06.5

Margarete Maria Pioresan – Meg

Margarete Maria Pioresan, a Meg, foi uma pioneira. Goleira de handebol e futebol, atuou pelas seleções brasileiras das duas modalidades, tornando-se uma referência dentro do universo esportivo brasileiro. Essa entrevista faz parte da pesquisa Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos desenvolvida pelo Grupo de Estudos Olímpicos da USP sob a coordenação da professora Drª Katia Rubio. Essa pesquisa conta com apoio financeiro da FAPESP.

Margarete Maria Pioresan foi goleira da seleção brasileira. Foto: Arquivo pessoal.
Margarete Maria Pioresan foi goleira da seleção brasileira. Foto: Arquivo pessoal.

 

Primeira parte

Meg, por favor, gostaria que você contasse sua história de vida…

Minha história de vida dentro do esporte foi no futebol feminino. Mas, na verdade, antecede o futebol, pois antes fui goleira de handebol. Só fui parar no futebol por causa do handebol. Aprendi a jogar handebol na faculdade, na Universidade Estadual de Maringá. Meu professor falou que eu deveria ir para o gol. “Mas no gol, professor? Nunca agarrei no gol”. Então, comecei primeiro no gol do handebol quando entrei na faculdade, em 1975. Joguei no gol pela seleção universitária paranaense de handebol. Depois, em 1979, vim para o Rio de Janeiro para jogar como goleira de handebol. Tive uma proposta de fazer meu segundo curso superior (de Fisioterapia) e de jogar pela equipe da faculdade. Logo depois, em 1983, fui convocada para a seleção brasileira de handebol e disputei o sul-americano. Fiquei na seleção brasileira de handebol até 1989. Eu era apaixonada por handebol. Porém, veio o velho e conhecido clube Radar, que precisava de uma goleira para a equipe de futebol. O presidente do clube me chamou para jogar futebol; falou que eu já tinha experiência internacional. Então, eu pulei de um para o outro, mas fiquei jogando nos dois durante alguns anos. Jogava na seleção brasileira de handebol e nos clubes de futebol. Na realidade, minha adaptação foi de tempo e espaço, por causa das diferenças de tamanho do gol e das técnicas. Eu tinha agilidade e coragem, mas tive que me adaptar. Aquilo ficava meio atravessado, pois tinha que treinar um e depois treinar o outro. Mas comecei a me adaptar e gostar. Como comecei tarde no futebol, a minha técnica era adaptada. Eu já tinha uns 25 anos. Na Seleção Brasileira de handebol, participei do Pan-Americano de Indianápolis em 1987, do Panamericano de Colorado Spring em 1989, e do Mundial da Bulgária em 1989, e alguns Sulemericanos. Eu era apaixonada, não ganhava nada, já dava aula na Prefeitura. Pelo Clube Radar, do Rio de Janeiro, joguei futebol durante cinco anos, entre 1980 e 1985. Decidi largar o futebol e fiquei só no handebol.Estava sobrecarregada fazendo os dois esportes ao mesmo tempo. Em 1988, teve o primeiro campeonato de futebol na China, extraoficial, e que teve o dedo do Presidente João Havelange. Eu já estava fora do futebol há uns três anos, mas a CBF me convocou. Só que eu pedi dispensa, pois estava convocada para a seleção brasileira de handebol que se preparava para o Mundial na Bulgária, em 1989. Tive que escolher. Decidi ficar no handebol, participei do Mundial e em seguida encerrei a carreira no handebol. Em 1991, a CBF me convocou novamente, embora estivesse para há cinco anos. Pensei: “mas será o pé do Benedito?”. Falaram que iria ocorrer o primeiro Campeonato Mundial oficial na China e teria depois a Olimpíada de Atlanta em 1996. Aí eu fiquei animada: Olimpíada? Algo para o qual nunca conseguíamos nos classificar no handebol. As americanas eram sempre melhores e conseguiam as vagas. Fui para a China. Eu tinha 35 anos quando fui para o Mundial. Pensei: “agora terei que aguentar até Atlanta. É difícil, é um sonho. Pode ser que eu chegue lá e não consiga. Mas se eu não tentar não vou saber”.


Você então coloca na cabeça que vai para Atlanta ainda no Mundial da China?

 

Meg
Meg durante entrevista. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Sim. Estava com 35, mas sabia que podia chegar. Sempre me cuidei fisicamente, sempre gostei de treinar. Quando assumi o compromisso sabia que teria que me cuidar. Segurei a onda, conseguimos a classificação no Mundial da Suécia em 1995 para irmos a Atlanta no ano seguinte. Pensei: “agora falta um ano. Só se acontecer um desastre”. E consegui chegar a Atlanta. Realizei meu sonho olímpico. Eu tinha 40 anos. Nossa equipe era muito boa, uma equipe que já vinha alguns anos no Radar. Não tinha apoio, mas sabia jogar. Não tínhamos ‘cancha’, jogos internacionais. Em Atlanta pegamos uma chave difícil: Noruega, Alemanha, que tinham sido campeãs e vice-campeãs no Mundial anterior. Eu falei: “nossa, acho que não vamos passar da primeira fase”. Conseguimos passar e mandamos a Alemanha embora. O sonho se realizou só se realizou depois que passamos da primeira fase. Nos Jogos Olímpicos de Atlanta, o futebol ficou em outros lugares, como Washington, e foi indo por fora. Só foram para Atlanta os quatro classificados para as finais. “Bom, agora está em Atlanta”. Olha, foi difícil. Chegamos a Atlanta e ficamos na Vila Olímpica. Pronto, o sonho foi realizado definitivamente. A Vila Olímpica não tinha sido construída para o evento, não era nova. Era uma universidade antiga, não sei se existe ainda hoje. Todos os atletas ficavam juntos. Fomos bem. Nossa campanha na primeira Olimpíada foi muito boa. Ficamos em quarto lugar. Conseguimos derrubar a campeã mundial na primeira fase, empatamos com a Noruega. Dentro do que tínhamos, fizemos bons jogos. Realizei um sonho. Parei de jogar na Seleção Brasileira e joguei mais quatro anos no Vasco. Fiquei dez anos lá no total. O Vasco não queria que eu parasse: “nós não temos preconceito com idade”. Na época, o Mauro Galvão também era um veterano. Falei: “então vamos, mas vai ter um limite”. Parei aos 44 anos. Só que comecei em 1975. Parei em 2000. Fiquei 25 jogando como goleira no futebol e no handebol. Peguei a seleção de handebol em 1983 e peguei a seleção de futebol em 1991. Fiquei de 1983 a 1996 disputando pelas duas seleções. Acho que a minha história foi uma história legal. Agradeço muito. Foi uma história de lutas, de dois esportes que na minha época não tinham o brilho que hoje têm. A seleção de handebol agora é campeã Pan-Americana, as meninas têm mais apoio, jogam fora do país. Acho que a minha geração do handebol e a minha geração do futebol – ainda com duas remanescentes na seleção: Formiga e Tânia Maranhão – foram vitoriosas. Abrimos caminhos numa época difícil e participamos dos campeonatos oficiais que a FIFA e o COI fizeram. Conseguíamos o máximo que podíamos. Abrimos caminhos para o pessoal que hoje está aí.

 

Você falou sobre o início esportivo que se casa com a questão da universidade em Maringá. Olhando um pouco para antes disso, como foi construída a sua infância?

Eu sou de uma cidade do interior, Toledo (PR), perto de Maringá. Minha família mora lá. Uma família de italiano, bonachona, muito alegre. Eu tive uma infância na terra. Meus avós tinham pequenas propriedades de terra. Eu cresci com bichos, animais, plantas, frutas, terrenos baldios. Eu era espoleta desde novinha, num colégio de freiras. Eu jogava tênis de mesa, basquete, voleibol, cabo de guerra, queimado. Fazia tudo que tinha pela frente. Adorava. Na minha infância eu brincava com tudo que tinha. Brincava na rua, no colégio. Gostava de correr, eu era bem magra. Levava muita picada de marimbondo. Na minha adolescência, já fazendo o segundo grau, começamos a participar dos jogos abertos do Paraná. Participava do salto em altura no atletismo, arremesso de dardo, tênis de mesa e voleibol. Participei de uns dois ou até quatro Jogos Abertos do Paraná. Fui para a faculdade e comecei a jogar tudo o que tinha por lá. Só natação que não era a minha praia. Então, eu faço esporte desde criança. Eu lembro até hoje que minha prova de ginástica olímpica na faculdade foi uma loucura. Fiz o salto peixe, fiquei na horizontal em relação ao solo, depois dei uma cambalhota. Nem sei como é que fiz isso [risos].

Meg Handebol
Meg durante partida da seleção brasileira feminina de handebol. Foto: Arquivo Pessoal.
Meg Handebol
Meg durante partida da seleção brasileira feminina de handebol. Foto: Arquivo Pessoal.
Meg Handebol
Meg durante partida da seleção brasileira feminina de handebol. Foto: Arquivo Pessoal.

 

Em que momento dessa trajetória você percebe que iria seguir a carreira esportiva?

Eu tinha claro que queria fazer Educação Física. A faculdade mais próxima era a UEM – Universidade Estadual de Maringá. Fui para lá. Uma tia morava lá, já tinha república do pessoal de Toledo. Quando comecei a jogar, passei a viajar para Curitiba, disputava os jogos universitários. Comecei a achar legal aquela disputa, medalhas. Já no primeiro ano de faculdade disputava os jogos universitários. Comecei a me destacar no handebol. Para os jogos universitários brasileiros, saía de Maringá e atravessava o país inteiro de ônibus. Levava cinco dias para chegar a Maceió, Natal. Ficava em colégios, dormia no chão, colchonete. Mas aquilo era um espetáculo. Pensava: “só goleira de handebol”. Então, como você se sente? Primeira coisa: a autoestima. Se você tem o dom, você é convocado: para a universidade, para a seleção do Paraná e vai indo. De repente, as pessoas começam a te elogiar: “poxa, você joga bem no gol”. Isso é bom para sua autoestima, pois você vai querer melhorar. Falavam “Olha, vai ter seleção brasileira em 1983”. Pensava: “Aí, preciso pegar essa seleção brasileira”. Aí você é convocado, ganha o campeonato sul-americano na Argentina. Isso foi em 1983. Em 1988, teve o Mundial. Continuei na seleção de handebol. Disputei Sul-Americano, Pan-Americano, como o de Indianápolis em 1987. Foi bem legal. Tive contato com todos os atletas brasileiros, tinha a seleção brasileira de basquete, com Hortência, Paula, Oscar, ficava todo mundo junto. Aquilo era um sonho. Você começa a viciar naquilo, com autoestima elevada, espera sempre ser convocado, depois é convocado para o futebol. Era convocada para as duas seleções. Pensava assim: “eu não sou a joia, mas dentro do que tem no país e na minha época, eu estou sendo útil, é o que posso fazer”. Enquanto isso já trabalhava, dava aulas no município desde 1986. Você vai ganhando as convocações, a autoestima melhora, você viaja o mundo inteiro, faz novos amigos, conhece pessoas e lugares, culturas diferentes. Quando você volta, a tua cidade te recebe com festa, tua família, seus amigos, seus alunos. Claro que tem as críticas. As críticas existem. Existem as pessoas que gostam de você e as que não gostam de você como atleta. Mas você está ali, batalhou por aquilo, não está pisando na cabeça de ninguém. Isso faz parte. No esporte existe muita crítica. Nós, os atletas, sempre somos criticados: pela imprensa, ou por alguém que não gostou do gol que você levou e acha que você saiu mal. O futebol é muito mais difícil do que o handebol. O handebol é um jogo de vinte ou trinta gols. Se você falha em um, pode fazer outras cinco defesas e tu se recupera. No futebol não. Se você escorregou na grama e fez uma técnica errada, já se ferrou. Depois pode fazer dez defesas ótimas, mas aquele gol alguém sempre vai lembrar. Mas o goleiro de futebol supera isso. Faz parte o erro.


Você falou na questão do dom. O que é isso para você?

O dom de ser atleta. O que tinha lá no interior? Vôlei, atletismo. Minha professora no primeiro e segundo grau era uma professora de Ciências. Não tive professor de Educação Física. Tive meu primeiro professor de Educação Física já no final do segundo grau, um cara que veio de Curitiba. Não esqueço dele. Mas era um dom: eu tinha facilidade de saltar, de correr. Eu não tinha medo de pular, levar bolada. Só detestava jogar no gol do futebol de salão. Até queriam me pegar, mas eu disse “não, não”. Nunca gostei. Quando eu era criança no interior, jogava bola: jogava queimado, jogava futebol. Tinha jogo de mulheres e jogava também com os meninos. Era assim: pulava em árvores, nadava nos rios, jogava bola, queimado, voleibol, jogava tudo. O professor na faculdade que me pôs no gol de handebol. Eu nunca tinha jogado no gol. Ele teve essa visão. Mas eu dominei aquele três por dois. Ali nasceu o dom de ser goleira.

Meg Handebol
Alemanha: preparação para o Mundial de 1989 de Handebol. Brasil treinando contra o time do Bayern Leverkusen. Foto: Arquivo pessoal.


E para o futebol?

Em 1982 comecei a agarrar no Radar. Eu jogava handebol na Suam (onde fiz minha faculdade de Fisioterapia) e no Flamengo. O falecido Eurico Lira era presidente do E. C. Radar, um clube vitorioso no esporte. Esse presidente montou uma super equipe em 1982. Essa equipe tinha a Pelézinha, Fanta, Leda, Pretinha, Roseli, atletas da Bahia, Roseli que veio de São Paulo. Viajávamos pelo mundo. Eu nunca tinha jogado no gol do futebol e fui para a Espanha. Fui para a Espanha na época da Copa do Mundo de Futebol masculino de 1982. Assistimos ao primeiro jogo, Brasil x URSS. Entramos, fomos ao clube, falamos com os atletas da seleção, vimos o jogo que foi 2 x 1. Lembro até hoje. O Waldir Peres era o goleiro da Seleção e o grande Dasayev era goleiro da União Soviética. Até hoje ninguém esquece aquele gol que o Waldir levou. Isso acontece com os goleiros, inclusive os grandes goleiros. Então, nós viajamos. Fomos para a Espanha, Chile, Suriname, Estados Unidos. Só joguei de 1982 a 1985. Aí eu parei, fiquei só no handebol. Já contei a história. Só voltei em 1991. Dois caras foram responsáveis: professor João Marim Mechia, em 1975 na Universidade Estadual do Maringá; e Eurico Lira em 1982, presidente do Radar, que me apresentou ao futebol. Outros grandes e queridos técnicos, de clubes e de seleções, guardo com carinho em meu coração.


Nessa fase de transição, acredito que uma série de angústias pairava sobre sua cabeça. Algumas pessoas foram importantes nessas decisões tomadas? Alguém da família?

A minha família sempre me apoiou. Ela nunca chegou e me falou fica aqui ou vai para lá. Ela sabia que eu tinha um sonho de ir para uma Olimpíada. No handebol eu não conseguiria. No Pan-Americano não conseguíamos o primeiro lugar. Ficávamos em segundo ou terceiro, e só tinha uma vaga para o continente todo. Então, quando falei que iria tentar a Olimpíada de Atlanta, quando já teria 40 anos, percebi que tinha que me manter em forma: magra, treinando. O Vasco me dava essa oportunidade. Eu mantinha minha forma treinando no Vasco. Não tinha muitos campeonatos, então eu treinava mais do que jogava. Treinava até sozinho, corria, para não perder a forma. Se pus na cabeça essa meta de chegar à Olimpíada, eu iria chegar de qualquer jeito. Foi difícil. Dentro do esporte olímpico e do esporte de alto nível (quando você está na seleção brasileira para competir internacionalmente) não é tudo mil maravilhas. Existem as dificuldades de grupos, de equipes, de entrosamento, de compatibilidade de gênios entre a comissão técnica e os atletas. Isso tudo tem que ser adequado e equacionado dentro do grupo. Então, quando você está treinando dentro de uma equipe não é só mil maravilhas. Você tem que se cuidar, treinar, dar conta do recado, por que foi convocado, está ali, e tem que se adequar a todas essas diferenças de vaidades e preferências. Em certos momentos, existem preferências na comissão técnica, entre uma pessoa e outra, por determinadas atletas. Você tem que se manter calmo, dentro do seu foco, para você literalmente não perder sua vaga e te mandarem para casa. Você tem que lutar para chegar, para ficar durante os treinos e para você ir. Você tem que ir. No final, antes de ir, tem aquele último corte. No handebol, enquanto eu joguei, confesso que não sofria com isso. Depois começaram a ter grandes goleiras, mas na minha época não tinha muitas goleiras que se destacassem. Embora existissem boas goleiras, enquanto joguei minha posição era tranquila. Já no futebol existia mais dificuldade. Sempre fui convocada, jogando como titular, fui indo. Mas quando chegou perto dos Jogos de Atlanta eu tive uma certa dificuldade. Eu estava em forma, fui magra para lá, pesando 62 quilos. Fisicamente e tecnicamente eu estava bem. Se houveram falhas na minha carreira no futebol, elas ocorreram na base. Porque eu não tive base. Eu transferi algumas técnicas do handebol e adaptei outras, porque tive que adaptar. Então eu fiz uma composição. Não pude corrigir o que me faltou lá atrás. Pensei: “vou ter que andar com o que tenho agora, com essas ferramentas e vou trabalhar em cima disso”. Junto com meus treinadores, íamos aperfeiçoando algumas falhas. Eu consegui, na minha visão, algumas coisas bem interessantes dentro do futebol. Consegui dominar bem a minha área, minhas saídas eram boas. Não é vaidade. Eu não sabia bater bem na bola no tiro de meta. Eu batia quando tinha que jogar mais fraco. Isso porque eu treinava, treinava tudo. Lá atrás quando tinha tiro de meta quem batia eram as zagueiras. Em várias outras coisas eu acho que me adaptei bem e foi legal. Eu dei o meu máximo.

Meg
Margarete Maria Pioresan atuando pela seleção brasileira feminina. Foto: Arquivo pessoal.

 

Você falou de um momento chato que foi o Campeonato Mundial da Suécia. Se for olhar para a estrutura masculina, existe toda uma organização. Esse cenário no futebol feminino parecia que ia se configurar agora, com campeonatos e diversos clubes, mas houve novamente um retrocesso. Como era essa configuração na época em que você jogava? Como era estruturado esse futebol em termos de clubes?

Em 1982 eu comecei a jogar no campo, mas o Radar de 1980 e 1981 jogou na praia. Já foi aumentando um pouco o gol. Quando começou o campeonato de campo, nós tínhamos um campeonato muito forte no RJ. Tinha o Bangu do Castor de Andrade, o Radar, Portuguesa, Bonsucesso, América etc. Era um campeonato carioca muito forte. O dirigente Eurico Lira foi um dos grandes responsáveis pelo futebol feminino no Brasil. Infelizmente ele veio a falecer anos depois, mas ele foi um visionário, ele provocava, fazia os campeonatos. O pessoal de São Paulo também tinha campeonatos fortes. O Rio Grande do Sul tinha campeonatos fortes. Minas Gerais também. Fazia-se uma Copa do Brasil. Quando nos encontrávamos para disputar essa Copa do Brasil, uma vez por ano, era um campeonato forte. Tinha Atlético Mineiro, Cruzeiro, Grêmio, Internacional, times da Bahia, times de Recife, times do Rio de Janeiro. Era um campeonato forte. Nessa época eles começaram a promover desafios na televisão. Luciano do Valle e o pessoal de São Paulo começaram a produzir desafios. Nos domingos à tarde tínhamos jogos de desafio, assim: time de São Paulo x Radar, e que passava na televisão. Enchia o estádio, pois tinha uma grande promoção por trás. Ninguém jogava fora do Brasil. Entre as primeiras que começaram a sair nessa época, década de 80, tinha a Lúcia Chaleira que foi para a Itália; Michael Jackson, que é de São Paulo, e hoje está no Ministério dos Esportes, jogou uma época na Itália; depois, a Roseli saiu antes dos Jogos de Atlanta; e a Pretinha saiu depois de Atlanta. Depois de Atlanta as jogadoras começaram a sair mais: a Sissi jogou nos Estados Unidos, a Pretinha também jogou lá. Depois, nunca mais parou. Nas na nossa época era aqui mesmo. Os campeonatos estaduais eram fortes e os nacionais também eram bons. A primeira seleção brasileira, de 1988, foi a base do Radar, porque o Radar começou em 1982 e viajou pelo mundo inteiro. O Eurico Lira era um visionário, esperto, muito inteligente. Ele não jogava só com o time do Radar. Quando ele ia para fora, ele pegava as melhores atletas do Bangu; ia para a Bahia, assistia jogos e pegava as melhores atletas; pegava uma ou duas do Rio Grande do Sul e viajava como uma seleção. Óbvio que em 1988 a base foi o Radar. Em 1991, no primeiro Mundial oficial na China, a base foi do Radar também. Em 1995, o Radar já tinha acabado e a base da seleção no Mundial da Suécia tinha atletas remanescentes do Radar, atletas do Vasco da Gama, de São Paulo, da Bahia e do Rio Grande do Sul também. No Mundial da Suécia em 1995 nos classificamos e se manteve a base para Atlanta em 1996. Fui em 1991, em 1995 e nos Jogos de Atlanta.


Para você, o que é o futebol olímpico e o futebol de Copa do Mundo? Percebe semelhanças e diferenças?

O esporte em si é o mesmo. Os mesmos fundamentos, as mesmas regras. Ambos têm a primeira fase de grupos, depois oitavas de final, quartas, semifinal e final. O campeonato mundial é de futebol feminino, você vai jogar futebol feminino, vai ver pessoas que jogam futebol feminino e só. Você fica numa cidade sede e algumas equipes que você nem verá. Fica no hotel praticamente sozinha. Não lembro como era na China, se tinha mais pessoas ou era um daqueles hotéis monstruosos em que não se via ninguém. Olimpíada reúne os melhores atletas do mundo todo e de todas as modalidades olímpicas. Aí está a diferença. Você vai para a Olimpíada não só porque vai ter atletas da sua modalidade. Se você estiver numa Vila Olímpica, tal como ficamos, você poderá ver um campeão olímpico ao teu lado. Vimos muito. Todos vão se alimentar no mesmo lugar. O restaurante fica aberto 24 horas. Então tem comida do mundo inteiro. E tem um trenzinho que passa em frente a todos os prédios. Você pega o bonde e senta ao lado de atletas que acabaram de ganhar medalhas olímpicas. Você via a medalha no peito. Ficava um babando para o outro. Não tem comparação. Você senta numa mesa – e o Brasil ia para o lado da Itália comer massa e frango – e ficava ao lado da seleção campeã olímpica. Batíamos fotos, tudo acontece, é todo mundo igual, todos atletas olímpicos. E a sua autoestima está lá em cima, porque você também chegou ali. “Nossa, aquele ali é supercampeão, ganhou tudo”. Você está ali pela primeira vez, não ganhou o ouro, mas é um atleta olímpico. Para mim foi muito emocionante. Foi a melhor coisa do mundo que me aconteceu até hoje como atleta foi ir para a Olimpíada de Atlanta. Foi a melhor. E aconteceu algumas coisas. Chegamos lá e tínhamos que ficar para representar o país. O falecido José Duarte, que foi nosso técnico, foi uma graça ele ter ido para a Olimpíada. Foi nosso técnico só na fase olímpica. Quem classificou o Brasil para a Olimpíada foi o Dema, que também é um grande técnico, de São Paulo. Depois veio o Zé Duarte. Ele sabia do potencial de cada um e do sonho de cada um. Nós estávamos em Dakota do Sul, ficamos treinando um mês. Algumas foram cortadas lá. É muito triste essa parte. Você vem treinando o ano inteiro e aí tem que cortar um goleiro e mais um dois atletas.

Margarete Maria Pioresan
Margarete Maria Pioresan durante um treinamento. Foto: Arquivo pessoal.


Como isso é gestado pelo grupo?

É muito desgastante. Por isso que eu te falei que você tem que não só adequar sua parte, cuidar da alimentação, dormir, treinar, mas tem esse fantasma do corte. É uma pressão. Você não come direito, embora saiba que tem que comer. Mas quando vai chegando o dia do corte… José Duarte me segurou, que Deus o tenha. Ele sabia do meu sonho, do meu potencial e do que eu tinha a apresentar. Ele sabia que eu tinha que ir. Eu também sabia que eu tinha que ir. E eu fui.


O que você quer dizer quando diz “ele me segurou”?

Por que existe um corte, alguém tem que ser cortado. As preferências não são 100%. Não estou falando em relação ao atleta. O atleta não resolve. Estou falando em termos de direção, de comissão técnica. São preferências. A pessoa que foi cortada na época era excelente, minha amiga, a Maravilha. Mais nova que eu, voltou à seleção depois, foi a Mundial, teve uma carreira. Aquela era a minha última. Está entendendo? Você tem que brigar pelo seu sonho, mas naquela hora me bateu um nervoso, uma insegurança, pois não bastava só eu brigar. Mas teve uma pessoa que falou mais alto, me chamou e falou: “você vai”. Foi o técnico. Aí eu dormi tranquila. Mas até então eu não sabia se iria.

Configura a segunda parte da entrevista em 28/03/12.

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