Marcelo Carvalho é o fundador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol e desde então tem monitorado casos, especialmente, de racismo no futebol. O Ludopédio entrevistou o Marcelo durante sua vinda para a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) para um ciclo de palestras sobre racismo no futebol na Faculdade de Educação Física. Aqui no Ludopédio, em 2020, participou como apresentador do programa #poroutrofutebol antirracista. O trabalho que o Observatório vem desenvolvendo é essencial em um mundo do futebol que normalizou o preconceito. Acesse os relatórios já produzidos pelo Observatório.

 

Marcelo Carvalho
Foto: Sérgio Settani Giglio.

Então Marcelo, a gente começa bem pelo início mesmo. Queremos ouvir você contar um pouco como foi o seu primeiro contato com o futebol, como que o futebol aparece na sua vida, isso olhando lá pra sua infância, até você chegar na criação do Observatório.

Difícil isso. Difícil dizer quando o futebol entra na minha vida, porque eu acho que já nasci gostando de futebol. Talvez aquela ideia que a gente tenha que todo menino quando nasce recebe uma bola. Porque eu me lembro na minha infância, eu já gostava de jogar bola com os amigos. E tem uma situação que eu acho que sempre me traz assim a lembrança, fora essa, de gostar de jogar bola com os amigos e tal. Eu acho que foi na segunda ou terceira série que a professora pede para os alunos escreverem uma história. Eu acho que ali eu escrevi o meu primeiro livro, né, porque eu escrevi a história do Pelezinho, que é a história que passa na cabeça de todo o menino que sonha em jogar futebol, que na minha ideia era a de me tornar um jogador de futebol. Que eu iria fazer o gol numa final aos 49 minutos do segundo tempo, e aquilo ia me trocar de patamar, eu ia virar um grande jogador, ia tirar a minha família de uma situação mais pobre, para gente se tornar uma família com bens e financeiramente melhor. Eu acho que essas são as primeiras lembranças. Eu correndo atrás da bola, pequeno já. E essa é a história do livro! E depois, a minha infância inteira foi me programando para chegar da escola e jogar bola com os amigos, o tempo inteiro assim. O futebol sempre esteve muito presente na minha vida.

 

Você chegou a tentar ser jogador? Ou só ficou nesse plano do sonho?

Não. Com nove anos acho, essa história é na primeira e segunda série. Eu fiz teste numa escola, que era uma escola particular que hoje até é uma Universidade em Porto Alegre. Eu comecei a jogar futebol de salão, joguei campeonatos municipais e ganhei uma bolsa pra estudar nessa escola particular a partir da história de jogar futebol dentro dessa escola. Acabei não ficando, porque a minha família troca a residência, então, a gente sai da Zona Norte, vai para a Zona Sul e eu acabei perdendo essa bolsa de estudos. Faço o teste em alguns clubes. Vou jogar nesse futebol que a gente chama de futebol de várzea, que as escolinhas de bairro levam para jogar nos torneios municipais e estaduais, e há a possibilidade de alguém te ver jogando. Teste mesmo, eu acho que fiz um teste num grande clube. Mas quando eu cheguei lá e o treinador me perguntou qual era minha posição, eu falei pra ele: “olha, eu sou volante.”. Aí ele disse assim: “Miau, vai jogar de lateral esquerdo.”. Eu fiquei cinco minutos em campo e ele nem olhou para o que estava acontecendo. Eu disse: “cara, isso não é pra mim, sei lá, não vale esse esforço. E também porque, se a gente levar para uns 40 anos atrás, os meninos de categorias de base não recebiam dinheiro. No máximo o que tu recebia na base era uma ajuda de custo para pagar a passagem. Que é diferente de hoje, que o menino de 12 anos está aqui recebendo um salário. Naquele tempo não tinha isso. Então, naquele tempo, meus amigos jogavam, era legal o amigo jogar num clube, mas ao mesmo tempo era complicado porque ela está jogando no clube e ele não pode jogar aqui na vila. Então assim, o futebol… “ah legal, quero ser um jogador de futebol”, mas o meu pai também dizia que: “não, vai fazer outra coisa”, e aí não deu certo não insistir. Hoje eu fico pensando o porquê que eu não insisti, mas tá tudo certo (risos).

 

Você é formado em administração, na época da faculdade o futebol aparece como um tema a ser estudado na faculdade de administração ou ele fica muito distante? Como foi essa relação com a universidade? 

Na faculdade de administração o futebol não entrou assim. Eu me lembro que antes de fazer administração eu fiz uns dois anos de engenharia. Na engenharia o futebol teve mais presente porque era uma universidade muito parecida com a Unicamp, em São Leopoldo, uma cidade perto de Porto Alegre, tinha um campo bonito. E aí eu me lembro que lá eu queria jogar, e joguei, e aí continuei jogando no time. Mas na administração, não. Na administração a gente não passava pelo futebol. É o que eu sempre falo: a universidade meio que torceu o nariz para o futebol. Eu acho que se as escolas de administração pensarem que hoje tem um campo enorme para pessoas que estão se formando em administração trabalharem dentro de clubes de futebol. Tem um campo muito grande pra gente pensar. Mas até então, o futebol passa como uma paixão dos torcedores, nunca foi debatido dentro de uma faculdade.

 

E em que momento surge a ideia de você criar o Observatório da Discriminação Racial no Futebol? Como foi todo esse processo, diante até dessa distância que a própria universidade deu em relação ao futebol? Imagino que você já tava formado, mas como é que foi todo esse processo de criação do observatório?

A faculdade em si sempre me manteve distante ali, nas aulas, dessa possibilidade. Mas na minha cabeça ainda eu mantinha o sonho de… “bom já que não me tornei jogador de futebol, eu vou me tornar alguém que trabalha com futebol. Quero trabalhar na área de marketing do futebol”, porque eu fiz administração com ênfase em marketing. Então, poxa, “eu vou trabalhar na área de marketing de um clube”. Me formo, faço um curso de pós-graduação em gestão esportiva. Este curso me coloca no cenário desse futebol, com administradores, com jogadores, com treinadores. Eu vou conhecendo o futebol fora das quatro linhas. Ali eu tenho o primeiro choque de realidade de entender que aquele futebol que até então eu também achava um esporte democrático, ele não era democrático. Porque se eu via a quantidade de negros, uma quantidade grande de negros dentro das quatro linhas, naquele curso de gestão não existiam tantos negros. E mais do que isso, quando a gente conversava sobre a possibilidade de virar um gestor, de entrar no mundo do futebol, parece que tinha uma porta ali, parece que tinha uma barreira ali que ninguém te dizia mas, “cara, tem algumas coisa nessa comunicação que tá quebrada”. Mas eu tinha esse sonho de trabalhar em futebol, tomo aquele primeiro choque, e aí vou fazer um curso de MBA em gestão empresarial. Então, naquele momento estou saindo da área de “telecom”, onde financeiramente comecei a vida. Estou tentando migrar para o futebol e estou com todas essas coisas na cabeça. Terminei a faculdade, comecei uma pós-graduação em gestão esportiva, aí daqui a pouco eu já estou fazendo um MBA em gestão empresarial, e aí vem os casos de racismo com o Márcio Chagas, com o Tinga e com o Arouca. Aí sim, na universidade, mas mais uma conversa de torcedor, esse assunto ficou muito quente dentro da aula, e eu disse: eu sempre tive uma vontade, já tinha até feito um trabalho antes, para falar sobre os negros no Brasil. Porque sempre me incomodou muito a ideia da formação do Brasil, a formação do Brasil principalmente a formação do Rio Grande do Sul.

O Rio Grande do Sul é formado por italianos, alemães e portugueses. E aí eu sempre disse: “pô, mas onde estão os negros nesse lugar”. “Não, mas é uma quantidade baixa”. “Não, mas aonde eu moro tem um monte de negros”. A gente não faz parte dessa cidade!

Aí tu vai viajar para o interior do Rio Grande do Sul onde tá lá: “bem-vindo a uma cidade de colonização alemã”, “bem-vindo…”, “ah mas tem alguma coisa”. Isso sempre me incomodou, assim como me incomodou eu olhar um livro de história e nunca achar um personagem negro importante na história do Brasil. E aí tu vai lendo o livro, aí tu vai conseguindo entender que tem pessoas negras nessa história do Brasil, só que elas não estão contextualizadas como negras. Quando ocorre uma… uma morte, um assassinato, uma violência, a pessoa é presa e aí tá ali né: “o homem negro foi preso”, e tá bem marcado o negro. Quando André Rebouças… os irmãos Rebouças se tornam os maiores engenheiros do Brasil, a gente não tem essa marcação. Eu disse: “puts, preciso trabalhar com isso”. Então, em 2009, eu acho que foi… noventa e… não, ali pelos anos… início dos anos 2000 eu fiz um trabalho que era “O negro na internet”, que era valorizar a história de negros na história do Brasil assim… Aí né, a gente tem que pagar a conta, tem que fazer outras coisas, esse trabalho fica de lado. Mas aí em 2014, “tá aqui… tá aqui o nicho”, pra gente falar sobre a negritude no Brasil… Porque todo mundo para pra pensar futebol. A gente diz que não, mas todo mundo para na quarta e no domingo pra ver um jogo… a gente não consegue perceber o que tá por trás do futebol ali… Marca de publicidade, o quanto as empresas querem atrelar o seu produto a um jogador de futebol, porque isso vai vender. Eu disse “tá aqui um lugar pra gente falar de futebol”, e aí, junto tudo isso né, a vontade de trabalhar com futebol, a vontade de fazer algum projeto pra falar sobre o negro no Brasil, a paixão pelo futebol. Então, tudo entra nesse grande combo e nasce o Observatório.

E quais foram os desafios iniciais dessa trajetória, Marcelo? Ao mesmo tempo em que a gente vai pensar, por exemplo em 2014, tem uma questão das redes sociais que podem ajudar nisso, mas elas também têm um modo de funcionar muito particular. Aparentemente parece que você vai ter visibilidade, mas não é bem assim. Então como é que foi se lançar também, não só no mundo, assim, para atuar, mas pra ser visto por exemplo, na internet, nas redes sociais, como que vai ser esse trato partindo do zero?

A experiência com o trabalho anterior, ela já tinha me dado um  pouco de cancha de como é trabalhar com a internet e como é trabalhar tendo visibilidade. Então, isso eu já tinha um pouco de conhecimento. A outra questão é: conhecia algumas pessoas ligadas ao mundo do futebol, então já sei também que o futebol também não vai pegar um trabalho e jogar ele para cima. Não vai dar essa possibilidade. Já sabia também que financeiramente, o que eu vou ouvir dos clubes, das entidades, é: “Não temos dinheiro.”. Então, quando eu faço, quando eu crio esse perfil no Twitter, porque ele nasce no Twitter, naquele momento em 2014 eu vi vários outros perfis no Twitter falando: “Futebol sem racismo!”, “Chega de racismo!”, “Não ao racismo!”, então eram vários perfis igual ao Observatório, no sentido de “vamos trabalhar denúncias de racismo”, “vamos fazer, vamos trabalhar o combate ao racismo no futebol”. E ao longo do tempo esses perfis vão sumindo, porque quem criou esses perfis imaginava que o mundo do futebol ia olhar para esses perfis, ia dar uma sustentação, ia entrar dinheiro, porque o futebol tem muito dinheiro, é o que todo mundo pensa. “Vou fazer um trabalho no futebol, vou ganhar dinheiro”, então na minha cabeça isso nunca passou. Na minha cabeça passou assim: “vou fazer um trabalho porque eu preciso já que isso me incomoda”, é isso. Por isso que eu vou criar esse trabalho.

Me incomoda ouvir jogadores negros dizendo que: “Não vou falar de racismo porque nada acontece”, “Não vou falar de racismo porque eu vou ser prejudicado”. E isso me batia no pessoal.

Cara, a gente precisa mudar isso. Não dá mais para a gente ficar o tempo inteiro nesse lugar que a gente não consegue ser ouvido. Então, de 2014 até 2019, foi um trabalho de tirar dinheiro do bolso, de ouvir muito “não”. E nem é o ouvir “não”, porque na verdade quando tu consegue acessar um espaço, seja num clube, seja numa federação, seja com patrocinador, ninguém diz “não”, as pessoas te ouvem e dizem assim pra ti: “gostei muito da tua ideia, do teu projeto, vamos marcar uma segunda reunião”. E aí entra a criação da expectativa de: “essa pessoa vai me ligar”, e ela nunca mais me ligou! Eu me lembro que um jornalista em Porto Alegre, quando ele conhece o Observatório, e aí senta pra conversar comigo, a matéria que ele escreve para o jornal é: “Te ligo amanhã”… Era o título. Que contava um pouco da história do Observatório na expectativa da ligação do dia seguinte que não acontecia. Aí em 2019 a gente tem a primeira mudança de comportamento. A gente consegue juntar forças com o Bahia, para fazer aquele jogo Bahia e Fluminense, e chama atenção da sociedade que não tem treinadores negros, ganha uma visibilidade muito boa. Ali a gente tem o primeiro salto né, para depois chegar em 2022 e aí fazer essa parceria com a CBF, ser o segundo salto e um salto bem importante. Mas é isso, eu acho que o trabalho só vai dar certo porque não se criou uma expectativa, principalmente expectativa financeira. Eu sabia que aquilo ia ser um trabalho que dependia de mim, só isso.

Marcelo Carvalho
Marcelo Carvalho com a camisa do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Você estava falando um pouco dessas dificuldades iniciais, do segundo telefonema. Então, quem foram os principais aliados, sobretudo no começo do Observatório, em quem que vocês estabeleceram alianças, que atores você acha que tem sido importante ao longo da história do Observatório?

Por eu estar no Sul e mesmo que não tenha me tornado um jogador de futebol, não tenha entrado no mundo do futebol, eu acabei conhecendo muito jogador de futebol na minha adolescência. Então, eu tive aquele período de ir para a noite com jogador de futebol. É o primeiro contato que eu tenho, “bom, qualquer coisa eu ligo pra alguém.”. E depois eu vou conhecer pessoas que trabalham em clubes e em federações. Então essas pessoas fizeram um trabalho muito importante. É preciso reconhecer que eu acho que nem elas imaginavam assim… “tá, vem aqui no clube e nós vamos conversar contigo. Vamos fazer uma primeira ação.”. A ação ela não foi uma ação grande, de grande visibilidade, mas foi uma ação. Então a gente teve uma ação com o Inter, a gente teve uma ação com o Grêmio, a gente teve um seminário na Federação Gaúcha, lá no início do projeto. O São José, que é um clube também de Porto Alegre, abre as portas, a gente faz um vídeo, que eu tenho certeza que se esse vídeo fosse lançado hoje seria uma grande campanha, um grande case no Brasil. Mas lá em 2016, quando ele é lançado, a gente tem um alcance muito pequeno de rede de contatos. Mas ao mesmo tempo em que eu me sentia frustrado de não ter total apoio dessas pessoas, eu também me sentia: “bom, consegui abrir essa porta! Agora preciso trancar o pé aqui pra essa porta não fechar mais. Agora eu preciso entrar.” Mas é aquilo, também tinha aquela frustração de “poxa, mas tô segurando essa porta com toda a minha força, eu não consigo entrar. Parece que…”. Mas é isso, existiu essas pequenas pessoas que acabaram me dando uma abertura, me recebendo, e a criação dessa expectativa mesmo que o “te ligo amanhã” não funcionasse, “pô, eu consegui conversar com alguém. Pô, tem alguém que talvez, talvez, talvez…”. Claro que, aí tem um dia que é o copo meio cheio. Tem dias que eu olhava para aquele copo meio cheio, eu dizia: “Pô, consegui avançar.”. Tem dias que eu olhava pra aquele copo e dizia: “Cara, não sai desse lugar.”. São pequenos passos.

 

Confira a segunda parte no dia 19 de julho de 2023!

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Felipe Tavares Paes Lopes

Graduado em Comunicação Social (ESPM) e em Filosofia (USP). Mestre (PUC-SP) e doutor (USP) em Psicologia Social. Pós-doutor em Sociologia do Esporte (Unicamp). Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e pós-dourando no CPDOC-FGV. Realiza pesquisa sobre o movimento de resistência ao "futebol moderno" com auxilio da Fapesp.
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