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Antonio Moreira dos Santos

Vitor dos Santos Canale 3 de fevereiro de 2010

Anualmente no bairro São João Clímaco acontece a partida comemorativa do “Pretos contra Brancos”. O jogo, tradição na comunidade desde a década de 1970, reúne os boleiros do bairro numa disputa onde os próprios jogadores escolhem o time que irão defender. O que pode parecer discriminação para um olhar desatento é nada mais que uma reunião de amigos que tem como base as partidas de futebol. A festa cresceu e hoje conta com quatro partidas para os jogadores de todas as idades poderem participar. Em 2009, a festividade, agendada para 12 de dezembro, não pôde acontecer completamente, pois as fortes chuvas em São Paulo encharcaram o campo e afugentaram muitos dos jogadores. Mas, apesar da chuva, muitos dos boleiros apareceram, aproveitaram o churrasco e o bate-papo e pudemos entrevistar Antônio Moreira Santos. Seu Moreira, um dos incentivadores do “Preto contra Brancos” contará na entrevista como se mantém a tradição do jogo e a importância da festividade de fim de ano para a comunidade.

Vitor Canale: Qual o nome do senhor?

Meu nome completo é Antonio Moreira dos Santos. Mas é Moreira, pois tem muito Antonio.

VC: O senhor mora aqui mesmo?

Sou do bairro.

VC: O que o senhor faz?

Trabalho em uma corretora de valores.

VC: Em que posição o senhor joga?

Jogo no meio-de-campo. Sempre jogando no “preto”.

VC: Como o senhor define o bairro? Quais as opções de lazer que tem aqui?

Tudo tranquilo. Todo mundo é amigo. Não existe esse negócio de rivalidade. Como é tudo amigo, então a gente se junta aqui todo fim de semana, tem o futebol aqui. A gente conseguiu fazer um time chamado “Paradão”, que é do pessoal que já não está mais na juventude. O time tem 44 pessoas. A gente faz dois times. Tudo no sentido de lazer, não tem nenhuma rivalidade. O resultado que der no futebol não vai contar. A gente fica preocupado, pois todo mundo trabalha. Então, depois tem um samba, a gente vai tomar uma cerveja e fazer um samba. Eu fico sábado o dia inteiro aqui. Todo sábado tem atividade o dia inteiro. Chega uma turma, vai embora outra turma. Então sempre tem gente aqui, até o fim do dia. Eu, por acaso, chego cedo e só vou embora de noite. Como a minha família é pequena, eu tenho a esposa e a filha, elas têm as atividades delas, eu me dedico aqui, no sábado elas me dispensam mesmo. Você pode ficar lá no domingo, então tudo bem. Hoje é atípico, então tudo bem. Hoje é a festa, elas sabem disso, então falam assim: “tudo bem, você pode ficar à vontade”. Em casa não tem nada disso. A gente mora aqui num lugar que tem tudo perto… mercado…tudo o que você precisar tem perto…padaria, outras coisas. Então para mim é um bairro excelente. Agora os caras têm programado para fazer aqui um sintético. Vai fazer um momento de lazer de todo mundo, da comunidade. Então a gente formou aqui uma comunidade. Todo fim de semana tem eventos, os caras arrumam alguma coisa.

VC: O lazer do senhor é por aqui mesmo?

Eu me dedico aqui o fim de semana todo. No fim de semana lógico, pois tenho que cuidar da família. Tenho um pessoal que mora no Jabaquara, a família da minha mãe. Então eu passo um tempo com eles lá, aliás eles me cobram muito isso, que eu fico muito aqui. Mas como você já pegou uma amizade tão grande, se não vier aqui, seu fim de semana não está completo. Hoje a natureza não deixou a gente completar a situação, mas a gente vai tentar fazer aqui, para não perder o ânimo. Quem sabe no fim de semana que vem está bom e gente completa o jogo. Porque às vezes as pessoas esperam o ano inteiro para essa comemoração, que é uma confraternização de final de ano. Há trinta e sete anos a gente faz isso. Eu estou com o pessoal há uns dez anos. Isso para mim também já faz parte. Inclusive tem uma matéria no jornal muito boa, bem colocada. Hoje o pessoal viu o tempo e falou “não vai dar para ir”. Mas tem o pessoal todo que está aí e não tem jeito de falar para eles “não vai”. É uma comemoração anual, que vai ter, o pessoal vem assim mesmo. A natureza pode ser contra, mas é gostoso isso aí. É um evento que você está vendo hoje e vai gostar de ver.

VC: Ainda sobre o bairro. Aparece às vezes na imprensa notícias de que o bairro é violento. Como a comunidade, o senhor, os colegas aqui, vêem essa informação na televisão?

Como todo bairro tem, aqui também não ia ficar fora. Mas a maioria é melhor. A minoria que acontece, isso aí também é minoria. Não é que a gente despreza, a gente deixa de lado… deixa para lá. Não pode, mas acontece. Temos aqui na nossa comunidade mesmo um pessoal que a gente conhece, mas a gente não dá muita bola para esta situação porque é minoria. A maioria é melhor. Com certeza, a maioria é melhor. Então a gente vai pela maioria.

 
Foto: Equipe Ludopédio.
No jogo semanal, Moreira, de verde, aguarda a sua vez. Foto: Equipe Ludopédio
 

VC: Como o senhor ficou sabendo sobre o início do jogo? Como contaram a história para o senhor de que começou o jogo “preto x branco”?

Isso foi uma brincadeira que foi feita, todo mundo já conhece a história. Vou só repetir. Eles começaram na “APAE”, como confraternização. Depois virou para a comunidade inteira. Fizeram na rua e deu certo. Os caras continuaram, isso virou, tipo assim, uma febre, virou um evento. Nós temos o Wilson, apelidado de “Benê”, ele colocou isso aí como uma festa e continua.

VC: O senhor lembra a primeira vez que participou da festa? Ou jogando…

Lembro, lembro. Quando foi falado, perguntaram e até deram opção: “vai jogar em qual?”. Eu falei: “vou pro preto”. Eu tenho a cor mais puxada para o preto. Aí tudo bem. Não teve oposição nenhuma porque você tem o direito de escolher. E eu escolhi. Adoro estar com eles. E a gente vai fazer esta festa até o dia que der certo. Os novos vão ficando mais velhos e levam a tradição para frente.

VC: Em que ano o senhor participou pela primeira vez?

Eu sei que uns 10 anos atrás. Digamos em 1999, 1998, por aí.

VC: O que o senhor acha que está em jogo aqui? O que leva as pessoas a participarem? Hoje tem quatro times né…

São quatro jogos. É confraternização. Você vê que as pessoas são todas iguais, independente da cor. Depois todo mundo se abraça, vai embora todo mundo junto. Faz samba, pois todo mundo gosta de samba. Dizem que o samba é de preto, mas não é nada disso. Todo mundo gosta da boa música. No fim todo mundo se confraterniza e todo mundo vai embora, digamos assim, com o fim de ano completo.

VC: Quem pode participar? Todo mundo?

Mesmo quem não é da comunidade vem, inscreve-se, fala antes, entra e depois joga todo mundo. Não fica ninguém sem brincar. Todo mundo participa, de um jeito ou de outro.

VC: E as mulheres, além da Dona Alzira, participam de alguma maneira ou só os homens?

Hoje, ativamente, como falei antes, vem toda a família. É um negócio para a família inteira.

VC: O senhor traz a sua mulher, a sua filha?

Vem todo mundo. Hoje, como choveu, elas não saem de casa. Numa hora dessa, que você está falando comigo, nessa arquibancada não cabe ninguém. Com arquibancada cheia e em volta do campo tudo cheio.

VC: Qual critério que o pessoal usa para escolher quem joga em qual time? O senhor falou que escolheu pelo tom de pele, escolheu ir para o time dos pretos. O pessoal que o senhor conhece, como é que eles escolhem, quem vai para o preto, quem vai para o branco?

Tem já um pessoal formado, quem vai jogar em qual time. São quatro jogos. As vezes têm convidados. Têm ex-profissionais que vêm para cá. Então todo mundo já sabe como vai ser. Vem o Zé Maria, do Corinthians, o Amaral…um pessoal que vem jogar no time da cor que está lá. Para fazer uma confraternização legal. O Magrão é filho daqui, saiu aqui do Flor. Um cara que se deu bem na vida, esforçou-se para isso, tem talento. O Magrão está sempre participando disso aqui. Não sei se ele está aqui hoje, mas ele é convidado aqui todo ano, inclusive ele participa do futebol também e faz a diferença, pois sabe jogar.

A tradicional partida contou com a participação de Magrão (jogador do Palmeiras) na época. Foto: Equipe Ludopédio.
Jairo, Magrão (então jogador do Palmeiras) e Zé Lauro em foto localizada no bar do campo. Foto: Equipe Ludopédio

VC: Em qual time o senhor joga e porque?

Atualmente a gente tem uma equipe aqui de “paradões”, com caras acima de 40 anos. Hoje temos uma equipe de 40 pessoas que todo sábado se reuni para fazer uma brincadeira durante o fim de semana. Mas tudo de brincadeira, para ninguém se machucar, pois todo mundo trabalha.

VC: Nos “paradões” também é separado brancos x pretos? Ou todo mundo joga junto?

No “paradão” é misturado, pois a gente forma a equipe na hora. É quem estiver no momento, quem chegou mais cedo, tem um horário estipulado. Forma dois times e joga todo mundo. É sossegado.

VC: Aqui no time da festa o senhor é do time dos pretos?

Na festa de fim de ano faço parte da comunidade, digamos assim, dos pretos.

VC: E o senhor escolheu por causa do seu tom de pele?

Foi opção. E não teve ninguém contra também.

VC: Acontece, ou já aconteceu, de jogador trocar de time? Quem era do preto mudar para o time do branco, quem era do branco mudar para o preto. Cada ano jogar em um time.

Não. Isso já é uma história antiga. Quem é do preto é do preto, quem é do branco é do branco.

VC: E o “Japonês”?

O “Japonês” é o seguinte. Ele joga bola com a gente nos velhos. Ele tem um posto de massagista. Então participa dos dois lados. No primeiro tempo, joga de um lado. Depois, joga do outro. Porque depois ele vai fazer parte do ciclo de preparador físico, atendimento, primeiros socorros, se tiver alguma coisa. Geralmente não tem, mas é para prevenir.

VC: Tirando o “Japonês”, nunca aconteceu de trocar de time?

Não.

VC: Quem é o árbitro? Todo ano é o mesmo árbitro?

Não, a gente pede um pessoal para vir, um pessoal mais profissional, para ficar um negócio mais correto. Porque você pega o pessoal que apita aqui que estão acostumados a apitar brincadeira, então o negócio fica sério. Uma brincadeira mais séria. Então, o árbitro você pega lá na Federação Paulista, às vezes de livre e espontânea vontade o cara vem para participar. São dois bandeirinhas e um juiz que apitam os quatro jogos. Se ele cobrar alguma coisa, ele acerta. É um negócio para funcionar direitinho. Para dar um pouquinho mais de respeito para a situação. Só que não tem confusão, é lógico.

VC: Nunca aconteceu de ter briga?

É um bate-boca legal. Aquela discussão, eu ganhei ou você ganhou, é normal.

VC: Mas briga dentro do campo nunca aconteceu?

Não.

VC: O senhor acha que é possível o juiz ser neutro durante os jogos?

É. Por isso mesmo que a gente escolhe pessoal de fora para não falar que o pessoal da casa está puxando para um lado. Então o pessoal de fora só sabe apitar e acabou. Não tem opção de puxar para um lado ou outro…

VC: O senhor já jogou com Pacote apitando?

Já. O Pacote apita sempre aqui, conhece as regras direitinho. Mas ele puxa de um lado eu acho.

VC: Para qual lado?

O lado dele é claro. O lado dos pretos.

VC: Tem bastante reclamação?

É possível, todo jogo tem reclamação, mas é natural. Sempre dá uma discussão de ter apitado para ele, de ter feito, ter feito aquilo. Mas no final tudo acaba em festa.

VC: O senhor já presenciou alguma situação de racismo? Algum preconceito dentro de campo? Ou do pessoal que está na arquibancada?

Não. Esse detalhe nunca notei aqui. Tem a discussão normal, mas não aquela rixa. A conversa vem porque a amizade é grande, então os caras discutem se ganhou ou perdeu, ou se fez uma falta mais forte, mas quanto a cor e racismo eu nunca vi nada. Reclamações normais. Fora do campo não tem mais nada.

VC: O que o senhor acha que determina que uma brincadeira, uma piada ou um gesto, dentro e fora de campo, pode ser considerado racismo? Onde está a diferença?

É brincadeira, com certeza. Fala: “e ai negrão”. Mas é brincadeira, é só momento. Não chega a levar isso para fora.

VC: O senhor acha que aqui todo mundo se respeita?

Com certeza, tudo misturado.

VC: O senhor acha que o fato de jogo ter aparecido em jornal, revista e mesmo em documentário [DOC-TV], foi mais positivo ou negativo? Foi melhor ou pior para vocês?

É bem positivo. Já chegou até passar no canal 1, canal 2. Tem o Rappin’ Hood que está sempre com a gente aqui, uma figura boa. Ele é da comunidade, mora aqui. Morou em Heliópolis, mudou para cá. A presença dele nos favorece bastante.

 
 Rappin’ Hood também participa da folclórica partida.
Rappin’ Hood também participa da folclórica partida. Foto: Equipe Ludopédio.

VC: Como?

Ele é uma figura conhecida na mídia, é artista. Têm uns convidados nossos aqui, times de fora, quando chegam a presenciar ele aqui fazem uma festa, tiram foto com ele. Aí ele diz que também é comunidade. É um cara decente.

VC: Ele joga com vocês?

Fica com a gente. Tipo a brincadeira de hoje, estaria aqui. Daqui a pouco ele deve estar por aí, acho que ele mora aqui perto. É artista, sabe cantar. E faz parte da mídia, o pessoal conhece ele. É um cara que se chegar aqui agora, todo mundo quer tirar uma foto com ele. Para gente é bom porque é mais uma pessoa importante. Ele traz bastante gente e leva daqui para fora.

VC: E o Magrão aparece todo ano?

O Magrão faz parte disso aqui, filho daqui. Ele liga e fala que vem. Joga no time mais jovem. Faz parte do Flor também. Joga no mesmo que jogou o irmão, no Flor do Ipiranga.

VC: E qual é o significado do jogo para o senhor?

Para mim é só brincadeira de final de semana, para confraternizar e a gente estar sempre junto. Consegue fazer amizade. O futebol traz isso para a gente. Amizade.

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Vitor dos Santos Canale

Licenciado em História pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Educação Física pela Unicamp. Principais interesses: Torcidas Organizadas, Torcedores, Museus Esportivos e Crônica Esportiva.
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