Marcelo Carvalho é o fundador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol e desde então tem monitorado casos, especialmente, de racismo no futebol. O Ludopédio entrevistou o Marcelo durante sua vinda para a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) para um ciclo de palestras sobre racismo no futebol na Faculdade de Educação Física. Aqui no Ludopédio, em 2020, participou como apresentador do programa #poroutrofutebol antirracista. O trabalho que o Observatório vem desenvolvendo é essencial em um mundo do futebol que normalizou o preconceito. Acesse os relatórios já produzidos pelo Observatório.

Marcelo Carvalho
Foto: Sérgio Settani Giglio

Estamos chegando no final (risos). O caminho também para essa transformação mais efetiva, passa por uma reconfiguração das estruturas de poder. Em que sentido estamos pensando isso? Delas se reconfigurarem, do ponto de vista da representatividade, ou seja, não adianta a gente só olhar talvez lá para quem joga, mas assim, olhar pros diferentes lugares, seja o jornalista, que a gente falou bastante, seja lá o dirigente e pra ser a dirigente, na própria universidade para ter o professor, a professora negra. Então essa transformação, de alguma maneira ela está em curso, mas ainda muito lenta, e talvez essa seja, daí a pergunta, uma das dificuldades, que a gente gostaria que tudo tivesse muito mais rápido acontecendo e que as coisas vão em passos lentos, porque para entrar essa pessoa, muitas vezes significa dentro dessa lógica da estrutura que tem que sair alguém. E numa lógica assim: “mas essa pessoa é competente, essa que tá sentada aqui, como que eu vou tirar, Marcelo? Né, como que eu vou trocar…” E aí cai em uma questão: “Ah, mas eu não posso contratar essa outra pessoa”. Se essas instituições não podem contratar, quem somos nós pra contratá-las então, Marcelo? Mas eu queria te ouvir um pouco isso, a mudança ela tem que passar por aí também?

É fundamental que a mudança passe por aí. Eu não consigo falar de diversidade se eu não tiver diversidade no meu quadro administrativo. Eu preciso falar, eu preciso que as pessoas que estejam trabalhando nesse espaço saibam do que elas estão dizendo. Mas antes disso, eu preciso não me perder agora na resposta que é: a gente precisa entender como as pessoas chegam nesses espaços de decisão do futebol brasileiro. Quem são essas pessoas que estão tomando decisões no futebol brasileiro hoje? Vamos começar pelos clubes: Quem são os presidentes de clubes?

Presidentes de clubes na sua maioria são pessoas cujo seus familiares já estiveram nesse lugar.

Então, a gente tem famílias que estão se revezando no poder na maioria dos clubes no Brasil. O presidente atual do clube “x”, o pai dele já foi presidente, ou o avô dele já foi presidente ou um tio já foi presidente. Ele está ali porque ele conviveu nesse meio de poder. E quando a gente fala de meio de poder, de novo falando de política nesse lugar, como eu vou constituir a minha diretoria? A minha diretoria vai ser constituída pelo meu núcleo político, porque existiu uma eleição entre dois núcleos políticos, um ganhou. Para conseguir chegar nesse lugar eu fiz vários acordos políticos, então eu vou ser presidente, a minha chapa é constituída assim: eu sou do grupo A, junto com o grupo B a gente se uniu, fez essas costuras. E aí quando a gente tem as diretorias de marketing, de comunicação, de futebol, isso vai ser muitas vezes entregue a esses grupos políticos, eu preciso colocar ali alguém que seja meu aliado, e eu preciso colocar ali alguém de confiança, e eu preciso colocar ali alguém que seja dos meus.

E aí a gente vai ver a composição das diretorias dos clubes de futebol, são pessoas brancas. Até anos atrás eram homens brancos, hoje a gente olha uma fotografia são pessoas brancas porque a gente já tem mulheres brancas nesses espaços, mas são espaços majoritariamente compostos por homens brancos. E muitas vezes a gente vai ver no departamento de marketing e comunicação alguém que saiu da universidade ontem. “Não, não, tu vai ser o gestor de comunicação.”, “Tu vai ser o gestor jurídico.”. E ninguém contesta a capacidade dessa pessoa de tá ali, porque cara, até ontem eu nem sabia quem tava no jurídico do meu clube, eu nem quero saber, o torcedor vai dizer “eu nem quero saber, eu quero…”, tá ganhando, tá tudo certo, eu não quero saber quem tá na comunicação, no jurídico. Então assim, isso tá mudando, por quê? Porque a gente está tendo coletivo de torcedores que estão querendo entrar nesse espaço e que estão dizendo: “Cara, qual é a competência que esse cara tem pra tá aí?”. Então a gente precisa entender primeiro essa composição que é dessa maneira. Clubes indicam pessoas para serem presidentes de federações, então o presidente da federação ele saiu desse espaço de presidente de clube, se o presidente da federação saiu desse espaço de presidente de clube, ele vai ser também um homem branco. Talvez hoje seja uma mulher branca, mas ele vai ser alguém branco. Para chegar lá na CBF, majoritariamente, esse caminho que eu trilhei, eu sou um homem branco. Agora 100 anos depois, a gente tem um homem negro, que é uma exceção da exceção. Essa é a composição que a gente tem e a composição que se dá para chegar nesse lugar. Olhando para diversidade tão necessária, a gente vai ter isso que tu falou: “bom, eu preciso ter um quadro de diversidade, mas hoje já tá composto o meu quadro, quem eu tiro pra colocar um homem negro lá? Ou uma mulher negra?”. Se o fulano é bom, beltrano é bom, fulano é meu sobrinho, é meu amigo, é filho do fulano, é filho do… “Bah” é difícil tirar alguém. Tá, mas vamos fazer o seguinte, vamos botar essa pessoa negra lá para falar de racismo, então a gente cria uma outra área. E a gente só vai ouvir essa pessoa negra, seja homem, seja mulher, quando o assunto for racismo. Outro pitaco, “Não, não não. Nem convoca pra reunião.”.

Então essa pessoa vai virar quase um decorativo. Então é preciso entender que a pessoa negra que entrar nesse lugar, ela precisa entrar pra de fato ser ouvida e não só sobre racismo. Ela precisa ser ouvida sobre futebol, ou sobre marketing, ou sobre comunicação, e ela precisa ser ouvida de fato, não só em novembro, não só sobre racismo. E aí a gente está num processo muito difícil, principalmente falando dos clubes, por isso que eu digo, a gente precisa entender como são compostos a administração de um clube de futebol. Como é composto lá aquele quadro que tira foto: “Essas são as novas diretorias de um clube de futebol.”.

A gente precisa entender esse lugar, e que esse lugar, cara, ele não quer abrir a possibilidade de as pessoas negras ou pessoas pobres de estar nesse lugar.

Porque ser conselheiro de um clube de futebol muitas vezes é um “status”. Uma reunião ali de conselheiros, todos eles com dinheiro, falando de suas propriedades, dos seus carros, aí chega o Marcelo lá, chegou de ônibus, cansado do trabalho, “o que esse cara tá fazendo aqui?”. Então, esse lugar hoje está sendo conquistado com a força de guerra mesmo, assim. Tem clubes hoje, vários clubes no Brasil hoje têm grupos políticos compostos por torcedores, que aí vão ser na sua maioria pessoas brancas pobres e negros, negros e negras, que estão chegando nesse lugar, que vão sofrer todo tipo de violência e resistência. “Ah, tu não entende nada de futebol, porque tu não tem passado no futebol.” Cara, e aí não tive resultado. “Viu, como não dá pra deixar essas pessoas aqui? Porque a gente deu espaço pra esses caras, esses caras, olha como é que está.”. E nem é questão financeira, precisamos entender que eu vou botar ali alguém nesse lugar. Ele vai dizer: “quem é esse cara?”, “ah, ele é dono de um banco.”, “…ele é dono de um supermercado.”, “pô, seja bem-vindo.”. Inclusive até porque ele vai botar grana pra contratar jogador. “Cara, que é o Marcelo?”, “Não, o Marcelo tem boas ideias.”. Primeira temporada o clube perdeu, segunda temporada o clube perdeu, daqui a pouco já vai rolar até um processo de impeachment… “Esse cara tem que ser…”

“Tá vendo, esse cara só atrapalhou…”

“Só atrapalhou…”. Entendeu? “Nós estamos aqui falando sobre título, aí o cara quer botar uma faixa no peito da camiseta sobre não racismo, que isso, cara? Futebol!”.

“Isso vai tirar o foco”.

“Isso vai tirar o foco”.

“Eles têm que jogar e ganhar…”

Isso! Cara, essa frase é: “jogador não pode entrar com a camiseta que vai tirar o foco!”. Vai tirar o foco? A gente está falando, o torcedor também tem muita contribuição nisso. Jornalista também. Porque uma ação contra o racismo antes do jogo, time perdeu, “tirou o foco.”. O torcedor não tem a ideia que o jogador nem sabia. Na porta do vestiário, o jogador recebeu a camiseta, “Pá, bota a camiseta”. Ele não sabia da ação, então não tirou o foco do jogador, não tirou o foco da direção, o time perdeu por outros motivos, mas é isso. E aí a gente vai ter uma resistência muito grande, como tu perguntou, a gente teve clube que falaram sobre homofobia que o jogador disse: “Não.”. A gente teve na Inglaterra, agora na Espanha, o Dia do Orgulho LGBT, que todos os jogadores iam entrar, todos os clubes, um negócio bem legal. Todos os clubes iam entrar com números com arco-íris, tal. Teve cinco jogadores que, se eu não estou enganado, é na Espanha ou na Inglaterra, que eles disseram: “Não entro.”. E aí o clube: “Se tu não botar a camiseta, tu não joga!”, “Não boto!”, “Não joga!”. E agora a federação tá dizendo que vai punir esses jogadores. Porque é isso, cara. Não é que o cara seja obrigado, a religião dele não permite, ele precisa entender que a gente não está falando aqui de questões políticas, direita e esquerda, a gente está falando de humanidade. Tem gente morrendo por ser negro, tem gente morrendo por ser gay. Então a gente precisa fazer parte disso. Não quer fazer parte disso? Vai fazer outra coisa na vida. Aqui nesse espaço é um espaço de respeito.

Marcelo, como as pessoas podem ajudar o Observatório a continuar o seu trabalho independente? 

Hoje a gente a única maneira de arrecadação, assim, para o torcedor, é: compre a camisa do Observatório. Na compra da camisa, uma parte desse valor vem para o Observatório e a gente pode pensar ações do próprio Observatório. Isso vai custear a viagem do Marcelo para alguns lugares que o Marcelo precisa ir, que foi convidado, mas não teve recurso. Então, o dinheiro é usado para isso, o dinheiro que entra para o Observatório não é usado para o salário do Marcelo, é usado para pensarmos em novas ações, para pagar alguém para fazer um logotipo, um patch. Cara, a gente precisa fazer o dinheiro girar, e não dá para ficar naquela coisa de “Pô fulano, eu sou do Observatório, tu é muito bom, faz isso pra mim, na parceria?”. Se eu não quero que alguém me chame pra fazer uma parceria sem pagar, eu também não quero chamar ninguém pra fazer uma parceria sem pagar essa pessoa, então hoje é muito importante que o Observatório tenha caixa para poder ser independente. E eu só vou conseguir ser independente se eu tiver caixa e dizer para a instituição: “Olha, eu vou fazer um trabalho contigo, tu não é minha dona, eu continuo sendo o Observatório, mas eu tenho que ter caixa pra isso.” Eu tenho que ter caixa para viver, eu tenho que ter caixa para poder contratar novas pessoas.

É importante as pessoas também pensarem nisso, eu, Marcelo Carvalho, eu cuido da rede social, cuido do site, eu cuido, entendeu? Eu, a Débora, a Tuani, o Elton, o Luciano, a Roberta, mais ou menos, esse é o núcleo do Observatório. Hoje cada um com um grau de trabalho um pouco maior, um pouco menos, mas esse é o núcleo. Se eu tiver grana, eu consigo dizer: “Cara, eu gosto muito do teu trabalho, eu queria que tu dedicasse 100% ao Observatório e eu vou te pagar pra isso.”, porque o Marcelo, está há nove anos nesse trabalho porque eu quero, eu não posso fazer as outras pessoas passarem pelo que eu passei para fazer o trabalho do Observatório resistir ao longo desses nove anos. Então, comprem a camiseta, acessem a rede social do Observatório, sigam o Observatório nas redes, também é importante ‘retweetar’ o Observatório, valorizar o trabalho do Observatório, entender o posicionamento do Observatório, a gente não decide nada. Quando a gente coloca lá que o Tribunal de Justiça… “Pô, porque você…”. Eu não puno ninguém, não tenho o poder de punir ninguém, também não quero o poder de punir ninguém, eu quero que as pessoas façam reflexões, reflexões a partir do que tá escrito ali, para que a gente consiga mudar essa realidade. Eu acho que esse é o ponto fundamental, assim, eu gosto da academia por isso, que as pessoas entendam que aqui a gente não veio aqui para receber verdades, a gente veio aqui pra receber conhecimento para questionar. E aí através do questionamento eu vou fazer novos conhecimentos serem adquiridos. Porque é isso, não dá para simplesmente ler uma matéria e achar ali está a verdade, “não, vamos fazer uma reflexão sobre isso”, mas reflexão sadia, né. Também não dá pra virar ‘hater’ de tudo. Vamos fazer uma reflexão sadia. 

Marcelo, aí chegamos naquela pergunta que é a que fecha, ou quase fecha, que a gente faz pra todo mundo. O que é o futebol pra você? É a mais simples, a gente deixa pro final (Risos)

Cara, futebol pra mim é uma paixão. É algo que infelizmente ainda me deixa triste e alegre, né, a derrota do time que eu torço, que todo mundo torce pra um time. A derrota da Seleção. Muitas vezes a gente está vendo um jogo lá na Inglaterra, tá torcendo, tá… se pega torcendo. “Cara, vou desligar a TV, que que eu tenho a ver com esse time aí?” Mas é isso, futebol é para mim é mais do que isso, futebol para mim é um simbolismo do Brasil e é também um lugar onde a gente passa muitas ideias para as pessoas. Eu acho que tem muita coisa ali naquele marketing de emboscada, naquele marketing oculto, tem muita coisa disso no futebol. O espaço do futebol ele é muito disputado. A camiseta de um clube de futebol seja pelas empresas que patrocinam o futebol, seja pelo torcedor que quer a camiseta de um jogador. Tem muito simbolismo nisso. É um espaço de disputa muito grande, porque tem uma marca ali que se eu não conhecer aquela marca, eu vou botar no Google, “que marca é essa que apareceu ali?”. Tem recados que são dados quando o jogo é transmitido, por isso que eu falo tanto da imprensa, porque o cara no meio do jogo ele “ah, porque não sei o quê da eleição pra governador”, a gente: “ah, foi só um comentário.”, “Não, não, não foi só um comentário.”.

A gente precisa entender que vários presidentes que passaram pelo Brasil, usaram do futebol para se autopromover. A gente tem vereador, a gente tem deputado, a gente tem prefeito, a gente tem governador, que passaram pelo futebol e ali tiveram esse alcance maior, depois se lançava à política. Então o futebol é esse lugar de inúmeras possibilidades, que sempre foi usado politicamente, mas nunca foi usado ou quase nunca foi usado politicamente pela esquerda. Quase nunca foi usado politicamente por grupos coletivos que trabalham no combate ao racismo, à homofobia, à violência contra a mulher, e que hoje esses grupos tão começando a usar esse espaço para a gente discutir. A gente não pode pensar no futebol como algo tão importante pra sociedade, mas que ali estão homens que cometeram estupro, homens que cometeram abuso, homens que cometeram outros crimes, eles não podem viver no mundo do futebol como se eles não tivessem feito nada. A gente precisa entender que hoje, olhando o futebol como um espaço de jogadores que ganham muito dinheiro, a gente precisa entender que nem todo jogador de futebol é milionário, que é apenas 0,5% dos jogadores que têm salário alto. Então a maioria dos jogadores estão recebendo salários muito baixos. E a gente precisa ter um olhar muito atento para as categorias de base dos clubes de futebol. Hoje virou uma indústria as categorias do clube de futebol. Hoje o pai de jogador, a profissão dele vai virar pai de atleta. Ele vai vender carro, ele vai vender casa, para acompanhar o filho dele num possível teste que o filho dele vai ter, que vai ser a chance do filho dele, e a gente tá vendo crianças de 12 anos com uma responsabilidade enorme de dar certo, porque tem toda uma família, tem o pai que vendeu tudo pro filho dar certo. Isso é uma violência extrema, extrema, porque o menino de 12 anos não está preparado para nada disso, e não está nem preparado para receber 100 mil na conta dele. Porque o menino que recebe 100 mil olha para o pai e daqui a pouco ele vai se achar que ele é o dono da família. “Eu sou agora, financeiramente, quem dá o sustento pra família. Então agora eu mando.”. Não.

Eu preciso ter respeito pelo pai e pela mãe. A gente precisa entender o recado que foi dado lá atrás que a família é constituída por um pai e por uma mãe, e aí a gente olha pra Seleção Brasileira e tinha uma Seleção Brasileira onde 60% dos jogadores foram criados só pela mãe, pela avó, então, que família é essa que a gente tá dizendo que existe no Brasil, que não existe na prática? Então eu acho que o futebol é esse lugar de muitos recados, de muita importância. A gente idolatra jogador de futebol de um jeito que a gente não idolatra Presidente da República. E a gente precisa entender que um recadinho dele, um simples recadinho dele na rede social influencia muita gente. A eleição passou por esse processo de jogadores se posicionando aos 45 do segundo tempo e as pessoas dizendo: “Ah, não, mas não vai acontecer nada.”. Aconteceu. Virou muito voto. Teve uma mudança significativa no olhar de meninos e meninas de 16 e 17 anos que estavam indo votar. “Fulano disse que o voto é aqui”. Influenciou. Influencia. Então para mim o futebol é esse lugar. Eu gosto do jogo, mas eu gosto de pensar que tem tanto recado sendo dito ali que se a gente não prestar atenção, a gente vai para um caminho que vai ser ruim de voltar. Porque é isso, porque a gente no Brasil também a gente pensou assim: “Ah, novela e futebol alienam.”, e a gente esqueceu que a novela e o futebol acabavam sendo muitas vezes o livro para aquelas pessoas que não iam na escola. “Que que eu faço da minha vida? Que que eu uso? Que bom, que produto é bom para o meu cabelo? Que tênis é bom para usar?”. Aí eu ligo a televisão, tem lá a novela dizendo: “Ó, o melhor celular é esse. O melhor tênis é esse. O melhor produto de beleza é esse.”. E o futebol com seus jogadores usando e o futebol é aquele lugar que é o seguinte: o jogador vestiu um boné, amanhã, cara, tu faz uma consulta na rede social, vários meninos: “Eu quero usar isso aqui porque fulano usou isso aqui.” Cara, isso é capaz de dar tragédia na família, porque o menino disse para o pai que “eu quero usar o tênis que o fulano ganhou”, e tem muitos pais que tem tênis de jogador de futebol hoje em dia que é mais caro que o salário de, sei lá, 70% dos trabalhadores no Brasil. E que o filho vai ficar o tempo inteiro dizendo para o pai e vai ter a frustração do meu pai não ter me dado o tênis que o fulano usou. Ele não vai dar, não vai dar e não vai dar! Entendeu? E eu sei por mim quantas vezes eu olhava pro “cara, eu queria ter…”, entendeu? 

Vários comentários eu recebo nas redes do Observatório: “mas o jogador de futebol, a maioria é casado com branca, nem eles se respeitam.”, tá, mas tu sabe como é a construção disso? Não é assim. É uma construção. O padrão de beleza da mulher no Brasil é a mulher branca. Jogador de futebol atingiu um status, o que que ele quer? Onde é que os jogadores moram? “Ah, naquele condomínio”, “então eu tenho que morar lá”. Que carro que todo mundo compra? “É o carro tal.”, tem que ter aquele carro. Qual o padrão de mulher que tá na foto da revista pro jogador? “É aquele.”, “Também é esse que vai virar o meu padrão.”, “porque eu quero conquistar tudo aquilo que as outras pessoas conquistaram”. 

Então o futebol para mim está nesse lugar. Nesse lugar que é muito longe do resultado do jogo de ontem. Ele tá muito além do resultado do jogo de ontem. Porque tem muito dirigente e jogador que não está nem preocupado com o jogo, o negócio dele está em outro lugar. E é isso que a gente precisa pensar, principalmente, para finalizar, quando chegaram as casas de aposta. Que nos mostraram que o resultado do jogo não é o mais importante, porque a aposta nem sempre é do resultado do jogo, a aposta está em outro lugar. E aí a gente não educou os nossos jogadores para pensarem que: “Cara, receber dinheiro pra fazer um simples lateral é algo ilegal.” Mas que jogar para lateral, sempre joguei. Na escolinha eu aprendi que não pode jogar pra escanteio, porque na escolinha muitas vezes o resultado do jogo era quantos escanteios teve. Nós discutimos agora no final da copa masculina, porque o nosso meio campo não fez a falta lá naquele momento. “Faz a falta, toma o vermelho, o amarelo.”. Hoje a gente pensa: “Tá, mas existe um mercado comercializando o cartão vermelho e amarelo.”. E é isso, isso é o futebol, ir para além das quatro linhas que a gente precisa muito e muito discutir. 

Marcelo Carvalho
Marcelo Carvalho é o Diretor Executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Foto: Sérgio Settani Giglio.

E prometo que é a última! Para arrematar mesmo e fechar, recentemente teve o caso do Vini Jr. que ganha uma proporção gigantesca, acho que por “n” fatores, especialmente por ser na Europa, num clube como o Real Madrid, de ter o posicionamento do treinador naquele momento que ele vai pra entrevista, eu acho que isso faz ganhar força, embora dá pra discutir o posicionamento ao longo da temporada ou da carreira dele em relação a isso, mas qual é a sua reflexão do caso do Vini Jr., muito emblemático? No que ele pode ajudar na luta antirracista e o que só olhar pro caso Vinícius Jr., o que pode atrapalhar olhando em termos de Brasil? 

Importante demais todas as manifestações que estão apoiando o Vini Jr.. Importante demais. Manifestações individuais, manifestações de clubes, de entidades, do governo. Importante demais, porque antes quem falava de racismo estava praticamente sozinho. Primeiro ponto, ok. Segundo ponto: é muito fácil a gente se unir para falar que a Espanha é racista. É muito fácil. Mas aí a gente está esquecendo de olhar pro Brasil. Tem muita gente dizendo que “lá na Espanha as coisas não estão ocorrendo como deveriam. Porque lá na Espanha a justiça desportiva deu uma punição e depois diminuiu a pena.”. Gente, não é lá na Espanha o problema. Aqui no Brasil a situação é exatamente igual. Aqui no Brasil a gente tem tantos ou mais casos de racismo do que na Espanha. Aqui no Brasil a justiça desportiva trabalha da mesma maneira, pune, quando pune, e depois diminui a pena num recurso. Aqui no Brasil os clubes não apoiam os jogadores, assim como a gente questionou o Real Madrid de não apoiar o Vinícius Jr.. É isso. De novo: importante demais todas as manifestações de apoio ao Vini Jr., mas vamos olhar para cá, vamos olhar para nós e vamos ver o que eu posso fazer enquanto indivíduo, enquanto sócio de um clube, enquanto presidente de clube, enquanto presidente de federação, enquanto presidente de confederação. O que a gente pode fazer? Para acabar com o racismo aqui. O caso Vini Jr. serviu para mobilização, tanto de jogadores, como de federações, de clubes, de principalmente marcas esportivas, que até então também achavam que o problema era do futebol.

E aí eu fico pensando “tu patrocina uma competição que tem casos de racismo, não te incomoda?”. Tu patrocina um clube que contratou um jogador acusado de abuso sexual, de racismo, de violência contra a mulher, não te incomoda, tua marca atrelada a isso? Na tua empresa, tu contrataria essa pessoa?

Essa é a reflexão. Se eu boto dinheiro numa marca, num clube ou numa competição, esse clube, essa competição tem que ter os mesmos princípios que os meus. Porque é o meu dinheiro que está lá. Então essa é a reflexão nesse momento. De quem principalmente que eu acho que, eu acho que a revolução vai acontecer a partir do momento que as marcas entenderem, porque tudo no mundo é dinheiro, infelizmente tudo é dinheiro. A partir do momento que as marcas entenderem que elas não podem patrocinar clubes que não trabalhem com a questão, discriminação, não podem apoiar federações e confederações que não trabalham com a questão, nem competições. A partir desse momento eu acho que a gente vai ter um salto, na luta antirracista, gigantesco. Até lá a gente vai continuar no mesmo lugar, porque muitas vezes, infelizmente, o clube, o dirigente sente no bolso. Não sente no bolso com a multa, porque a multa é que nem a dívida de um clube, não é ele que vai pagar. O clube fez mais um empréstimo agora, ele devia 250 milhões, agora ele deve 500. Cara, é o meu CPF? Vão fazer mais dívida, então assim, a partir do momento que a torneira fechar tudo vai mudar. “Cara, não vou te dar empréstimo, porque tu não pagou a dívida.”, “eu não vou te dar empréstimo, porque tu não pensou na questão de discriminação.”, “Eu não vou patrocinar porque…”. Aí o cara vai dizer “opa, o que que eu…?”. “Eu vou ter que…”, mas azar. Entendeu? Eu também queria que ele fizesse isso de coração, mas o “eu vou ter que…” vai ser o que vai fazer a gente andar num primeiro momento. 

Legal, Marcelo. Agradeço em nome da equipe do Ludopédio. E se você quiser falar algo que a gente não perguntou, fique à vontade, e muito obrigado pela entrevista!

Não, eu acho que eu falei tudo. O único recado que eu quero dar agora é um olhar que a gente precisa começar a ter diferente do que a gente vem discutindo. Quando a gente vem discutindo racismo no futebol a gente pensa em quem punir, a gente pune clube, ou a gente pune o torcedor. E a gente está preso nesse debate desde sempre. Mas tem uma outra coisa que a gente também precisa pensar: “Qual é o meu papel enquanto torcedor de futebol, que se diz progressista, preocupado com as causas humanitárias e antirracista? Qual o meu papel nisso?”. 

O meu papel nisso é eu começar não aceitar mais conviver na arquibancada com torcedor racista, homofóbico, violento. 

É nosso papel enquanto torcedor, começar a estar no estádio e ouvir uma ofensa racista e dizer: “Esse cara aqui não pode mais tá aqui.”. Chama a polícia, chama o segurança, mas é nosso papel. E nosso papel além de apontar o racismo no outro lado, nosso papel é tirar da arquibancada do nosso clube esse torcedor. Então a minha convocação que eu faço hoje é: “Vamos tirar da arquibancada esses torcedores.”. Mas é nosso papel, individual, enquanto ser humano, olhar e não aceitar mais isso. Assim como a gente olha e diz “ah, mas eu não aceitaria a propina em Brasília.”, mas eu furei a fila aqui. Então se a gente quer que o futebol não seja racista, nosso papel é expulsar esses racistas do estádio e nosso papel é não cometer atos racistas, homofóbicos, violentos, preconceituosos no estádio, porque aí a gente precisa entender também que a gente foi educado achando que o estádio era esse lugar. E a gente tem isso na cabeça. Muitas vezes a gente vai para o futebol e grita palavras preconceituosas, depois a gente senta, faz um exame e percebe que está errado. Mas é isso. Vale primeiro o exame, “errei”, e depois vale a gente conversar com essas pessoas, se elas não entenderem, que elas não podem mais frequentar estádios de futebol. Nosso papel, enquanto torcedor, é esse. Não dá mais para a gente também achar que todo o problema vai ser resolvido pela polícia, pela justiça. Não. A gente tem muita culpa em tudo que tá acontecendo hoje.

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Nosso objetivo é criar uma rede de informações, de pesquisadores e de interessados no tema futebol. A ideia de constituir esse espaço surgiu da necessidade e ausência de um centro para reunir informações, textos e pesquisas sobre futebol!

Felipe Tavares Paes Lopes

Graduado em Comunicação Social (ESPM) e em Filosofia (USP). Mestre (PUC-SP) e doutor (USP) em Psicologia Social. Pós-doutor em Sociologia do Esporte (Unicamp). Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e pós-dourando no CPDOC-FGV. Realiza pesquisa sobre o movimento de resistência ao "futebol moderno" com auxilio da Fapesp.
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