Bangoura, ele é de Guiné, Guiné alguma coisa, daí começaram a chamar a menininha de Bangoura, e a menina não era nem negra, a menina era morena só que tinha o cabelo crespo, aí começaram a chamar a menina de Bangoura. Então você vê, tem necessidade disso? Não tem. Então você vê que tá inserido, a falta de uma orientação que existe outras culturas, volto a afirmar que existem outras culturas, outras etnias, que existem outras pessoas em volta, muitas vezes, na Europa, acho que falta um pouco disso. E eu lancei, justamente, essa campanha. Como eu tinha uma certa influência, também, na mídia, entre os ucranianos, acho que foi bacana, que eu tive apoio de muitos. Claro que tem sempre aqueles que acabam xingando, acabam criticando, mas teve uma repercussão legal.

O clube apoiou, até colocou na página, não foi?

Foi. Assim, não teve um apoio de conversar comigo, “Vamos fazer uma coisa pra apoiar”, acho que eles viram, acharam legal e lançaram, entendeu? Não foi uma coisa que eu entrei em acordo com o clube “Vamos fazer”, eu fiz, eles acharam legal e lançaram.

E como é que você vê, dentro disso, o movimento anti-racista lá no futebol? Você acha que existe ou não existe nada?

Pra ser bem sincero, eu não acho que é uma coisa assim “Vamos acabar com isso, vamos fazer pra acabar com isso”, eu acho que é aquele “Ah, vamos fazer aqui um movimento, pelo menos os que se se sentem atingidos vão ver que a gente tá fazendo alguma coisa”, mas não acho que eles tão empenhados. De repente tem um grupo que tá empenhado, mas não tem a força pra chegar na cabeça do poder e falar “Vamos, vamos brigar por isso!”. Eu acho que isso não é o foco, não é o principal objetivo acabar com o racismo, acho que tem pessoas isoladas e grupos isolados que querem acabar com isso, mas de repente não têm tanta força, tanto apoio que precisam, entendeu? Por exemplo, o que tem de negro na França é impressionante, no Campeonato Francês, eu acho que é justamente pelos países africanos serem colônias francesas, a maioria ali, bastante, mas você não vê tanto racismo assim, porque, de repente, o francês já acostumou com os africanos na França, você vê em Paris, eu pude passear bastante lá em Paris, eu ficava super feliz, porque lá é normal você ver um negro com uma moça branca, andando na rua ou vice-versa, ou uma moça negra com um marido, um parceiro branco, andando na rua, eu acho isso muito legal, coisa que na Ucrânia, de repente, quando eu saía com a minha esposa, minha esposa é branca, e as pessoas ficavam meio tipo assim: olhava pra cara dela, olhava pra minha cara, olhava pra cara dela, olhava pra minha cara, meio que “Como assim? Um rapaz negro com uma moça branca?”. E já teve gente que achou que ela era da região, que ela era ucraniana, russa, ou sei lá, então as pessoas ficavam meio assustadas. Mas em Paris, na França, achei legal isso. De repente o Campeonato Francês acho que tem até mais negros do que brancos disputando o campeonato.

E você, com a sua esposa, vocês falavam disso também?

Ah, sim, abertamente.

E ela também se indignava com essas, com essas situações?

É, eu costumo dizer assim: por mais que ela convivesse comigo, por ela ser de outra raça, ela não perceba tanto como eu, isso eu acho que é de modo geral, o negro percebe quem tá sofrendo o racismo, o preconceito, seja lá o gordinho por causa de que sentou no banco do ônibus, do metrô, seja lá o nordestino que chegou num lugar. O negro percebe mais do que as pessoas que não sofrem, então, de repente, se eu sofrer um preconceito, eu vou comentar com você, você pode falar “Não, você tá exagerando, nem aconteceu nada, eu nem vi?”, mas a gente que sofre preconceito sabe. Eu tenho uma amiga que ela tem o cabelo crespo também, só que ela sempre estudou num colégio da alta sociedade, vamos dizer assim, e lá todas as menininhas eram brancas e tinham o cabelo liso. Qual que é o apelido dela na escola? “Crespa”. Tipo, só por causa do cabelo dela, então você vê que o racismo, o preconceito tá muito envolvido. Então, voltando pra minha esposa, de repente ela não percebia tanto o preconceito como eu. Eu falava “Você viu o que aconteceu lá na loja?”. Ela falava “Ah, não, não percebi”, mas você percebe. Igual, como eu falei, eu gosto de andar despojado, eu não sou com frescura, então, lá em Kiev, nas lojas boas, eu ia de chinelo, bermuda, quem não me reconhecia como jogador, ficava tipo “O que ele quer aqui?”, “Você acha que com essa roupa aí ele vai conseguir comprar alguma coisa da loja?”. Você percebia que tinha aquele “Vou atender ou não vou?”. Igual eu fui em Milão uma vez, numa loja, eu cheguei pra moça e perguntei “Você tem uma bolsa daquela ali?”. Ia comprar um presente pra minha esposa, ela falou “Tenho mas é cara”, aí eu falei, “Não, não tô querendo saber se é, não perguntei se é cara ou se é barata, tô perguntando se você tem uma bolsa daquela ali”, daí ela falou “Ah, eu vou ver se tem”, acho que no fim ela acabou falando que não tinha a bolsa. Então você vê que tem coisas no dia-a-dia que tem o preconceito, enrustido mas tem.

Aqui no Brasil também, é claro…

É, aqui tem aqueles que se declaram, que são preconceituosos mesmo, igual o caso que aconteceu da australiana, acho que alguns dias atrás, da manicure, então tem aqueles que se declaram que são, mas a maioria é enrustido, que tem, mas finge que não tem.

Eu não sei se foi perguntado enquanto eu não estava aqui, mas, se você pudesse escolher: ficar aqui e jogar aqui, ou você continuar em outro país, tanto na França quanto na Ucrânia?

Olha, pra esse meu fim, pois eu tô mais perto do fim da carreira do que pro início, eu acho que eu optaria por jogar fora. Mas, na nossa carreira, infelizmente, acho que como a de todo mundo, não dá pra você ficar escolhendo muito, de repente muitas você tem que ir naquilo que tem, mas se eu tivesse duas opções hoje na mão: “Olha, você tem uma proposta aqui do Brasil, e uma proposta de fora assim”, se fossem equivalentes, eu acho que eu iria pra fora. Assim, porquê que iria pra fora: eu acho que lá eles vivem mais o esporte, eles se dedicam mais ao esporte, eu acho que em termos de organização, em termos de importância que dão ao jogador. Acho que o jogador de futebol, hoje em dia, virou mercadoria no país inteiro, mas lá eles ainda preservam o lado profissional da coisa ainda. Um exemplo: as pessoas comparam que “Não, porque a Libertadores é igual Champion’s League”. Eu tive a oportunidade de disputar acho que quatro Champion’s League. Não tem nada a ver com Champion’s League, talvez só por ser a maior competição continental. Por exemplo, vai jogar um time brasileiro, vai Corinthians e Boca Juniors, o Boca Juniors vai fazer de tudo pra fazer a pior recepção pro Corinthians: vai deixar a água do chuveiro gelada, vai cortar a luz do vestiário, o torcedor vai soltar fogos no seu quarto. Lá não, o contrário, vai jogar Dínamo de Kiev e Arsenal, igual jogou, poxa, os ingleses vão querer fazer a melhor recepção possível. Eles colocam já uma pessoa do clube pra te receber, pra deixar você à vontade, então quando você chega no estádio, você não está chegando pra uma guerra, igual aqui, eles fazem de tudo pro espetáculo ser bom pra quem ta assistindo. A Europa tem seus defeitos? Óbvio que vai ter, mas acho que a Europa ainda está um pouco à frente e por isso que, de repente, eu optaria em voltar pra lá.

Só pra emendar, não perder o foco, a gente falou do preconceito contra negro, contra gordinho. Enfim, falando um pouco em termos dos estrangeiros, você sentia também alguma diferença isso lá fora?

Na Ucrânia, sendo direto, o treinador chegou um dia pra gente, reuniu os brasileiros, porque a gente sentia que era mais cobrado que os ucranianos. A gente é mais cobrado, mas por que? O treinador era russo, nem ucraniano ele era, os dois treinadores que eu tive lá eram russos. Ele chegou e falou assim: “Sabe porque vocês são mais cobrados? Vocês são mais cobrados porque vocês são brasileiros, já começa aí, então vocês tem que ser melhores que os daqui, vocês são mais cobrados porque vocês vem comprados, os daqui são daqui; vocês são mais cobrados porque, normalmente, vocês ganham mais que os daqui.” Então, o estrangeiro é mais cobrado que o local, isso na Ucrânia. E mais cobrado ainda por ser brasileiro, porque eles acham que todo brasileiro tem que ser igual ao Pelé, todo brasileiro tem que ser igual ao Ronaldinho, tem que ter magia nas pernas, e não é assim, né? Agora, na França já não. Na França eles veem o brasileiro com respeito, claro, pela história do futebol brasileiro, mas sabem que todos somos falhos, temos limites…

Essas diferenças expostas diretamente pra vocês se refletiam de alguma maneira nos treinamentos, no dia a dia do clube?

É, porque tinha uma rivalidade, sabe? Você sentia, quando chegava o jogador brasileiro, depois que eu aprendi a falar russo que eu fui perceber, que eu escutava comentário maldoso. Por exemplo, chegou um brasileiro, um sul-americano, um argentino, então os ucranianos meio que ficavam só observando como o cara chuta na bola, como que o cara dá um passe, se o cara dá um passe bom, daí começam os comentários: “Olha lá! Pagou não sei quantos milhões e o cara não chuta uma bola no gol!”, “Pagou não sei quantos milhões, não sei que…”. “Deixa ele fazer sozinho então!”. Eles começam a tirar sarro, sabe? Tipo dar um passe mais forte pra ver se você vai conseguir fazer um bom domínio, entendeu? Então tem essas coisinhas, esses detalhezinhos, quando eu tava lá tinha, então acredito que não tenha mudado, porque eu falo com jogador que acabou de vir de lá e ele fala que continua a mesma coisa…

E no vestiário, por exemplo, depois de uma partida, às vezes uma derrota, tinha essa cobrança também?

Então, lá na Ucrânia sim, não só pra brasileiro, mas de um modo geral, eles gostam de apontar. Tanto os jogadores como o treinador, “Você errou?”, então eles falam “Por que você errou naquele lance?”, aqui abafa, “Ah, o grupo…”. Em entrevista eles não falam, mas depois do jogo mostra vídeo, fala “Vamos ver o lance do gol aqui. Fulano o que você tava fazendo ali parado?”, coisa que aqui no Brasil algum treinador faz, mas é difícil. Fala “Pô, a culpa foi sua, você ta vendo? Olha lá: o gol, tomou por culpa sua”.  Então tem esse tipo de cobrança sim.

E vocês, estrangeiros lá, no caso o grupo, como africanos, argentinos, que você citou, vocês, de alguma maneira, conversavam entre si sobre essas coisas, vocês discutiam com eles isso ou não?

Sim, às vezes, num dia mais estressado, cabeça mais quente, você acaba, num treinamento, no calor do treinamento, o cara cobra, vê que ta cobrando o brasileiro que não fez, ou o ucraniano não fez do mesmo jeito. Então você acaba falando, mas entre a gente conversava “Pô, você viu como o cara cobrou fulano? Você viu o que foi feito ali?”. Mas é raro os jogadores levavam isso pro jogo, entendeu?

E isso de alguma maneira refletia na vontade de permanecer? Dos jogadores em geral…

Tem muito jogador que de repente não conseguiu enturmar, queria sair lá no primeiro mês que chegou, já queria ir embora. Porque eu falo, você ir pra Europa, você tem que ir com um objetivo, se não for com um objetivo, se o seu objetivo for só financeiro, o cara joga seis meses e volta, porque dependendo do contrato que você faz em um ano o cara consegue comprar um carro, em um ano o cara consegue comprar uma casa pra mãe, um apartamento pra ele, então o cara pensa “Ah, consegui! Por que mais eu vou ficar aqui se eu já consegui comprar tudo?” Então, se você não tiver um objetivo, igual eu, eu fui com o objetivo de conhecer outra cultura, de disputar uma Champion’s League, de repente conseguir uma transferência melhor, pra um outro clube, então, se eu fosse só com o objetivo do dinheiro, o cara vai e quer voltar, de repente o cara consegue o dinheiro e começa a inventar história: “Ah, porque o frio! Ah, porque o clima! Ah, porque a comida! Ah, porque não sei o que…” entendeu? E na verdade não é nada disso, o cara conseguiu o que ele queria de repente. Eu tive o grande prazer, também, de jogar com o Shevchenko na Ucrânia, acho que pra mim isso foi demais, até brinquei com ele, tipo: “Até um ano atrás jogava com você no videogame, agora ta jogando aqui”, e aconteceu comigo na Ponte Preta a mesma coisa, por coincidência, um menino da base, chegou pra mim e falou assim: “Pô, Betão, você ta jogando aqui na Ponte, cara, que legal, cara!” aí começa a falar o jogo do tabu, que não sei o que “E agora você ta aqui, pô, no vestiário, do meu lado, que bacana!”. Um menino de dezoito anos. São também os momentos legais da profissão.

Betão, tem mais alguma coisa, algum fato que você se lembre que você gostaria de contar, alguma experiência?

Não, acho que não tem nada, acho que ficam as amizades mesmo. No futebol também é difícil você fazer amizade, entre jogador, amizade que eu digo é de manter contato eterno, vamos dizer assim, igual a gente faz no dia a dia, é muito difícil. Eu converso, mais com o pessoal da base, com o Tevez, fiz uma amizade legal com ele, jogamos contra na Europa, ainda fui na casa dele, mas a última vez que eu falei com ele eu tava na França, deve ter um ano já. Mas com os meninos da base do Corinthians, acho que uns seis pelo menos a gente é amigo, sabe? Tem um pessoal que a gente manteve a amizade, outros que pararam de jogar, mas a gente continua amigo; mas é difícil, pelas centenas de jogadores com que joguei na minha carreira, se eu tiver contato com duas mãos cheias é muito. Então, acho que é legal os momentos vividos, concentração, brincadeira, mas você não consegue criar vínculos com as pessoas, muitas vezes. Eu gostaria de ter criado, mas, infelizmente, cada um vai pra um canto, perde contato, toca o telefone “E aí? Um abraço…”.

E tem alguma lição, alguma mensagem, que você queira deixar pra gente?

Ah, assim, que tudo passa na vida, que você tem que aproveitar o máximo possível. Mais do aprendizado, entendeu? Vou tentar passar isso pros meus filhos. Acho que nenhuma experiência é melhor do que a experiência cultural, é uma coisa que você guarda pra sempre, porque a experiência vivida vai passar, mas cultural você não vai perder nunca. Então, nesses anos aí de carreira que eu tive, essas oportunidades que eu tive de conhecer outros países, pra mim foi maravilhoso, acho que as pessoas não podem perder essa oportunidade, de crescer sempre culturalmente, seja falando um idioma, conhecendo outra cultura, sei lá, lendo um livro, alguma coisa do tipo, acho que é muito válido.

E, olhando pra trás, você faria tudo de novo em sua trajetória?

Faria, acho até aproveitaria mais. Mas faria sim, acho que parece que foi tudo muito bom, tem coisa ainda pra acontecer, eu espero jogar mais. Tem gente que espera o clube te aposentar, o futebol aposentar, eu não quero chegar nesse ponto do futebol ter que me aposentar, mas eu espero jogar aí mais uns quatro anos, se eu conseguir, mais uns quatro ou cinco anos jogando em um alto nível, espero jogar, mas foi tudo muito bom, tudo que eu passei, as pessoas que eu conheci, até hoje, muito legal.

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

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