169.3

A atleta sem disfarces

José Paulo Florenzano 3 de julho de 2023

A despedida de Pelé da Seleção Brasileira, em julho de 1971, trouxe vários correspondentes estrangeiros para o país com o objetivo de realizar a cobertura do evento histórico. Ignácio Mateus veio do México a serviço da empresa de jornais e revistas Cadena García Valseca. Uma vez no Brasil, o jornalista mexicano, manteve contato  com João Saldanha. Os dois discutiram várias questões relacionadas ao futebol, incluindo a realização de um torneio incomum. De fato, o segundo “Mundial Feminino” havia sido organizado no México por iniciativa de uma articulação de forças que incluía a luta política das mulheres e o cálculo econômico de empresários, sem a participação da FIFA, obtendo êxito surpreendente.[1] Intrigado com a difusão da prática do futebol entre as mulheres, João Saldanha quis saber do colega mexicano o que ele pensava a respeito. A resposta viria a ser registrada em sua coluna no jornal O Globo:

“É algo parecido com um ‘show’. Nos intervalos dos jogos há palhaços, mágicos e saltimbancos. O jogo é uma coisa que não tem a graça feminina nem o vigor e a agilidade dos homens. Um esporte híbrido”, e acrescentou, “o público é um público de circo”.[2]

 A definição do futebol feminino como uma prática que despojava o jogo tanto da virilidade associada aos homens quanto da graciosidade atribuída às mulheres, transformar-se-ia em um dogma para o jornalista brasileiro. Dez anos depois de ouvi-la do colega mexicano, João Saldanha a reproduziria em uma matéria da revista Placar. Como nos mostra a historiadora Giovana Capucim e Silva, indagado se era a favor ou contra a “liberação” de uma prática que, àquela altura, embora não estivesse mais proibida, ainda não se achava regulamentada, o combativo jornalista foi taxativo:

Sou contra, porque acaba se transformando em um esporte híbrido: não tem nem a graça feminina, nem a virilidade que caracteriza o futebol.[3]     

Nesse meio tempo João Saldanha ainda utilizaria outros argumentos para expressar o quanto lhe parecia inapropriado o futebol das mulheres. Ao ser questionado se não estava sendo machista, ele recorreria à ciência para justificar-se: “A culpa não é do machismo. É da biologia”.[4] João Saldanha, porém, não estava sozinho em sua visão de jogo. No início dos anos setenta, ele a compartilhava com outro expoente do jornalismo esportivo, o qual, em termos ainda mais veementes, posicionava-se contra uma prática que, enfatizava, disseminava-se como uma “praga”.[5] De passagem pela Cidade do México, Armando Nogueira tomara conhecimento da realização da “Copa do Mundo de Futebol de Moças”. Ele solicitava “ardorosamente” ao Jornal do Brasil, onde mantinha uma prestigiada coluna, ser excluído da cobertura do evento. Mas, assim como João Saldanha, ele se preocupava em evitar mal-entendidos, afirmando de pronto que nada tinha contra a participação das mulheres no esporte, por exemplo, no atletismo ou na ginástica:

Mas o futebol não me parece sob medida para a morfologia feminina: o gesto de chutar uma bola não casa muito bem com a estrutura física e psicológica da mulher nascida para exprimir-se pelas mãos (doação) e não pelos pés, violência.[6]

João Saldanha
João Saldanha, o arquiteto do tri. Foto: Reprodução.

Da ciência à estética, Armando Nogueira e João Saldanha mobilizavam todos os recursos retóricos à disposição para desqualificar uma prática cujas potencialidades haviam sido desveladas de forma inesperada nos mundiais de 1970 e 1971, organizados respectivamente na Itália e no México. O diagnóstico de exclusão proferido pelos olhares clínicos dos dois jornalistas, por sua vez, refletia uma crença disseminada no quadro simbólico da dominação masculina. Na seção de cartas do Jornal dos Sports, por exemplo, uma missivista admoestava os jogadores do Botafogo que reclamavam das defesas adversárias, evocando uma máxima com a qual tanto Armando Nogueira quanto João Saldanha mostravam-se de pleno acordo: “Futebol é pra homem, ouviu?”[7]

Incontáveis mulheres, no entanto, permaneciam saudavelmente indiferentes à verdade que os formadores de opinião faziam circular pelo universo do futebol, produzindo os efeitos que a carta da torcedora do Botafogo deixava entrever. Como desvela-nos a historiadora Aira Fernandes Bonfim,  nas primeiras décadas do século passado as mulheres já reivindicavam acesso aos campo de futebol, atuando nos mais diversos espaços: dos festivais esportivos aos torneios suburbanos.[8] Elas ocupavam todas as frestas para se apropriar da prática lúdica, colocando em questão o discurso performativo condensado pelo enunciado “futebol é pra homem”.[9] 

De fato, ao longo da década de setenta, quando o futebol feminino enfrentava a proibição determinada pelo Decreto Lei 3.199, de 14 de abril de 1941, a prática foi ganhando terreno e conquistando adeptas na Baixada Fluminense. Ali, várias atletas sobressaíam e chamavam a atenção do público que acompanhava e participava do futebol popular. De acordo com a matéria de O Globo, o Nova Cidade Futebol Clube, de Nilópolis, contava com uma jogadora excepcional, chamada Maria Rita de Cássia dos Santos, uma jovem afro-brasileira de 16 anos que driblava como Garrincha e marcava “goal” como Pelé.[10] Desde pequena ela detestava brincar de boneca. “Nasceu para jogar bola”, explicava Marta dos Santo, sua mãe:

Quando era menor, metia-se com os moleques e até quando havia briga resolvia a parada.[11] 

Enquanto aguardava, em vão, uma “licença” do Conselho Nacional de Desportos para a prática do futebol, a jogadora do Nova Cidade continuava atuando no circuito da Baixada Fluminense, enfrentando as equipes adversárias que também possuíam atletas de destaque, casos de Sandra Samarone e Maria Fio, ambas do Esporte Clube Volantes, de Nova Iguaçu. A primeira era uma “lourinha” que, certa feita, jogou “disfarçada de homem” em um campeonato oficial organizado pela Federação Carioca de Futebol. A segunda era “tão boa” quanto o “crioulo doido” do Flamengo, de acordo com o dirigente da equipe, que assegurava à reportagem de O Globo: “Elas jogam como homens”.

Não sabemos se Maria Rita, a atleta “mais cobiçada” pelos clubes da Baixada Fluminense, atuava camuflada de homem para driblar a proibição da lei -, como ilustra o caso de Sandra Samarone; se possuía porventura um codinome masculino para obter reconhecimento no universo do jogo -, como exemplifica o caso de Maria Fio; ou, ainda, se performava de acordo com a norma da virilidade, mas sem, contudo, perder o atributo da graciosidade -, conforme as exigências formuladas por Armando Nogueira e João Saldanha.[12] Sabemos apenas que ela sonhava em jogar pelo Vasco, o clube do coração, em uma partida no Maracanã, palco no qual nunca havia estado, e, certamente, sem camuflagens ou disfarces.  


Notas

[1] Sobre os dois mundiais femininos realizados na passagem dos anos sessenta para os anos setenta, ver Silva, Giovana Capucim e. “Mulheres impedidas: a proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo”, Rio de Janeiro, Editora Multifoco, 2017.

[2] “2 toques”, João Saldanha, O Globo,  17 de julho de 1971.

[3] “As mulheres atacam”, Hideki Takizawa, revista Placar, nº 592, 18 de setembro de 1981. Sobre esta questão, ver também o livro de Giovana Capucim e Silva, op. cit.

[4] Giovana Capucim e Silva, op. cit., pág. 116. Trata-se do artigo: “Futebol é coisa pra mulher”, João Saldanha, revista Placar, nº 503, 14 de dezembro de 1979.

[5] “Vocês, naturalmente, sabem que o futebol de mulher é uma praga (ou uma benção?) que começa a florescer nos campos europeus…” Coluna: “Na Grande Área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil,  21 de março de 1971.

[6] Coluna: “Na Grande Área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil,  21 de março de 1971.

[7] “Pra Homem”, Seção “Bata Bola”, Lúcia Alves Zanata, Jornal dos Sports, 16 de maio de 1971.

[8] Bonfim, Aira Fernandes. “Football feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941)”. Dissertação de Mestrado em História, Política e Bens Culturais, Fundação Getúlio Vargas, 2019.

[9] Pinto, Maurício Rodrigues. “Pelo direito de torcer: das torcidas gays aos movimentos de torcedores contrários ao machismo e à homofobia no futebol”. Dissertação de Mestrado, Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, 2017. Cf. Butler, Judith. “Discurso de ódio: uma política do performativo”, São Paulo, Editora Unesp, 2021.

[10] “Aos 16 anos Rita é a revelação do futebol da Baixada”, O Globo, 23 de outubro de 1971.

[11] “Aos 16 anos Rita é a revelação do futebol da Baixada”, O Globo, 23 de outubro de 1971.

[12] O caso da nomeação aplicava-se também à Sandra, uma vez que “Samarone” era um codinome que remetia a outro jogador do Flamengo. O “crioulo doido”, por sua vez, era uma referência ao atacante do Flamengo, Fio Maravilha. Sobre as conotações raciais da expressão, ver Florenzano, José Paulo. “Crioulo Doido”, Ludopédio, 11 de julho de 2019

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A atleta sem disfarces. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 3, 2023.
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