Carles Santacana é professor titular do Departamento de História da Universidade de Barcelona. O professor Santacana é autor de uma extensa, pioneira e relevante obra sobre a história dos esportes na Espanha. Seu trabalho sobre este tema põe ênfase sobre a evolução de distintas modalidades esportivas na Espanha em períodos de mais largo prazo, sobretudo entre meados do século XIX e meados do século XX, tratando de relações com outros elementos da história social, política e cultural da península. Seu trabalho também examinou as relações históricas dos esportes na Espanha com outros países europeus, especialmente a porção sul ou mediterrânea do continente. No dia 2 de fevereiro, quinta-feira de inverno na Catalunha, Cleber Dias, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, fez uma entrevista com ele nas dependências da Universidade de Barcelona.

Carles Santacana
Professor Carles Santacana do Departamento de História e Arqueología de la Universitat de Barcelona. Foto: Cleber Dias.

Parte 1

Como e quando você começou a estudar a história dos esportes na Espanha e como era a situação acadêmica sobre o assunto na época?

Comecei a trabalhar com o tema da história social e política do esporte em 1987-1988, anos anteriores às Olimpíadas de Barcelona 1992, que vinham sendo concedidas desde 1986. Nesses anos anteriores às Olimpíadas de 1992, havia um interesse em falar sobre o esporte que não havia ocorrido até então. Refiro-me a falar do esporte de forma genérica, não como a crônica de um jogo de futebol ou basquete, mas sim dando algum conteúdo ao caráter social do fenômeno esportivo. Então, junto com um colega, Xavier Pujadas, começamos a trabalhar em uma vertente muito peculiar, que são as Olimpíadas Populares que aconteceriam em Barcelona em 1936 e que eram uma resposta às Olimpíadas de Berlim em agosto daquele ano. Começamos por aí porque era um aspecto politicamente desconfortável.

Naquela época, durante os preparativos para os Jogos de 1992, eles queriam afirmar que Barcelona havia tentado em outras ocasiões organizar os Jogos Olímpicos, mas não havia conseguido. Além disso, as Olimpíadas Populares não eram bem vistas pelo Comitê Olímpico Internacional, pois lembravam que Barcelona havia tentado realizar uma Olimpíada alternativa à oficial. Por esse motivo, a candidatura olímpica do Barcelona para os jogos de 1992 nem sequer utilizou a Olimpíada Popular de 1936 como argumento positivo, ou seja, esse não foi um elemento propagandístico interessante para Barcelona.

Assim, começamos a estudar aquela Olimpíada Popular, que foi toda organizada, mas não começou porque no dia exato do início da Olimpíada coincidiu com o início da Guerra Civil. Naquela época, ficamos sabendo que havia uma historiografia muito forte sobre o esporte em outros países, mas não existia na Espanha. Utilizamos essas outras pesquisas para contextualizar nosso estudo, principalmente a historiografia britânica e francesa, quando vimos que havia possibilidades de um estudo acadêmico sério sobre o esporte e sua natureza social e política.

Aplicamos o que aprendemos dessa historiografia ao caso das Olimpíadas Populares de Barcelona em 1936 e descobrimos que antes da Guerra Civil Espanhola havia diferentes alternativas e opções em relação à democratização do acesso ao esporte para as classes populares e também ao seu uso político. Assim, neste quadro, fizemos um trabalho monográfico sobre as Olimpíadas Populares que foi publicado em 1990. De fato, esse trabalho teve maior repercussão no exterior do que aqui, pois na Espanha não era um tema que despertasse interesse. Em 1992, coincidindo com os dias dos Jogos Olímpicos, havia várias televisões japonesas, francesas e de outros países interessadas em nos contatar para fazer reportagens sobre o assunto, mas nenhuma televisão espanhola ou catalã. Uma televisão francesa fez um extenso documentário e só foi visto na Catalunha no segundo canal, num dos dias dos Jogos Olímpicos, às 22 horas.

É curioso o que você diz porque justamente neste momento o Comitê Olímpico Internacional era dirigido por um espanhol.

Sim, precisamente, foi dirigido por Juan Antonio Samaranch, que foi uma pessoa com um passado político claramente ligado à direita e mais especialmente à direita do regime franquista. Nos primeiros dias da guerra civil, aos 16 anos de idade, ele fugiu de Barcelona em um navio para a França. Nesta altura, ele já era considerado um potencial inimigo político, ou seja, era uma pessoa intimamente identificada com o franquismo, o que naturalmente ele tentou apagar das suas biografias. Além disso, o Comitê Olímpico Internacional, na verdade, é uma grande empresa que tem um produto exclusivo e não quer concorrência. Então, para eles, o que Barcelona tentou organizar em 1936 foi algo que ousou questionar a legitimidade de um comitê que realizou uma Olimpíada em Berlim, sob o apoio nazista e sem nenhum problema em dizer que esses Jogos foram os melhores da história. Em vez disso, as Olimpíadas Populares de Barcelona foram uma alternativa a isso.

A partir desse trabalho, Pujadas e eu vimos todo esse potencial. Estávamos descobrindo muitos aspectos da história da Catalunha e da Espanha a partir dessa perspectiva do esporte, da qual ninguém havia falado até então. Propusemo-nos, então, tentar percorrer este espaço e fizemos uma investigação para explicar a história social do esporte na Catalunha desde 1870, desde o que poderíamos chamar de os primórdios do esporte moderno, até 1975, ou seja, até o final da ditadura de Franco. Daí surgiram dois volumes que foram publicados em 1994 e 1995, nos quais propusemos um esquema de interpretação. Este esquema inclui, por um lado, a forma como são incorporadas diferentes práticas desportivas, como o ciclismo, o futebol, a natação, o atletismo ou o rúgbi, entre outras. Além disso, por outro lado, nossa interpretação também se dedicou a examinar quais são os grupos sociais que praticam esses esportes, quando esses esportes deixam de ser basicamente restritos a praticantes para se tornarem interessantes a um público maior, ou seja, quando há um volume de seguidores que já não são apenas praticantes, mas espectadores.

Como nesse processo era muito importante que houvesse sociabilidade, examinamos também a criação dos clubes, o modelo de clube esportivo, bem como as diferenças entre os clubes, já que havia os populares e os que desde o início eram pensados para setores altamente privilegiados da sociedade e que até expressavam isso em seus estatutos, colocando barreiras como uma quantia em dinheiro para entrar no clube ou a exigência de ser apresentado por outros sócios. Também demos muita importância desde o início à imprensa esportiva, desde quando existiam simplesmente boletins dos clubes, passando pela dinâmica de publicação de explicações aos leitores de jornais de grande circulação sobre como se jogam certos esportes, pois as pessoas praticamente não conheciam as regras, até quando isso se tornou uma imprensa especializada que costumava, inclusive, organizar competições.

Em relação à imprensa esportiva, existiram muitas figuras relevantes que foram ao mesmo tempo dirigentes de um clube e jornalistas ou promotores de uma publicação desportiva. Alguns deles eram até os mesmos, em uma época que se tratava ainda de um núcleo muito pequeno. Assim, nosso olhar para a imprensa não foi apenas sobre quem joga e quais resultados são divulgados, mas também sobre os tipos de esportes, ou seja, porque alguns são mais elitistas e outros nem tanto, assim como sobre quando essa dimensão do espetáculo é incorporada, no que levará ao profissionalismo. Detectamos isso claramente na década de 1920, mas restrito ao futebol e um pouco ao ciclismo.

E também ao boxe ou não? Pergunto porque sei que seus trabalhos também mencionam o boxe.

Sim, mas o boxe funciona um pouco à margem, porque não existe essa dinâmica de clube. Na verdade, dissemos que havia três lendas do esporte na Catalunha na década de 1930: Josep Samier, jogador do Barça; Mariano Cañardo, ciclista; e Josep Gironés, boxeador. Houve lutas de boxe que foram realizadas no estádio de Montjuic, em Barcelona, com um ringue no meio do campo, onde havia 20.000 pessoas assistindo. Quando falávamos disso, as pessoas mal acreditavam. O boxe havia sido um esporte muito popular na década de 1920, vinculado a algumas academias que existiam em Barcelona desde o final do século XIX. Eram cerca de cinco ou seis clubes. Eles eram muito elitistas no começo, mas depois surgiram academias em clubes de bairros populares e o boxe também se tornou muito popular.

Qual é a explicação que você dá, que até difere muito do Brasil, para o fato de a Espanha ter desenvolvido historicamente pelo menos duas modalidades altamente profissionalizadas, o futebol e o ciclismo, enquanto no Brasil temos praticamente só o futebol? O que você pensa sobre esse desenvolvimento histórico de duas modalidades profissionais e não apenas uma, o futebol, como é o caso do Brasil?

Andar de bicicleta envolve muitas formas diferentes de prática. Existiu um ciclismo popular desde a década de 1910 e principalmente de 1920. Nessa época, aconteciam muitas competições populares, algumas até que não eram exatamente esportivas, mas mais como uma festa para reunir as pessoas que iam fazer um passeio de bicicleta. O uso recreativo da bicicleta era generalizado nessa época. Por outro lado, para a profissionalização do ciclismo não era fundamental o envolvimento de um clube, como é o caso do futebol. Para o ciclismo profissional, a chave são as empresas patrocinadoras. Observe que as competições de ciclismo em seus primórdios eram até organizadas por jornais, não por federações, portanto tem um caráter diferente.

Na verdade, todas essas equipes de ciclismo atuais da Espanha são patrocinadas por uma empresa. No futebol agora também existe a questão das empresas patrocinadoras, que tem um peso importante. Porém, até as décadas de 1950 e 1960, o marketing mal havia entrado nos clubes de futebol. Por outro lado, no ciclismo era a base dessa atividade, até porque não há espectadores pagantes, especialmente no ciclismo de estrada, que é a modalidade que predominou e predomina até hoje na Espanha. Existem países onde há um desenvolvimento do ciclismo de pista. Na Espanha, contudo, quando se fala em ciclismo, já nem se fala mais em ciclismo de estrada, pois todos assumem que ciclismo é na estrada. Atualmente, há muito pouco ciclismo de pista na Espanha. No início havia velódromos, ainda desde o final do século XIX, mas praticamente desapareceram.

 

Leia a segunda parte da entrevista no dia 22 de abril!

Referências

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Cleber Dias

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa em História do Lazer.
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