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Raquel Rolnik (parte 2)

Equipe Ludopédio 29 de fevereiro de 2012

Urbanista e Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Raquel Rolnik tem se dedicado aos estudos sobre as questões citadinas e políticas urbanas. Atua também como relatora internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas). Os dados e informações coletados podem ser consultados em seu blog: http://raquelrolnik.wordpress.com/.

Nessa entrevista, a urbanista Raquel Rolnik fala sobre as irregularidades nos processos de remoção a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, aborda as políticas habitacionais brasileiras e traça comparações com as experiências de megaeventos em outros países.

Raquel Rolnik é relatora internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Foto: Equipe Ludopédio.

Segunda parte


Nessa discussão sobre os megaeventos revela-se uma outra dicotomia: país de centro e periferia. O Brasil pode quebrar isso?

O Brasil está ocupando uma posição na política externa muito forte para se tornar player formal, tentando furar a ideia de que os países hegemônicos estão apenas na América do Norte, Europa e Japão. A ideia de sediar um evento faz parte desta estratégia global de se afirmar. Para te responder esta pergunta, eu preciso explicar a minha fala no Conselho dos direitos humanos. A tensão entre países desenvolvidos e não desenvolvidos é muito forte na ONU. E os países do Sul reagem contra uma exploração histórica, e se entende o porquê disso. Tem um enredo que se insere nisso. Por outro lado, os países colonialistas, imperialistas, opressores, que estão em decadência, possuem uma sociedade civil organizada, instituições fortes dentro da sua democracia, e que em algum momento de sua história fizeram um pacto sócio-territorial com seus pobres e seus trabalhadores no sentido da sua inclusão plena como cidadãos e construíram um estado de bem estar social – é verdade que isso agora está em xeque. Portanto, nós temos uma situação muito diferente entre os países que não são desenvolvidos. Não é só ter dinheiro, um alto PIB. Há também uma dimensão civilizatória de construção política democrática de inclusão que nós não fizemos. Numa situação como essa, a vulnerabilidade que temos diante de negócios escusos é maior. Eles vão acontecer? Eu não sei, mas a vulnerabilidade é maior. Nós não completamos o nosso pacto civilizatório e sócio-territorial com a nossa população brasileira. Ainda carregamos um grilhão bem pesado, de racismo, opressão, concentração de renda e poder, privatização do Estado, muita coisa ali que torna difícil a negociação do país em organismos internacionais.


Está se pensando num modelo urbanístico no Rio de Janeiro?

No Rio não se trata de uma intervenção pontual, mas de um projeto de cidade que se configura a partir dos megaeventos, mas não é um projeto global de cidade que foi elaborado e discutido de forma participativa através dos planos diretores. Em Salvador, por exemplo, se aprovou um plano diretor de desenvolvimento urbano e agora está sendo apresentado o PDDU da Copa, mas esse é um outro plano, que não foi discutido na esfera pública tal como o anterior e está sendo justificado pela necessidade de fazer tudo rápido “senão não haverá Copa e iremos aparecer mal junto à FIFA e não seremos um bom jogador”.

Mas a situação no Rio de Janeiro não tem sido muito diferente do que é o mainstream da política urbana brasileira. No Rio se abriu uma frente de expansão da cidade de classe média em direção à Barra e Jacarepaguá. O único elemento diferente é o projeto de reabilitação do porto, que me parece não ser um projeto urbano para enfrentar os problemas de moradia, e sim mais um estande de vendas que vai atrair investimentos do capital financeiro internacional e que, no final, produzirá pouca cidade para poucos.


No caso de Barcelona, houve diálogo com a população?

Muito mais. Barcelona vinha de um processo longo de discussão pública. Quando se conta o enredo da Barcelona Olímpica não se conta o que veio antes. Foram quase 20 anos de investimento nas periferias, atingindo um grau básico de urbanização para todos. Houve a transformação do eixo principal, uma construção democrática no planejamento que precedeu o Projeto Olímpico – com investimento estrangeiro etc. Agora você exporta o modelo, exclui esta parte – urbanizar a periferia inteira, aumentar e construir espaços de discussão pública e cidadã – e fica só com o resto, os grandes investimentos.


A Copa pode trazer um legado de união na sociedade civil, como a organização de comitês populares, movimentos do sem teto?

A discussão do legado deveria ser a discussão central sobre o evento no país. Qual o legado? Alguém perguntou para a população? São os equipamentos esportivos? São as infraestruturas que estão sendo construídas para a Copa? Ou existe um legado de melhoria socioambiental, de proteção dos direitos humanos? Hoje, infelizmente, o que está acontecendo são articulações de resistência para que, minimamente, as comunidades atingidas diretamente consigam ter apoio de outros grupos para ter voz neste processo e evitar genocídio. Por outro lado, dependendo de como forem se desdobrando estas articulações e se formando os comitês populares, isso também pode significar um legado novo para a reorganização dos movimentos sociais. Também há uma leitura que precisamos fazer que é: estes movimentos sociais, nos anos 1970 e 1980, tiveram uma agenda, uma pauta e chegaram até um certo ponto. Hoje temos um novo país, uma nova situação, e entendo que há uma certa crise dos movimentos sociais tradicionais. Enfim, a Copa pode ser, sim, uma plataforma de debate entre os novos e os antigos movimentos.

Raquel Rolnik é urbanista e Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Foto: Equipe Ludopédio.


Parafraseando o presidente Lula, “nunca antes na história do país…” se falou tanto na relação entre esporte e política. Este pode ser um novo legado?

Eu nunca havia trabalhado neste campo – o esporte – e sempre que entro, sou muito criticada. Tenho a impressão de que esporte e política estão juntos há muito tempo. Alguns indicadores revelam isso, como a presença muito forte das federações esportivas, das confederações, dos clubes etc. Quando há um evento maior, de grande magnitude, tudo isso fica muito maior também. Vamos viver um momento de visibilidade máxima, ainda mais num esporte que, em nosso país, já é o máximo, capaz de mobilizar corações e mentes. O efeito disso ainda não sei. No campo esportivo, nós temos vozes absolutamente entreguistas e ligadas aos esquemas dos negócios, mas ao mesmo tempo, temos alguém como o Romário, que, vindo do futebol, questiona do jeito que vem fazendo. Espero que mais gente vinda do esporte possa levantar a voz. Inclusive com relação às Olimpíadas, quando comecei a trabalhar essa questão dos megaeventos, passei a receber muitos comunicados de esportistas dizendo “olha, tá essa farra toda de grana, mas pra gente treinar não tem um tostão”. Mas nunca me aprofundei nisso porque não é a minha área. O meu campo é o direito à moradia e, inclusive, é este o meu mandato como relatora da ONU.


A saída do Orlando Silva muda alguma coisa?

Eu já me fiz essa pergunta várias vezes e fiz também essa pergunta a pessoas que estão mais por dentro dos bastidores da política brasileira hoje. Embora eu tenha participado do Ministério das Cidades, na primeira gestão do Lula, e ter, historicamente, uma trajetória de trabalho com o PT, eu estou muito distante das coisas que acontecem em Brasília. Portanto, sinceramente, eu não sei. Isso é uma grande dúvida. O quanto a própria queda do Orlando teve a ver com as guerras intestinais em torno da questão da Copa? Pelo que eu acompanhei, houve uma disputa no Ministério dos Esportes que queria controlar todo o processo de preparação da Copa e das Olimpíadas. De um lado, a autoridade olímpica atuando no Ministério e, de outro lado, os próprios comitês organizadores das cidades. Essa tensão existiu. A ideia do comitê olímpico inicial era bem mais poderosa do que acabou ficando – inclusive acredito que foi por essa razão que o Henrique Meirelles acabou não aceitando essa posição enfraquecia. Colocar o Márcio Fortes como autoridade olímpica, que é um cara do Rio de Janeiro, e que faz a política do Rio, fez parte desta equação. Mas, e a queda do Orlando com isso? Não consigo entender a relação. E também não sei até que ponto a gestão do Aldo Rebello representará uma ruptura, na medida em que o ministério acabou ficando na mão do mesmo partido, por mais que dentro do partido haja fortes disputas, existem continuidade e postos-chave. Para mim, isso cheirou a uma grande luta intestinal.


O que ainda dá tempo de fazer?

Onde estão os projetos? O que temos é só um monte de desenho feito no joelho, perspectivas artísticas das obras de intervenção. Acho que há tempo de construir um protocolo público, em debate com a sociedade civil, sobre o legado e alguns compromissos básicos de respeito aos direitos humanos e à moradia adequada como condição básica. Porto Alegre, por exemplo, começou de um jeito e, em função da organização popular e dos comitês, a situação já melhorou. Ainda tem muita coisa pra mudar, mas a gente percebe que, com essa pressão e com o acompanhamento da imprensa e dos meios de comunicação, mostrando as coisas que estão acontecendo, é possível levar a transformações de atitude. Eu acredito nelas e temos que empurrar e fazer com que essas coisas sejam mais tensionadas numa outra direção.

Orientações sobre as remoções – FOLHETO


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