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Clube Náutico Capibaribe e Arena de Pernambuco, uma relação marcada pela falta de pertencimento da torcida alvirrubra

Aureliano Soares Guedes 13 de maio de 2024

Entre os elementos mais característicos de um clube de futebol temos sua camisa, suas cores, seu escudo e seu estádio. Vários estádios pelo mundo são tratados como verdadeiros templos pelos seus frequentadores e pelos torcedores que acompanham o futebol e ao mesmo tempo são intrinsecamente associados aos clubes a eles associados.

Os torcedores de futebol constroem ao longo do tempo uma relação de pertencimento com o estádio associado ao seu clube, essa construção se dar com a familiarização com as ruas percorridas nos dias de jogos, os bares utilizados como ponto de encontro dos torcedores antes e após os jogos, os lugares das arquibancadas onde os jogos eram assistidos com parentes e amigos, os cheiros das comidas características de cada equipamento esportivo.

Fatos que também caracterizam a relação dos torcedores do Clube Náutico Capibaribe com o estádio Eládio de Barros Carvalho, conhecido como estádio dos Aflitos. Onde uma intensa relação de pertencimento foi construída pelos torcedores ao longo de quase cem anos, fato que tornou traumática para muitos a troca da antiga casa por uma moderna arena multiuso, fato ocorrido em 2013.

 A partir da escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo em 2014, foi iniciada uma corrida para realizar as obras de infraestrutura do país e dentro desse plano de obras estava a qualificação dos estádios que seriam utilizados no evento.

Em Pernambuco para criar as condições políticas que justificassem a construção da Arena de Pernambuco e para sensibilizar os representantes da Federação Internacional de Futebol (FIFA), o comitê local lançou um projeto ambicioso, não apenas da construção de um novo estádio, mas de todo um bairro (A Cidade da Copa), além de uma série de obras de infraestrutura e de transporte que ficariam como legado para a população de Recife.

Mas seria preciso também convencer os 3 principais clubes de Pernambuco a mandarem seus jogos no novo equipamento em detrimento de seus estádios e as justificativas de convencimento estavam associadas ao conforto e a segurança, além de compensações financeiras atreladas ao programa governamental “Todos Com a Nota”[1].

No caso do Clube Náutico Capibaribe o contrato previa a transferência de todos os jogos do clube do antigo estádio dos Aflitos para a Arena Pernambuco pelo período de 33 anos e isso foi viabilizado por meio da união política entre as principais lideranças do clube e os representantes políticos do governo estadual.

O estádio dos Aflitos mesmo apresentando enormes e variados problemas, típicos dos antigos estádios brasileiros, era onde a torcida do Náutico se sentia em casa, onde existia o sentimento de pertencimento. Seria possível construir essa relação com o novo estádio?

Mandar seus jogos num estádio de Copa do Mundo, com um grande aporte financeiro, mais a ampliação da estrutura do Centro de Treinamento tudo isso junto com os ventos de otimismo que varriam o país, na época, ajudavam a criar a sensação de que o Náutico finalmente daria o seu “pulo do gato”. Foi um momento de grande euforia por parte da torcida alvirrubra, que acreditava na mudança de patamar do clube no futebol brasileiro.

No entanto, essa euforia de otimismo começou a se desfazer logo após os primeiros jogos, quando se evidencia que a relação entre o Náutico e sua torcida com o consórcio administrativo da Arena não seria das mais fáceis, em virtude do clube se encontrar preso ao contrato assinado e isso o deixou com pouco poder de negociação para modificar as situações desagradáveis que foram acontecendo ao longo dos 5 anos de vigência do contrato.

Em resumo, o contrato assinado entre o Náutico e o consórcio determinava que o clube mandasse todos os seus jogos, durante o período de 30 anos na Arena, e em troca o receberia:

  • Um aporte inicial de 1,5 milhão de Reais na assinatura do contrato.
  • 5 milhões para obras no Centro de Treinamento, inclusive com a construção de um hotel na área do próprio CT, que se localiza no bairro da Macaxeira.
  • Plantio de um dos campos do Centro de Treinamento com a mesma grama do campo de jogo da Arena Pernambuco.
  • Uma mesada de R$ 500 mil caso o clube estivesse na Série A ou de R$ 350 mil caso o clube estivesse na série B, durante todo o tempo de duração do contrato.
  • O clube não teria despesas ao mandar seus jogos na Arena Pernambuco.

O primeiro jogo da Arena de Pernambuco seria um ensaio do Comitê Organizador Local (COL) para a Copa das Confederações, o jogo Náutico 1 x 1 Sporting-PORT, foi usado para testar a estrutura de mobilidade, segurança e serviços que seriam empregadas na Copa das Confederações de 2013 e na Copa do Mundo de 2014.  

As ações de mobilidade em sua maior parte foram aprovadas pelos torcedores, apesar dos problemas enfrentados pelos torcedores para acessarem os ônibus ao final da partida.

Sobre a segurança, as estações estavam muito policiadas, coisa que não acontece no dia a dia e não foram noticiados pela imprensa problemas em relação ao evento.

Dentro da Arena, a impressão que ficou para os torcedores foi de um estádio bonito, corredores amplos, escadas rolantes, banheiros amplos e limpos e grandes áreas de circulação. Mas as reclamações foram em relação aos 41 quiosques de alimentação, as longas filas, a falta de variedade de alimentos e aos preços exorbitantes dos produtos.

As pessoas também tiveram problemas com sinal de rede de telefonia móvel e de internet, mas de maneira geral as avaliações foram positivas e os problemas foram vistos como parte da inauguração e existia a esperança de que os erros fossem assimilados e os problemas resolvidos, algo que não aconteceu.

Após esse jogo de teste a Arena Pernambuco foi entregue à FIFA para os preparativos finais da Copa das Confederações e com a finalização do evento os jogos do Náutico passaram a ser realizados no novo estádio e em 06 de julho de 2013, quando ocorreu seu primeiro jogo oficial.

Nesse primeiro jogo já começaram a aparecer os primeiros problemas que irão ajudar a deteriorar a relação Náutico x Arena, problemas de mobilidade começaram a mostrar que houve um erro estrutural ao não colocar uma estação de metrô vizinha ao estádio, torcedores voltaram sem assistir ao jogo por não conseguirem comprar ingressos, devido ao sistema de impressão que não funcionava a contento e a torcida começou a perceber também que pela grandiosidade do estádio, não teríamos mais a ideia de “caldeirão” do antigo estádio dos Aflitos, que pelo tamanho, proximidade da torcida e gramado, tornava os Aflitos um dos estádios mais temidos do Brasil.

Mesmo assim, os primeiros 4 jogos do Náutico como mandante na Arena Pernambuco apresentaram bons públicos:

  1. Náutico x Ponte Preta – Público: 20.413;
  2. Náutico x Internacional – Público: 19.488;
  3. Náutico x Atlético-MG – Público: 19.997;
  4. Náutico x Fluminense – Público: 16.583.

Esses números apresentavam uma média de público de 19.120 contra uma média histórica de cerca de 8.000 torcedores nos jogos realizados no estádio dos Aflitos, fato que gerou uma boa perspectiva inicial.

No entanto, aqueles primeiros jogos foram ilusórios, além da campanha ruim na série A de 2013, os problemas com mobilidade, preços de estacionamento e de produtos, falta do sentimento de estar em casa e a reclamação dos sócios, por não terem um espaço reservado, começou a se ampliar. Isso se intensificou após o jogo Náutico 2 x 0 Sport ocorrido em 28 de agosto de 2013, válido pela Copa Sul-Americana, onde houve várias brigas entre torcedores dos 2 times na chamada área VIP, espaço criado pela Arena para torcida mista.

Em outubro de 2013, o Sport assinou com o consórcio e realizou 2 jogos na Arena, os jogos foram Sport x Libertad do Paraguai pela Copa Sul-americana em 23 de outubro e Sport x ASA-AL pela Série B em 26 de outubro. Como o Sport negociou jogo a jogo com o consórcio que administra a Arena começou a adquirir vantagens que o Náutico não conseguia por não ter poder de barganha devido ao contrato assinado e por isso, os jogos do Sport apresentavam preços mais atrativos nos ingressos e nos estacionamentos, fato que desagrada ainda mais a torcida do Náutico.

Em 2014, a relação da torcida do Náutico com a Arena continuou em um processo de amplo desgaste provocado por péssimas campanhas nos campeonatos disputados e a dificuldade de acesso na chegada e na saída da Arena em jogos após as 21h. Sem ônibus, sem metrô, com estacionamento caro, o público foi diminuindo e o Consórcio administrativo não se preocupava com as reclamações dos torcedores alvirrubros.

Enquanto isso, Santa Cruz e Sport assinaram e realizaram 6 e 7 jogos respectivamente na Arena. Uma curiosidade sobre esses jogos é que os clubes realizaram sempre jogos de grande atrativo de público e que aconteciam nos fins de semana em horários também atrativos, isso se traduzia por grandes públicos e grandes festas dessas torcidas.

No dia 19 de julho de 2015 aconteceu na Arena de Pernambuco o jogo Sport 2 x 0 São Paulo, num domingo às 16h, que marcou um grande esquema de organização do governo de Pernambuco e do Consórcio da Arena para que o torcedor do Sport tivesse facilidade de deslocamento e que se sentisse em casa. Foi criada uma linha expressa de ônibus (BRT) saindo da Praça do Derby[2] direta para a Arena, a segurança foi reforçada nas estações de metrô, para evitar as brigas que já se tornaram rotineiras, além disso, as bilheterias e estacionamentos da Arena abriram muito mais cedo que o normal e foi colocado um Food Park na entrada Sul, com 4 Food Trucks para servir lanches e almoço. Foram instalados polos com brincadeiras para as crianças que fossem ao jogo e para completar todas as entradas da Arena foram customizadas com a intenção de proporcionar que a torcida do Sport fosse recebida por muitas bandeiras tremulando em vermelho e preto.

O ano de 2014 se encerra com o recorde de público da Arena em jogos entre clubes desde sua inauguração de 36.615 pessoas em um jogo Sport 2 x 2 Flamengo realizado em 09 de novembro, fato de grande propaganda e orgulho da torcida do Sport e consequentemente de inquietação da torcida do Náutico que em menos de 1 ano já sentia que a Arena Pernambuco não era sua casa.

Arena Pernambuco
Fonte: Wikipedia

O ano de 2015 se inicia com o Sport fechando um contrato para levar 10 de seus jogos para a Arena de Pernambuco e o Santa Cruz também sinalizou que levaria alguns jogos, mas preferia negociar jogo a jogo. A questão é que tanto Sport quanto Santa Cruz escolheram os clássicos contra o Náutico, onde seriam mandantes para realizar na Arena.

Em menos de 2 anos, o Náutico deixou de ser “dono”, como alguns acreditavam que seria, da Arena para ser tratado como visitante no estádio. Isso, para o torcedor alvirrubro essa foi a gota d’água que transbordou de vez a ira contra o equipamento, o consórcio administrativo e os líderes que assinaram o contrato.

Pressionados pelos torcedores a direção do Náutico vetou a realização dos clássicos na Arena, onde teria papel de visitante e começou, então, a disputa nos bastidores.

Em 16 de Janeiro, o Consórcio que administra a Arena lançou uma nota, a qual, pela primeira vez colocou o estádio como “Campo Neutro”. A Federação Pernambucana de Futebol (FPF), que desejava todos os clássicos na Arena convocou um Conselho Arbitral Extraordinário e permitiu a Sport e Santa Cruz serem mandantes contra o Náutico na Arena, os jogos se realizaram em fevereiro e março de 2015.

A média de torcida do Náutico nos jogos na Arena Pernambuco vai diminuindo a cada ano e chega em 2017 a pouco mais de 4.200 torcedores por jogo. O clube se encontrava sem estádio e estava sendo abandonado pela torcida. Para tornar ainda pior a situação, o país estava passando por uma grande crise política e econômica devido ao envolvimento da Odebrecht, que administrava a Arena Pernambuco, em escândalos políticos e financeiros, culminando no rompimento do contrato pelo Governo de Pernambuco com o consórcio liderado por essa empresa.

Era questão de tempo a rescisão do contrato entre o Náutico e o consórcio, fato que foi oficializado em junho de 2016, nessa época já existia um movimento dentro da torcida alvirrubra para a volta ao estádio dos Aflitos. Esse movimento criou força e em dezembro de 2018, o clube realiza a tão sonhada volta para casa.

Após intensa campanha que mobilizou a torcida alvirrubra para reformar o antigo estádio dos Aflitos, intitulada de “Voltando Pra Casa”, onde os torcedores participaram financeiramente de diversas formas, como se associando ao clube, comprando diferentes produtos, tipo copos, camisas, grades e cadeiras do antigo estádio, pagando para plantar o novo gramado, houveram casos onde torcedores colocaram cinzas funerárias de parentes embaixo da placas de gramas, além de doações de dinheiro e de materiais por empresários e torcedores mais abastados, os torcedores conseguiram trazer o Náutico de volta para casa.

No dia 16 de dezembro de 2018, após 1664 dias, o Náutico volta para casa, com o jogo Náutico 1 x 0 Newell’s Old Boys – ARG, que marca a reinauguração do estádio dos Aflitos com um público de mais de 17 mil torcedores.

O fim da relação entre Náutico e Arena de Pernambuco se deu por culpa dos vários agentes envolvidos, onde cada qual à sua maneira teve uma parcela de responsabilidade na desconstrução gradativa do sonho da modernidade que a arena representava para o clube e sua torcida.  

O governo de Pernambuco não realizou grande parte das obras que viabilizariam a mobilidade para os jogos na Arena, isso fez com que dificultasse o acesso ao estádio com o transporte público, fato que vai de encontro ao normal dos principais estádios do mundo. Isso se explica pela falta de uma estação do metrô nas imediações da Arena Pernambuco, falta de planejamento de trânsito que acarretava imensos congestionamentos após as partidas, inclusive nos jogos que apresentavam públicos reduzidos etc

Outro fator foi a não realização das outras obras urbanas que dariam estruturação a Arena, o ambicioso projeto de “Cidade da Copa” não saiu do papel e mesmo após 11 anos da inauguração, ficou apenas um estádio no meio do mato.

O Consórcio da Arena que não mostrou sensibilidade para observar as queixas dos alvirrubros: a falta de setores reservados para sócios do clube, altos preços dos estacionamentos, os tipos de produtos ofertados nos bares e seus preços cobrados, a obrigatoriedade de assistir os jogos sentados, fato que os torcedores não estavam acostumados, isso mudou ao longo dos meses, a cada situação criada, isso ajudava na desconstrução da ideia de pertencimento dos torcedores.

A saudade do torcedor alvirrubro foi estruturada nas percepções que apenas os frequentadores assíduos poderiam ter do estádio dos Aflitos: o cheiro das comidas dos bares onde se reuniam antes e depois das partidas, o aperto das ruas ao redor do estádio em dias de jogos, os ângulos de visão dos diversos locais das arquibancadas, até mesmo o desconforto do antigo e acanhado estádio, passou a ser visto de forma saudosa pelos seus aficionados e o sentimento de pertencimento não foi construído com a nova arena.

A cada dia que se passava mais a coletividade alvirrubra se conscientizava e cobrava de suas lideranças que havia chegado o momento de abandonar a moderna Arena de Pernambuco e voltar às suas raízes, onde foi construída sua história, havia passado da hora de voltar para casa, era preciso e urgente a volta para o estádio dos Aflitos.

A estadia na Arena de Pernambuco deu ao Náutico a modernidade, mas fez com que clube e torcedores perdessem a identidade, isso fez uma enorme diferença. Mesmo com a globalização, a modernidade e a mundialização das grandes marcas são nas aldeias que vivemos, é onde formamos nossa identidade, é a ela que pertencemos, a aldeia é nossa casa.

Notas

[1] Programa do governo estadual para incentivar a participação da população pernambucana nos jogos de futebol no estado, onde os torcedores trocavam notas fiscais por ingressos, sendo esses ingressos pagos pelo governo aos clubes.

[2] Praça localizada no centro de Recife e importante ponto de encontro de linhas de vários bairros da capital pernambucana.

Referências

CORDEIRO, Carlos Celso. Oliveira, Lucídio José e Vieira, Roberto. Adeus, Aflitos. São Paulo. BB Editora. 2014.

FOER, Franklin. Como o Futebol Explica o Mundo: Um Olhar Inesperado Sobre a Globalização. Tradução Carlos Alberto Medeiros – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005

GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol Dimensões Históricas e Socioculturais do esporte das MultidõesTradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant e Marcelo de Oliveira Nunes – São Paulo: Nova Alexandria, 2002.

JOCIMAR, Daolio (organizador). Futebol, Cultura e Sociedade. Vários Autores – Campinas – SP, Autores Associados, 2005. 

MASCARENHAS, Gilmar. O direito ao estádio. Disponível em: https://medium.com/puntero-izquierdo/o-direito-ao-est%C3%A1dio-ae73eb43848f. Acesso em: 27 jan. 2021.

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Aureliano Guedes

Torcedor do Clube Náutico Capibaribe, mesmo antes de ser pernambucano. Mestrando do PROFHIST da Universidade de Pernambuco.

Como citar

GUEDES, Aureliano Soares. Clube Náutico Capibaribe e Arena de Pernambuco, uma relação marcada pela falta de pertencimento da torcida alvirrubra. Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 14, 2024.
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