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“Resistir”, o verbo de São Januário

No dia 21 de setembro de 2023, o Club de Regatas Vasco da Gama entrou em campo contra o Coritiba Foot Ball Club, em partida válida pela 24ª rodada do Campeonato Brasileiro. O jogo marcava um confronto direto na luta contra o rebaixamento, pois, na ocasião, o Coritiba era o lanterna do campeonato, com 14 pontos conquistados e o Vasco ocupava a 18ª posição, somando 21 pontos. O clube de São Januário não deu chances ao adversário, goleou o Coritiba por 5×1. Vitória importantíssima, uma vez que ajudou o Vasco a garantir sua permanência na elite do futebol brasileiro, com 45 pontos conquistados ao final da competição, deixando para trás o Santos Futebol Clube, que terminou o campeonato com 43 pontos e ficou com a última vaga do Z4.

Mas, há outro ingrediente que envolve essa partida e que interessa mais para os fins deste texto. A peleja entre Vasco e Coritiba marcou também a volta da torcida vascaína à sua casa. Para entender esse imbróglio, é preciso voltar ao dia 22 de junho de 2023, quando o Vasco foi derrotado em casa pelo Goiás. No fim da partida, válida pela Copa do Brasil, os torcedores do Vasco brigaram entre si dentro e fora da cancha vascaína. Como forma de punição, o estádio de São Januário foi interditado pela Justiça em 23 de junho de 2023. Inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva puniu o clube com o fechamento de São Januário por trinta dias. No entanto, o Ministério Público do Rio de Janeiro pediu a interdição do campo vascaíno, dessa vez, sem prazo para reabertura. Isso aconteceu após o Ministério Público receber o relatório do juiz Marcello Rubioli, que estava de plantão no local no dia do jogo. O texto possui trechos que causaram polêmica, sobretudo em relação ao entorno do estádio. 

Em nota oficial, o Vasco da Gama considerou que a “proibição, embasada em alegações eivadas de preconceitos, que apontam para a localização em área popular, a violência e as dificuldades de acesso como justificativas, é seletiva e discriminatória” (VASCO DA GAMA, 2023). Além disso, o texto faz referência à “Resposta Histórica”, afirmando que “vê nessa interdição um eco daqueles tempos sombrios” (VASCO DA GAMA, 2023). O “Manifesto pela Justiça e Dignidade” diz ainda que o Vasco entraria de “peito aberto nesta luta”, pois faz parte do DNA vascaíno “enfrentar, e não fugir dos desafios” (VASCO DA GAMA, 2023).[1]

Estádio de São Januário
Estádio de São Januário. Foto: Bernardo1989/Wikipédia.

Além disso, é preciso frisar que o comércio local, de acordo com dados da prefeitura do Rio de Janeiro, perdia cerca de 60% da renda com a interdição de São Januário, afetando cerca de 18 mil moradores[2]. Os estádios em metrópoles como o Rio de Janeiro configuram-se como as maiores construções de uma cidade. É visível, nesse sentido, o impacto gerado pelo funcionamento pleno ou não desses espaços. Lembro também que o Estádio de São Januário está localizado no bairro Vasco da Gama, uma subdivisão de São Cristóvão, na zona norte. Um bairro que, apesar dos vestígios de seu passado imperial, pouco a pouco, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, perdeu prestígio. São Cristóvão, portanto, passou a ser ocupado especialmente pela população empobrecida, de baixa qualificação, escravos libertos e imigrantes pobres (FERREIRA, 2004, p. 65-66). 

Mais do que isso, em uma cidade de tantas desigualdades sociais, como é o Rio de Janeiro, pertencer a determinada área não marca apenas uma divisão geográfica, uma vez que nela, estão embutidos significados que qualificam ou desqualificam, os espaços (CARDOSO, 2010). Nesse sentido, há todo um imaginário construído, acerca do que se entende por centro, zona norte e zona sul, por exemplo. Essas concepções também se manifestam de maneira vívida quando se trata dos morros urbanos. No caso de São Januário, a Barreira do Vasco desempenha um papel central. A Colina, que deu origem à Barreira, pode ser considerada como evidência da popularidade do clube. Simultaneamente, suscita um sentimento de marginalidade aos olhos de observadores preconceituosos, visto que, no contexto carioca, o imaginário coletivo acerca dos morros sugere a presença de “barreiras hostis”, “à espreita”, “circundando a cidade”.[3]

De volta ao dia 21 de setembro, noventa dias depois, a torcida do Vasco retornava às arquibancadas de São Januário. Em celebração, o clube preparou o mosaico “resistiremos”. A imagem estampava um torcedor com o uniforme em alusão aos Camisas Negras. Esse termo remonta ao time campeão estadual de 1923, que abalou o modelo amador de organização do futebol no Rio de Janeiro, com um time formado majoritariamente por negros, pobres, analfabetos e trabalhadores. Entendo, dessa forma, que tanto o mosaico e o estádio São Januário podem ser enquadrados naquilo que venho chamando de “narrativa da resistência vascaína”[4]

É nesse sentido que em 1898 em diante (2021), São Januário é descrito como “uma nova resposta histórica, esta feira de aço, concreto e azulejo português” (ALMIRANTE, 2021, p. 86). Novamente, a alusão recai sobre o time de 1923, isso porque a “resposta histórica” refere-se ao documento que oficializou a permanência do Vasco na Liga Metropolitana. Explico, a conquista do campeonato de 1923 pelo Vasco, conforme destacado por Mario Filho (2010), abriu as portas para o profissionalismo no futebol brasileiro. Uma porta que, uma vez aberta, não poderia mais ser fechada e, como consequência, proporcionou espaço para a inclusão de negros e pobres nos grandes clubes.

Vista aérea do Estádio São Januário
Vista aérea do Estádio São Januário. Fonte: Wikipédia

Esse processo, contudo, não se deu sem conflitos, se Botafogo, Flamengo e Fluminense não conseguiram frear o time vascaíno em campo, era preciso tomar uma atitude fora dele. É importante lembrar, que na década de 1920, o futebol ainda era praticado de forma amadora, pelo menos era o que se dizia institucionalmente. Mais do que isso, o futebol era tido como um espaço de distinção e, por isso, sua prática deveria estar restrita à elite carioca. Consequentemente, os jogadores vascaínos de 1923 estavam fora do padrão exigido pela Liga Metropolitana de Desportes Terrestres, entidade responsável pela organização do futebol carioca à época. Portanto, com a ascensão vascaína entraram em choque duas formas de jogar, de torcer e sobretudo de organizar o esporte. 

Receosos dos efeitos dos novos tempos, os grandes clubes procuraram retomar o poder ainda dentro da Liga Metropolitana. As reformas propostas, diziam, especialmente, sobre a tentativa de monopolizar o poder entre os considerados grandes. Sem sucesso, decidiram afastar-se da Liga para fundar uma nova instituição que defendesse seus valores[5]. Assim, em 1924 nasce a AMEA, Associação Metropolitana de Esportes Athleticos. Uma liga “anti-Vasco”, nas palavras de Santos (2010), isso porque a instituição apertou o cerco na investigação sobre as origens dos atletas e exigia de seus filiados praças esportivas a altura das competições por ela organizadas. 

Essas exigências afetam diretamente o campeão de 1923, uma vez que, seu time era formado por jogadores profissionais, negros, pobres e em sua maioria analfabetos e além disso, o Vasco não possuía campo próprio. Diante desse cenário, o Vasco da Gama resolveu permanecer na Liga Metropolitana. E o documento que oficializou o episódio, anos mais tarde, não por coincidência, foi batizado de “resposta histórica”. E além disso, construiu São Januário, por isso: “uma nova resposta histórica” (ALMIRANTE, 2021, p. 86).

Mais do que isso, entretanto, entendo que todos esses episódios, como a memória sobre o time de 1923, a construção de São Januário, o retorno dos torcedores a sua casa, fazem parte de “trabalhos de enquadramento” como definiu Pollak (1989). A identidade clubística vascaína (DAMO, 2014), sobretudo nos últimos anos é marcada exatamente pelo verbo “resistir”. É como se desde a sua fundação o clube estivesse predestinado a travar batalhas “contra tudo e contra todos”. Mas, não esqueçamos que isso é memória. Isso não significa invalidar a representação vascaína, mas sim entendê-la como uma versão da realidade. O passado só aparece na medida em que é “organizado por procedimentos da narrativa, e, através deles, por uma ideologia que evidencie um continuum significativo e interpretável do tempo” (SARLO, 2007, p. 12). Mas isso é assunto pra outro texto.

Referências

ALMIRANTE, João. Vasco responde ao elitismo e se torna História. In: GARONE, André et al1898 em diante. Corner, 2021.

CARDOSO, Elizabeth Dezouzart. Estrutura Urbana e Representações: A invenção da Zona Sul e a construção de um novo processo de segregação espacial no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. GeoTextos, Bahia, v. 6, n. 1, 2010.

DAMO, Arlei. O espetáculo das identidades e alteridades – As lutas pelo reconhecimento no espectro do clubismo brasileiro. In: CAMPOS, Flávio de; ALFONSI, Daniela. Futebol objeto das Ciências Humanas. São Paulo: Leya, 2014.

FERREIRA, Fernando da Costa. O bairro Vasco da Gama: um novo bairro, uma nova identidade? Dissertação de Mestrado em Geografia. Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ: 2004.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. 

RODRIGUES, Mario Filho. O negro no futebol brasileiro. 5° ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2010.

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e a inserção socioeconômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). São Paulo. 2010. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São. Paulo: Companhia das Letras, 2007.


[1] CLUB DE REGATAS VASCO DA GAMA. E JAMAIS ESQUEÇARio de Janeiro, 22 set. 2023. Instagram: @vascodagama. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CjG7w0LMp_5/?img_index=1. Acesso em 10 nov. 2023.

[2] EDUARDO, Pierre. Interdição de São Januário fez cair 60% da receita do comércio da Barreira do Vasco, diz prefeitura. G1, 31 ago. 2023

[3] Ver: FERREIRA, Fernando da Costa. O bairro Vasco da Gama: um novo bairro, uma nova identidade? Dissertação de Mestrado em Geografia. Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ: 2004.

[4] Desenvolvo esse argumento na minha dissertação de mestrado que será publicada em breve.

[5] Esse processo está detalhado na tese: SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e a inserção socioeconômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). São Paulo. 2010. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

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Letícia Marcolan

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas. Participa do FULIA/UFMG e do Memória FC.

Como citar

MARCOLAN, Letícia. “Resistir”, o verbo de São Januário. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 13, 2024.
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