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Luiz Henrique de Toledo (parte 3)

Equipe Ludopédio 31 de março de 2010

Graduado em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social e doutor Antropologia Social pela USP, Luiz Henrique de Toledo é hoje um dos principais pesquisadores ligados à temática esportiva. Sua dissertação de mestrado ganhou o Prêmio José Albertino Rodrigues, concedido pela Anpocs, de melhor dissertação em Ciências Sociais de 1994. Professor do departamento de Ciências Sociais da UFSCAR, Kike (como é conhecido nos corredores acadêmicos) retoma, nesta entrevista, algumas das principais questões trabalhadas em suas pesquisas. Além disso, apresenta suas linhas de pesquisa atuais, centradas tanto no campo da Antropologia Urbana, como também no da Antropologia do Esporte.

Luiz Henrique de Toledo
Luiz Henrique de Toledo apresenta suas pesquisas sobre antropologia do esporte. Foto: Enrico Spaggiari.

Terceira parte

Em 2009, você lançou, junto com seus orientandos, o livro Visão de Jogo, que traz artigos sobre vários esportes, incluindo o futebol. Como o estudo sobre o futebol ajuda a compreender os demais esportes, bem como o inverso?

Estudar o futebol ensinou-nos sociologia, nisso o [Roberto] DaMatta foi imbatível. Quer dizer, aprendemos a estudar um esporte, no caso o futebol, e aí detonamos um processo mais extenso de observação de outras práticas. Há, então, um ganho metodológico e teórico, legado importantíssimo. Mas hoje vemos que o contrário também é verdadeiro. Essa dimensão tão masculina que está na base do nosso entendimento sobre a relação entre futebol e identidade foi matizada por algumas autoras, como, por exemplo, o capítulo da Lara Sthalberg na coletânea que organizei com Carlos Eduardo Costa, o Visão de Jogo (2009). E tantos outros pesquisadores que vêm trabalhando com outras modalidades acabam tensionando a “segurança” e a centralidade investida no futebol como tema de análise. Buscar outras centralidades, até mesmo para se pensar na questão da identidade, pode trazer muitos ganhos teóricos e definitivamente avançarmos para um quadro mais geral sobre práticas esportivas. No Visão de Jogo, e não quero fazer aqui muita auto propaganda, outras dimensões e relações com os esportes são colocadas de maneira muito original pelos trabalhos ali publicados e isso alarga nossa sensibilidade e faz com que deixemos mais de lado essa obsessão em se perguntar por que o futebol é tão popular. Grandes questões na antropologia chegaram às nossas mãos pelas pontuais, mas bem feias, etnografias. Não devemos mais cair nessa de que o futebol-objeto é grande e por isso vai ou pode nos oferecer grandes teorias. Até pode, mas pensar cada vez mais outras práticas esportivas nos levará ainda mais longe.

A categoria “dom” atravessa as pesquisas sobre diferentes esportes e vem sendo objeto de investigação em diferentes áreas. Como podemos investigar esta categoria?

Vou repetir o que disse na defesa da ótima dissertação de mestrado de Enrico Spaggiari, defendida em 2009 na USP. Numa certa altura discutíamos os usos que fazemos em nossas pesquisas da teoria maussiana (e de tantos outros) do dom. A questão que se colocava naquele momento da defesa era se o ex-jogador retribuía na forma de dom aquilo que havia conquistado nos gramados. Creio aí que temos uma dimensão temporal que deve ser levada em consideração, aliás, Bourdieu já chamou a atenção para isso! Cito um excerto da dissertação: “Trata-se de uma aposta numa possível retribuição do dom por meio dos difusores. Após se aposentar dos gramados, antes mesmo dos 40 anos, a trajetória futebolística é prolongada, atuando a partir de então no plano pedagógico, uma forma de retribuição do dom: o que esse ex-jogador recebeu e que lhe permitiu vivenciar o universo espetacularizado teria de ser retribuído à sociedade, numa lógica próxima ao princípio da reciprocidade (Mauss, 2003b)”. Penso, como disse lá na defesa, que o atleta já vem retribuindo o dom ou frações de dom quando joga. Como ex-atleta o que observamos, então, seria uma espécie de transformação do “dom jogar” para o “dom ensinar”. O que quero com isso, exatamente? Acho que a etnografia nos oferece mediações e problematiza os usos laminados e mecânicos que se atribuem à noção. O dom no futebol, que é tomado como um feixe de qualidades tomadas por “inatas” não é algo inalienável na sua totalidade. O que noto é a transformação desse dom – o cara jogava e retribuía isso dentro de campo na forma de gols e títulos aos torcedores e cifras (mercadoria) para os dirigentes, agentes, empresários dentro do regime profissional, no caso. Há um princípio dstributivo do dom, mas isso se dá de forma desigual, porque o campo futebolístico é apreendido dessa maneira.

Portanto, o jogador é portador de qualidades na forma mercadoria e na forma dom ao mesmo tempo, a depender de como a sua habilidade é vista, quer dizer, de como é perspectivizada dentro do campo futebolístico (às vezes é dom, às vezes é mercadoria..) pelos torcedores, técnicos, mídia e etc. O dom futebolístico não circula como potência totalizante incorporada aos objetos, é inalienável nesse sentido, mas se projeta na forma de frações de dom nos variadas circunstâncias. Então o dom também é um processo e não sei por que pensá-lo como retribuição que só começaria (ou fecharia um ciclo) no momento em que o cara para de jogar, isso é enrijecer classificações e usar mecanicamente o conceito.

Luiz Henrique de Toledo
Luiz Henrique de Toledo menciona que o dom do futebol está além dos gramados e dita condutas fora dele. Foto: Enrico Spaggiari.

Seguindo essa ideia, o dom pode ser visto ainda mais fracionado como “dom drible”, “dom lançamento” e etc. Quero com isso chamar a atenção para esses fracionamentos do dom, o cara lança bem, mas chuta mal e etc. E essas qualificações do dom fazem com que ele circule como mercadoria, numa temporalidade diferente e isso determina as carreiras esportivas. Didi dominava os fundamentos do chute, aquilo virou “folha seca”, tem alguma poesia e senso estético aí que também é do domínio do dom e menos do domínio da mercadoria. Claro, ele foi vendido pela marca da folha seca, então ela é expressão de dom, de mercadoria. O Edmundo tinha o “dom” de arrrumar confusão, isso trouxe problemas para o jogador na condução da sua carreira. Tomar o dom nesse registro alegórico e quase banal é levar a sério o que os nossos ditos nativos falam, quer dizer, temos que correr literalmente atrás desses usos nativos para etnografar e trazer alguma contribuição à problemática do dom a partir das práticas esportivas e não usar a teoria como decalque. O dom no futebol está para além das técnicas ou das qualidades do jogar, dita as condutas fora dos gramados. Precisamos desenvolver isso e convido o Spaggiari a pensar e sistematizar um pouco mais sobre isso.


No capítulo final desse livro você realiza um debate teórico das obras do brasileiro Roberto DaMatta e do argentino Eduardo Archetti. Quais conexões são possíveis traçar entre esses autores para se estudar o futebol? Quais têm sido as principais contribuições dos estudos argentinos sobre o futebol para as investigações brasileiras?

Publiquei no último capítulo do Visão de Jogo alguns comentários e relações entre o Matta e o Archetti, parte dessa pequena discussão apresentei numa ANPOCS. O próprio Da Matta, junto com o Ricardo Benzaquén estavam na primeira fila, só olhando. Mas acho, primeiro, respeitosa e cabível tal comparação. São dois grandes pensadores de seus respectivos países a partir de fenômenos intensamente vividos por milhões (futebol, tango e etc). Mas o curioso é que um ficou tanto tempo fora e faz uma análise internalista muito fina sobre seu país e o outro, que morou muito mais aqui dentro, produz comparações dualistas sistemáticas (Brasil e Estados Unidos, por exemplo). Ali métodos e gostos teóricos são diferentes e o bacana é perceber como lidam com originalidade a questão das identidades, tão históricas para um, tão estruturais para outro. Com eles, mas também por eles, passamos em revista boa parte da teoria antropológica do ponto de vista de quem estuda os fenômenos esportivos.


Recentemente, você vem estudando o Samba. No livro Footbalmania, Leonardo Pereira relata que o objetivo inicial era estudar o samba e acaba por pesquisar o futebol. Quais relações são possíveis de serem traçadas entre os dois temas?

Tenho vivido o samba mais do que estudado. Alguma hora dessas a vontade de etnografar pode aparecer, mas ainda não consegui reverter o gosto e o vivido em objeto pensado. Tudo ainda está no plano da subjetivação, quem sabe isso não me levará estudar outras entradas teorias e tomadas de posição metodológica ante um fenômeno tão arrebatador quanto o futebol e os esportes. Acho que sei fazer etnografia, mas com o samba está difícil, e isso já é um tema a ser pensado. Onde exatamente se ancora essa dificuldade? Então começarei com reflexões metodológicas…

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