Marcelo Carvalho é o fundador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol e desde então tem monitorado casos, especialmente, de racismo no futebol. O Ludopédio entrevistou o Marcelo durante sua vinda para a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) para um ciclo de palestras sobre racismo no futebol na Faculdade de Educação Física. Aqui no Ludopédio, em 2020, participou como apresentador do programa #poroutrofutebol antirracista. O trabalho que o Observatório vem desenvolvendo é essencial em um mundo do futebol que normalizou o preconceito. Acesse os relatórios já produzidos pelo Observatório.

Marcelo Carvalho
Foto: Sérgio Settani Giglio.

Parte 2

E aí seguindo nessa linha, olhando clubes, jogadores, é uma pergunta que vai se desdobrar em quatro aqui (risos). Olhando pra estrutura do futebol, então, como tem sido essa relação com os clubes, com os jogadores, com a CBF e, também, mais recentemente com o Ministério do Esporte? Então, dividimos em quatro momentos para pensar como que tem sido essa receptividade, embora o “te ligo amanhã”, talvez continue Marcelo, mas hoje não dá para dizer que alguém que está num clube de futebol fala “ah eu não sabia que existia um Observatório… que existe um Observatório da Discriminação Racial no Futebol”. Imaginamos que isso não acontece mais, acontece?

Ainda acontece…

Então a situação tá mais difícil do que a gente pode imaginar…

Ainda acontece… Porque ainda acontece de pessoas que dizem: “Ainda tem racismo no Brasil?”. Então baseado nisso, a gente vai dizer, vai conversar com pessoas que… “Eu não conhecia o Observatório.”. Então, pessoas ligadas ao futebol.

Mas voltando assim, na cabeça da pergunta, os jogadores. Como eu conhecia jogadores, fiz um primeiro contato e eu disse: “Cara, eu não posso montar o pilar do meu trabalho nos jogadores.”. Primeiro porque tem uma resistência muito grande de falar sobre o tema. Segundo que na minha cabeça eu sempre entendi o jogador de futebol, nessa questão racial e social, como o elo mais fraco da corrente. Se esse cara falar o que acontece com ele… E logo no início do trabalho do Observatório tem o caso Márcio Chagas que é muito marcante. Em que ele se posiciona contra o racismo que sofreu, ele se aposentar, e todo o ataque que ele sofre nas rede social das pessoas dizendo para ele assim: “ah, tu saiu, tu se aposentou porque tu queria ir pra uma emissora de TV, tu usou o racismo pra se promover.”. Eu disse: “Cara, não pode ser jogador de futebol. Não é aqui que eu tenho que trabalhar.”. Ao longo do tempo eu vou perceber que existe um lugar para eu trabalhar, ou para eu lançar o olhar principal que é o jornalista.

E aí tem uma frase que o Paulo César Tinga fala que é quando ele sofre o racismo no Peru, em 2014: “É a primeira vez que eu sofro racismo e a imprensa no final do jogo me pergunta sobre o racismo que eu sofri. Porque já passei por outras situações e a imprensa me perguntou sobre o jogo e não sobre o racismo.”.

Então tem uma mudança aqui, eu disse: “é aqui que tá a mudança”. A mudança precisa ser novas perguntas. É aí que a gente precisa entender. Então como é que eu faço para a imprensa entender que existe um trabalho sendo feito e que ela precisa olhar para esse trabalho? Então eu me olho pra esse lugar. Jogador de futebol não dá, dirigente de clube, os que eu já tinha conversado, a conversa tinha sido no sentido de: “Aqui não tem racismo.”. “Como não?”. ” Não, aqui não! Quantos casos de racismo tu tem aqui?”. Eu disse: “Mas e o racismo estrutural? A não presença de negros aqui.”. “Ah não, mas isso aí é uma outra coisa… Isso aí é porque vocês não se qualificaram, isso daí é porque vocês… porque vocês…”. Aí eu: “Tá bom…”. Então o jornalismo. Encontrei alguns jornalistas que reproduziam o que o Observatório falava, e eu disse: “Ah, tá aqui”. E aí a gente começa e eu lembro que quando a gente lançou o primeiro relatório em 2015, a gente lançou ele na internet: “Ó, existe um relatório…”, chamei alguns jornalistas que eu já tinha contato, mandei pra outros portais, eu disse: “Olha, aqui tá um compilado dos casos de racismo que aconteceram em 2014, com os desdobramentos desses casos, onde aconteceu e tal.”. Alguns jornalistas repercutiram aquilo e criou-se a expectativa do segundo relatório. “Tá aqui!”.

Ao mesmo tempo que, se eu paro para pensar, o trabalho do Observatório é um trabalho que as pessoas olham, alguns valorizam, alguns não. E aí eu penso: “Cara, a tática é a seguinte: não vamos apoiar esse cara, porque se a gente não apoiar e ele precisar da questão financeira, logo em seguida ele vai ter que trabalhar com outra coisa que vai dar dinheiro para ele. Então se a gente não apoiar, ele morre de fome, então vamos deixar ele lá.” E eu disse: “Cara, eu preciso resistir. Então vamo seguir.”. Faço um contato com uma entidade inglesa que diz: “a gente passa uma expertise, a gente tem alguns contatos…” ou “te ligo amanhã” ao mesmo tempo que ele é horrível, mas ele também é uma esperança. A gente faz um trabalho com o Ministério do Esporte em 2018. O Ministério do Esporte teve um projeto muito legal, com as torcidas organizadas e a gente falava sobre racismo para as torcidas organizadas. Então teve vários eventos em várias regiões do Brasil, um trabalho que eu acho que precisa ser retomado, inclusive. Então a gente tem o primeiro contato com o Ministério do Esporte. É 2016. Vem o golpe, a gente ainda tem contato, em 2018, com o Ministério do Esporte, que chama o Observatório para fazer o lançamento do relatório lá. A gente entregou aqui relatório pra quem tá aqui, amanhã a gente vai chegar em Porto Alegre, 200 exemplares pra tu distribuir. Eu acho que o caminhão se perdeu no meio do caminho (risos), virou. Os relatórios nunca chegaram em Porto Alegre. E a gente nunca mais falou com o Ministério do Esporte. Aí vem a eleição, quatro anos de total ausência de possibilidade. E agora com o novo governo a gente participou da parte da transição, e aí ficou aquela coisa de “vamos conversar”. E aí as conversas começaram a acontecer, mas ainda é muito incipiente, ainda é um lugar que a gente também precisa entender que é um lugar político, que é um lugar de negociação política.

E aí quando eu falo negociação política não é algo que seja ruim. As pessoas precisam entender que negociação política faz parte da nossa vida. Hoje eu tô aqui na Unicamp, existiu uma negociação política de quem pensou em me trazer aqui, convencimento da universidade, entendeu? Isso é o que eu digo que é política. Então a gente tá nesse pé, da possibilidade de novas construções, com o “te ligo amanhã” sempre presente. Mas é isso assim, são possibilidades, são negociações, CBF, é sempre eu “conheço alguém” , “comunicação, vamo fazer alguma coisa aí”, “vamo, vamo, vamo, vamo, vamo”, “te ligo amanhã”… Novembro… “Marcelo, vamos fazer!”. Aí tinha aquela ação de novembro básica, muitas vezes aparecia a marca do Observatório, outras vezes não. E a gente estava ali por trás daquilo, como esteve por trás de diversas ações de muitos clubes no Brasil, de diversas ações de emissoras de televisão, algumas reconheciam a importância do trabalho e botavam a marca, pelo menos, outras nem isso. Pagamento então, ninguém queria pagar pelo trabalho. Mas, vamos indo.

Em 2022 a CBF tem o primeiro presidente negro e nordestino como ele se autodeclara. E aí ele senta na mesa para a gente conversar, ele entende a importância do trabalho do Observatório, entende a importância dessa produção de dados, até mesmo para que a CBF pense em novas ações. E aí a gente está tendo um diálogo, eu considero um diálogo muito bom com a CBF. Nos possibilitou de outras empresas e outros clubes e federações entrar em contato, porque, querendo ou não, nós estamos falando da maior entidade do futebol brasileiro, isso é inegável. Não tem como eu pensar em futebol e crescimento sem eu olhar para a CBF. Não tem como. Então é um projeto que hoje me anima muito, me deixa muito esperançoso. E são construções. A CBF está construindo, o Ministério do Esporte a gente está construindo, clubes começaram a entender o que que a gente está falando, marcas começaram a entender o que a gente está falando. O Observatório conseguiu se posicionar no sentido de: “legal, parceria legal, a gente falar sobre isso legal, tu falar sobre o Observatório.”, mas cara, falar de racismo sem falar de dinheiro, a gente não tá falando de racismo. Se vocês não pensarem na necessidade de injetar dinheiro num projeto de combate ao racismo, numa comunidade negra, a gente não está combatendo o racismo, e vocês não entenderam o que é racismo. E agora a gente está conseguindo fazer essa marcação. “Eu quero uma palestra”, tem um valor de ajuda de custo. “Eu quero uma consultoria”, tem um valor de ajuda de custo. Claro que eu continuo fazendo palestras gratuitas, continuo com muito prazer indo em escolas e universidades públicas, mas para quem ganha grana a gente precisa marcar que eu tenho certeza que se tu vai usar isso lá na frente como “a minha empresa pensa na diversidade”, usando a marca do Observatório. Então nada mais justo que o Observatório receba por isso.

No seu discurso fica bastante marcado a questão da imprensa. Você fala bastante do papel da imprensa, da importância da imprensa. De que maneira a mídia esportiva ela poderia contribuir para o fortalecimento da luta antirracista, sobretudo no futebol?

Tu me lembrou de um grupo que a gente criou de trabalho que lá na segunda ou terceira reunião alguém disse assim: “lá vem o Marcelo, e vai dizer e a imprensa?”, e é bem isso mesmo, porque a imprensa tem papel fundamental em tudo que a gente faz, em tudo que a gente pensa de Brasil. Porque as pessoas acham que a gente cria um senso comum baseado na nossa ideia. Não. A gente cria um senso comum baseado no que a gente vê reproduzido na televisão, principalmente na televisão. A gente criou baseado no senso da televisão um padrão de beleza.

O padrão de beleza no Brasil é homens e mulheres brancas. A mulher loira, o homem não precisa ser loiro, mas esse é o padrão de beleza criado pela televisão, criado pela novela, no Brasil. Quando a gente fala de racismo, no futebol principalmente, a gente precisa pensar no que está sendo dito por aquelas pessoas que o torcedor ouve.

Porque mais do que gostar do jogo de futebol, o torcedor no outro dia ele liga a televisão pra ver o comentário que o jornalista está falando, e ele liga o rádio. Ele tá em campo, ele tá indo para o estádio, ele está com o “radinho”, agora até que essa mania se perdeu um pouco. Mas ele está indo para o estádio, ele está indo com o “radinho”, ele ouve o jogo no “radinho”, ele vai pra casa ouvindo o comentarista esportivo. E me marca muito um debate que sempre foi feito no Rio Grande do Sul, hoje perdeu um pouco de força, que se debatia muito, se chamar negro de macaco era racismo ou era folclore. Isso era de uma violência absurda, porque quem estava discutindo se chamar negro de macaco era racismo ou era folclore eram homens brancos. Que se achavam no direito de dizer até mesmo que não entendiam alguém se ofender de ser chamado de macaco, afinal de contas um macaco é um animal muito perto do homem, inclusive talvez mais inteligente do que o homem. Só que esses mesmos homens brancos que estavam falando ali, eles eram jornalistas formados pela academia, que tiveram presença na universidade, e que sabiam, sabiam como o Brasil se construiu. Eles sabiam que um dos argumentos para se escravizar o povo negro era que a gente era inferior aos humanos. Então a gente era muito parecido aos símios, mas a gente não era humano, a gente estava ali entre os humanos, um pouquinho mais inteligentes do que os símios, então a gente podia ser escravizados. Esse foi um dos argumentos utilizados para a escravização. Então não pode uma pessoa na televisão dizer que não entende porquê uma pessoa se ofende de ser chamada de macaco. Não pode. Inclusive porque ela cria argumentos e defesa para um racista. O cara cometeu um ato racista, ele vai dizer: “Não, mas eu fiz isso porque o fulano disse que isso não é racismo.”.

Então por isso a imprensa tem papel fundamental, e por isso a imprensa tem um papel informativo. Eu participei de um evento numa universidade que era uma turma de jornalismo. E estava lá um professor da universidade, mas ele também era chefe de redação de um dos grandes portais de um estado no Brasil. E lá no debate ele disse assim: “Cara, tem duas coisas que eu preciso reconhecer aqui.”. Primeiro hoje é que o jornalismo antigamente era a base dele no editor. Então o jornalista escrevia um texto, o editor lia, recebia cartas, nós estamos falando lá de 1980, a internet nem estava perto disso. Tu escrevia jornal num dia, no outro dia o jornal recebia a carta e ele dizia: “Olha, conforme as cartas das pessoas…”. Mas não influenciava no debate. O texto aprovado ou não ele era texto que alguém, o editor lia. Hoje o jornal está fundamentado em cima do clique. Então é: “vamos jogar ali no portal, principalmente na capa o que dá mais clique.” E aí o que dá mais clique muitas vezes são matérias que a gente fica pensando: “Meu Deus, que que isso tá fazendo aqui?”. “Fulana foi na praia de calcinha…”. Mas é isso. Então hoje dá muito clique tu falar do caso de racismo. Não dá clique tu falar dos desdobramentos desses casos.

Então assim, se a gente olhar o relatório do Observatório, ouso dizer que 60% dos casos a gente vai achar ali, desdobramentos, resultado final “não foram encontradas as informações.”. Porque eu pego o caso Márcio Chagas como exemplo, a imprensa de todo Brasil falou muito do caso Márcio Chagas, o que o Márcio Chagas sentiu, e até mesmo existe uma violência que é tu puxar o atleta para falar aquilo todo o tempo. Quando o Márcio Chagas coloca o Esportivo na justiça, eu acho que foram cinco anos na justiça que correu o processo. Márcio Chagas ganha aquilo, sai na nota de rodapé de um portal. Se sai na nota de rodapé de um portal, eu posso entender duas coisas: ou eu não me interesso pelo resultado, tô pouco me lixando pro desdobramento do caso; ou, mais do que isso, eu não quero nem que as pessoas saibam que um clube pode ter sido punido por isso. Então o papel da imprensa é fundamental informar. Fundamental em passar a informação do que a gente está entendendo hoje. Porque assim, eu não entendo o que aconteceu em tal lugar, quem vai me informar sobre isso? A imprensa. Eu vou ler. “Cara, o que alguém disse?”. Hoje, com a internet, a gente tem pessoas, que não são grandes portais, que nos dão informação melhor do que um portal. Mas eu tenho que querer isso, eu tenho que gostar de ir atrás, eu tenho que gostar de ler, e a maioria das pessoas não quer isso, a maioria das pessoas sequer abre, clica, vai ler a capa, vai ler o título da notícia. Então é fundamental que a imprensa reconheça o seu papel na luta antirracista para que a gente consiga evoluir um pouquinho mais. Eu acho que a imprensa já evoluiu muito, eu acho que antigamente um caso de racismo a imprensa mal publicava sobre o caso, colocava ali no meio da matéria: “ah também nesse jogo teve isso.”. Hoje tu tira isso da matéria do jogo e tu coloca isso à parte. Mas também está muito preso ainda o ganhar clique ao noticiar um caso de racismo.

Marcelo Carvalho
Marcelo Carvalho durante a entrevista. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Voltando um pouco na questão das instituições, olhando pra América do Sul, a gente tem a Conmebol, e com a Conmebol a Libertadores, que é uma competição que tem uma série de registros de preconceitos. Acho que com o trabalho do Observatório isso tem sido monitorado, registrado, o que antes não era feito. Mas como tem sido esse diálogo com a Conmebol? E como você também percebe semelhanças e diferenças com os nossos países vizinhos da América do Sul? Quais são os desafios pensando uma ação mais nesse “Sul” global?

O primeiro ponto importante é a gente entender que por mais que a gente lute e diga que o Brasil não trabalha a questão racial como deveria, o Brasil nesse conjunto de países da América do Sul, está um passo muito avançado no debate ao racismo, principalmente quando a gente olha, hoje no Brasil a gente já conversa o combate ao racismo usando expressões racistas. Então, “ah o fulano usou uma expressão racista.”, a gente já deu um passo adiante da proibição de um negro entrar em um espaço, a gente já deu um passo adiante de o racismo do insulto e o xingamento, o gesto racista, a gente tá debatendo expressões racistas. Nos nossos países vizinhos o debate ainda está muito preso à visão: “será que isso é racismo?”. Porque existe, principalmente olhando para a Argentina, uma questão que eles discutem muito mais, e aí talvez a Conmebol também esteja presa nesse lugar, que é discutir muito mais a questão da xenofobia. Quem é o argentino? Quem é o uruguaio? E aí a gente vai ver aquela notícia de: “Na Argentina não tem negros.”. Na Argentina tem negros. 6% da população da Argentina é negros. Aí uma menina da Argentina me disse: “a questão é que os negros da Argentina não se declaram negros, eles se declaram argentinos.”. Aqui no Brasil a gente já conseguiu fazer com que a população negra se declare negra, de orgulho negro. Sabe todo o trabalho que existiu lá na década de 1980, do orgulho negro, 100% negro. Então a gente tem esse avanço. Nos países aqui a gente não tem esse avanço, ainda tá um passo atrasado. E a Conmebol está dentro do Uruguai, está muito presa. A força política do Brasil na Conmebol é uma disputa muito grande. Quem tem mais influência na Conmebol? Brasil, Argentina, Paraguai porque tá lá, e essa disputa tá ali, essa disputa ela existe. No Chile existe o orgulho do chileno, ser branco, mesmo com o Sul do Chile extremamente indígena, mas o chileno ele se coloca nesse lugar, o argentino se coloca nesse lugar. E o brasileiro é visto por esses países como um país mestiço, porque a nossa população é composta por negros, e principalmente quando a gente fala de Brasil e futebol, a foto da seleção brasileira é uma seleção constituída por muitos, muitos homens negros.

Então para esses países nós somos o país dos negros. Tanto é que em 1920 o “El Gráfico” coloca: “Sejam bem-vindos os macacos”. E é aí que eu acho que tá a grande mudança. 1920 quando o “El Gráfico” coloca isso então o Presidente da República diz: “Vamos fazer o seguinte, vamos convocar jogadores brancos”, para que a imagem do Brasil não seja uma imagem de pessoas negras.

Não deu certo, o Brasil perde jogos e tal. A diferença pra isso que eu trago na linha do tempo já pra cá é: quando o Observatório ali em 2022 simboliza que no início da competição da Libertadores e Sul-Americana foram 12 casos de racismo quase em sequência, o Presidente da CBF envia uma carta pra Conmebol dizendo: “Olha, nós temos um problema.”. Que eu não conheço outra manifestação como essa. Eu conheço é manifestação das pessoas dizendo: “vamos tornar a seleção branca”. Então a gente tem uma mudança né, 100 anos depois, uma mudança gigantesca de posicionamento: “Eu reconheço que a minha seleção é negra e quero respeito pelas pessoas negras do meu país.”. Então a  mudança é gigantesca. Mas, existe uma cultura Sul-Americana, existe uma cultura principalmente dentro da Conmebol, que a gente precisa entrar nesse espaço. Como eu entro nesse espaço?

E aí está esse outro lugar, que é anos que a gente passou tentando entrar na CBF, a gente trilhando esse caminho agora, pra “Ou Conmebol, olha aqui, tô aqui! Existe um Observatório que monitora casos de racismo, vamos sentar, vamos conversar.”. E é esse processo que a gente vive hoje, já olhando para entidade, maior do futebol que é a FIFA, para também um dia sentar na mesa com o Infantino, com quem quer que seja, para dizer pra ele: “Cara, a gente tem um problema gigantesco no futebol, que as ações não podem mais ser pensadas em cima de campanhas contra o racismo”. Eu acho que existe um modelo muito bom que pode ser seguido, que é o que faz a Federação Inglesa, mesmo com, “ah mas continua os casos de racismo”, continua. Mas a Federação Inglesa está fazendo coisas e ações que nos levam a crer que existe de fato alguém lá dentro preocupado. Eu acho que esse é o modelo a ser seguido. E o Observatório é isso. Vocês querem dados? Eu tenho. Vocês querem saber projeção de futuro baseado no passado que não se constrói nada, não se constrói nada pra frente sem olhar pra trás? Então é isso que a gente precisa entender. Quer saber o que vai acontecer com uma nova denúncia de racismo? Olha, acessa o relatório. Tu vai entender como o tribunal julgou, como o tribunal julga, como as pessoas pensam, é isso.

O que eu te pergunto é o seguinte: Você poderia falar um pouquinho mais sobre essas ações? Você está falando do modelo inglês, de como ele é positivo, então eu queria que você falasse um pouquinho mais sobre essas ações e de que maneira essas ações poderiam inspirar novas ações aqui no Brasil?

A gente viveu os últimos anos com pessoas tendo vozes, e dizendo que quanto mais se fala de racismo, mais o racismo está presente na sociedade. E a gente sabe que isso não é verdade. A gente sabe que a gente precisa falar de racismo para que as pessoas se eduquem e para que as pessoas entendam. Então a gente precisa falar de racismo. Como é que a gente vai falar de racismo? Essa é a grande questão. Então a gente precisa que o futebol primeiro entenda que ele não é simplesmente o reflexo da sociedade, ele potencializa essas ações e que ele precisa trazer pro mundo do futebol pessoas negras que falem de racismo, pessoas negras para conversar sobre racismo. Acho que esse é o ponto principal do debate que precisa ser dito. A gente precisa entender as dimensões do racismo no futebol. Tem diferenças? Tem! Mas elas precisam ser estudadas para que a gente não fique preso em dizer que “ah mas isso foi uma brincadeira, isso foi o calor da emoção”. Quando eu falo da gente falar de racismo é assim, a gente precisa ter uma campanha que quando o jogo comece, eu leia lá: “Racismo”. Seja na camiseta do jogador, seja na placa de publicidade, seja no backdrop que é usado, lá tem que estar a primeira mensagem. A gente tem que usar o espaço do futebol ali naquele intervalo do jogo, para exibir no telão mensagens usando jogadores, usando outras pessoas negras, usando pessoas não negras para falar de racismo. Mas isso tem que ser o tempo inteiro, porque o tempo inteiro o torcedor tem que ouvir isso, mesmo aqueles que se incomodam: “Ou mas de novo?” De novo! Porque se tu acha que de novo eu estou aqui para falar de racismo, eu vou te contar que de novo morreu um jovem negro, de novo eu fui impedido de entrar em espaço, de novo eu fui humilhado. Então, a gente precisa reforçar isso o tempo inteiro. E aí quando eu falo da Federação Inglesa é nesse sentido assim, eu acho que existe lá uma campanha que ela se fez muito presente de 2020 para cá, que é o “Black Lives Matter”.

Então a Federação Inglesa incentivou, eu não sei se exigiu, mas antes dos jogos do Campeonato Inglês os jogadores estavam se ajoelhando. Isso gerou um grande debate, que aí eu também gosto disso. “Ah mas os caras não tão se ajoelhando porque eles entenderam, é uma obrigação.”. Mas existe um jogador que não quer ajoelhar que está ajoelhando e existe torcedor que não quer isso e está vendo isso. E essas pessoas tão falando sobre isso e o debate tá acontecendo. Porque a gente precisa debater, mesmo que o debate seja exacerbado, seja quente. Debater sobre racismo. As pessoas precisam nos ouvir. Então vamos fazer uma ação, e ela gerou debate, ela gerou um passo. E é isso assim, então a Federação Inglesa fez isso, quando os meninos da seleção, quando os atletas, da seleção inglesa erraram pênalti, eles foram muito ofendidos nas redes sociais, a Federação Inglesa chamou Facebook, chamou Instagram, chamou Twitter, chamou TikTok e disse: “as pessoas que ofenderam os jogadores elas precisam ser banidas da rede social.” E a rede social fez aquela comunicação básica: “a gente não consegue identificar os autores da ofensa, a gente não consegue fazer nada.”. A Federação Inglesa chamou a liga, a Federação Inglesa chamou o sindicato dos jogadores. Sentaram todo mundo, fizeram um trabalho e eles identificaram os autores das ofensas racistas. Fizeram um documento e levaram para as redes sociais e disseram: “Nós identificamos, como vocês não conseguem?” E aí as redes sociais disseram: “E agora?”. E aí por exemplo, teve um dia, um final de semana de não uso das redes sociais por parte dos atletas e clubes. Pô, isso pra rede social é um percentual grande de pessoas que não estão ali gerando conteúdo.

A Federação Inglesa apoiou a manifestação da seleção inglesa nos torneios que aconteceram. O capitão da seleção inglesa falava sobre racismo, a seleção inglesa ouvia os jogadores: “O que acontece? O que vocês querem falar?”. É isso. A gente só teve um movimento grande no esporte a partir do momento que a NBA, que foi a primeira entidade que apoiou o movimento “Black Lives Matter”, que disse para os atletas: “Vocês podem se manifestar que a gente está aqui apoiando vocês.”.

E mais do que isso, “O que vocês acham que a gente pode fazer?”. E aí todo jogo da NBA estava lá a placa “Black Lives Matter”, jogadores com as camisetas. E aí o jogador que nunca se manifestou olhou pro lado desse cara, “Eu também quero falar. Eu nunca falei porque eu tinha medo de represália e tal. Pô, mas agora eu tenho o microfone aqui.”. E não é alguém dizendo assim: “Tu tem que falar”. Não, o microfone tá aqui. Aí eu olho pro microfone uma vez, olho pra ele a segunda, na terceira vez eu: “Alô alô, opa…”, e aí o cara vai falar. E aí a gente teve um crescimento gigantesco na NBA, que vai ter reflexo na NFL, que vai ter reflexo no hóquei, que vai ter reflexo lá na Alemanha quando um jogador ajoelha e a Federação Alemã diz assim: “Vamos punir esse cara.”. E aí alguém diz: “Não, cara.”.

E aí a Federação Alemã faz uma reunião e comunica: “Vamos fazer uma reunião para tratar sobre o jogador que se manifestou…”. Termina a reunião e a Federação Alemã diz: “Nós vamos apoiar as manifestações.”. É isso. Então, por exemplo, a FIFA não fez essa manifestação, mais do que isso, o futebol brasileiro volta ali naquele pós-pandemia que não era pós-pandemia, e a gente não viu manifestação coletiva, foi um clube que outro em que jogadores ajoelharam. A gente, o país mais negro fora do continente africano simplesmente foi uma ausência. Como é que a gente diz? “Um silêncio ensurdecedor” sobre um tema que é muito caro para toda a sociedade brasileira. Então é isso, a gente precisa falar de racismo. Tem gente que até hoje ainda não entendeu o que a gente está dizendo, não entendeu ainda que algumas coisas que a pessoa fala é racismo e que ela vai ser acusada de racismo. A gente precisa entender que tem muitos países que estão atrás no debate, tem muita gente que também está muito atrás nesse debate.

 

Confira a terceira parte no dia 9 de agosto de 2023!

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Nosso objetivo é criar uma rede de informações, de pesquisadores e de interessados no tema futebol. A ideia de constituir esse espaço surgiu da necessidade e ausência de um centro para reunir informações, textos e pesquisas sobre futebol!

Felipe Tavares Paes Lopes

Graduado em Comunicação Social (ESPM) e em Filosofia (USP). Mestre (PUC-SP) e doutor (USP) em Psicologia Social. Pós-doutor em Sociologia do Esporte (Unicamp). Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e pós-dourando no CPDOC-FGV. Realiza pesquisa sobre o movimento de resistência ao "futebol moderno" com auxilio da Fapesp.
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