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Sem medo, Saldanha foi o João do Brasil que poderia ter sido

 

Homenagem à João Saldanha: o dia 03 de julho marca o 107° aniversário de nascimento. A saber, no “ano que abalou o mundo” nascia João Alves Jobim Saldanha. Por certo, João Sem-Medo deixou marcas indeléveis no jornalismo e no futebol – um dos mais poderosos elementos da cultura popular brasileira. Com o propósito de rememorar esse importante personagem brasileiro, seguem as linhas abaixo.

Foto sem autoria informada. Fonte: Jornal A Verdade

 

O contexto de seu nascimento

Era o terceiro ano do “breve século XX”1, Sem-Medo veio ao mundo quando as insatisfações do proletariado russo aumentavam em relação ao caráter liberal da república instituída no final de fevereiro (calendário juliano), início de março (calendário gregoriano), e à manutenção da Rússia na Primeira Guerra Mundial. Na ocasião, Lênin já tinha regressado à Rússia, onde há três meses apresentara ao povo as “Teses de Abril” e já ecoavam as propostas de “todo poder aos sovietes” e “Paz, Terra e Pão”.

A ebulição também ocorria no Brasil: Saldanha veio ao mundo durante a Greve Geral. No seu natalício, os trabalhadores já tinham paralisado o Cotonifício Crespi, a Fábrica Têxtil Ipiranga, de Nami Jafet, e as fábricas de móveis do Brás. No momento em que Edgard Leuenroth, Luigi Damiani, Antonia Soares, Candeias Duarte, Teodoro Monicelli e Giuseppe Sgai lideraram a criação do Comitê de Defesa Proletária, Saldanha completava seis dias de vida. Dois dias depois, a greve atingiu seu ápice a partir do funeral de José Gimenez Martínez, trabalhador vítima da repressão; João Sem-Medo estava em seu 8° dia de existência. Apenas no final do mês a coisa se normalizou.

Obviamente, o nascimento de Saldanha não influenciou os acontecimentos. Contudo, somos marcados pelo contexto de nossa existência:

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem segundo sua livre vontade, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aqueles com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens (Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Capítulo I).

Assim, o passado que oprimia o cérebro e as convicções de Saldanha não foi acessado apenas pelos livros. Isto é, ele ouviu sobre tais acontecimentos, leu nos jornais os ecos dessas mobilizações e conviveu com homens e mulheres que continuaram a tradição de luta. Sem-Medo foi testemunha e partícipe das lutas de Luís Carlos Prestes e do desenvolvimento do Partido Comunista Brasileiro. 

Não é só futebol

O leitor já deve ter se perguntado: um texto sobre Saldanha que ainda não falou do Botafogo e da Seleção? Ora, a resposta para isso já foi elaborada por Nelson Rodrigues: “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”. Curiosamente, um intelectual considerado conservador entendeu a amplitude do futebol em uma sociedade. Ao contrário, muitos intelectuais de esquerda se distanciavam a partir de rótulos que nunca se sustentaram: o futebol era o ópio (paráfrase mal feita de um excerto de Marx, ou era o “circo” do Pão e Circo romano).

Diferentemente, João Saldanha, um militante comunista, se distanciou dessas interpretações superficiais. Politicamente divergente, convergiu com Nelson Rodrigues no entendimento da importância do futebol para além do campo de jogo. Saldanha não era o único, o marxista Eric Hobsbawm tratava o futebol como um culto proletário de massas. Além disso, o historiador marxista admirava a seleção brasileira de Gérson, Jairzinho, Pelé e Tostão, como se vê na resposta a Raul Milliet Filho:

[…] admiração pela seleção brasileira e por dois jogadores em particular: Gérson e Tostão. E ia além relembrando dois jogos da Copa de 70: Brasil x Itália e Brasil x Inglaterra. Deste último jogo retinha na memória a trama do gol brasileiro feito por Jair […] Quase 20 anos mais tarde deixaria registrado: “… e quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?’ (A Era dos Extremos).2

Logo, relacionar Saldanha a Hobsbawm não é só pela coincidência de posições sobre o futebol. Ademais, há inúmeros textos em que Hobsbawm analisa o futebol para explicar o contexto, sugiro a leitura da matéria assinada por Cesar Sanson reproduzindo o texto de Milliet Filho3. Permita-me voltar ao personagem central deste texto: o futebol elevado ao status de arte, admirado por Hobsbawm, é fruto do trabalho de João Sem-Medo.

Entrada e saída surpreendentes

A escolha de Saldanha para técnico da Seleção Brasileira, em 1969, foi surpreendente. Porém, o fracasso da COSENA (Comissão Selecionadora Nacional), em partes, explica o fato.

Com a derrota em 1966, o Serviço Nacional de Informações (SNI) monitorou João Havelange, que cedeu às pressões da Ditadura. Com a influência dos militares, a COSENA era composta por “notáveis” e tinha a função de definir o treinador, os membros da comissão técnica e dar ou não o aval aos jogadores convocados. Entretanto, com os maus resultados, os militares entenderam que a continuidade da crise no futebol seria mais grave que qualquer mudança no comando técnico. Por essa razão, Havelange pôde centralizar novamente o comando da seleção e dissolver a COSENA.

Então veio Saldanha. Projetado pelos bons no Botafogo, Sem-Medo classificou a seleção para a Copa de 1970 com boas atuações e escalando juntos os principais craques. Do mesmo modo que ascendeu, a queda de Saldanha foi surpreendente e eivada de motivos políticos. Mas, a versão pública atribuía a causa aos maus resultados em amistosos preparatórios para a Copa, já em 1970. Nelson Rodrigues discordava:

Mas cada notícia sobre Saldanha era, normalmente, uma intriga vil. As manchetes faziam um descarado terrorismo contra o técnico. Isso, em toda a imprensa, em todo o rádio, em toda a TV do Brasil. E era dia após dia, hora após hora, minuto após minuto.5

Fonte: Acervo o Globo

 

Na verdade, Saldanha não escalava um centroavante fixo, o que dizem ter sido o início das rusgas com o ditador Emílio Garrastazu Médici, admirador de Dadá Maravilha. Aliás, a polêmica esquentou com a seguinte declaração de Saldanha:

O Brasil tem 80 ou 90 milhões de torcedores, de gente que gosta de futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente, ou o presidente e eu, temos muita coisa em comum. Somos gaúchos, somos gremistas, gostamos de futebol, e nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time. Você tá vendo que nós nos entendemos muito bem.4

A polêmica teve outros agravantes. Por exemplo, Saldanha e Lídio Toledo se desentenderam; e, em reação ao assassinato de Carlos Marighela, no fim de 1969, João Sem-Medo montou um dossiê com milhares de nomes de presos políticos e diversos nomes de mortos e torturados pela Ditadura Civil-Militar. O dossiê foi entregue a autoridades internacionais no sorteio da Copa do Mundo, em janeiro de 1970.

O caminho para o tri

Não vou debater se Zagallo foi ou não fundamental para o tricampeonato mundial, pois me parece óbvio que contribuiu de algum modo. Igualmente foi importante o dinheiro investido no Planejamento México, oriundo do dinheiro da Loteria Esportiva destinada à CBD, das doações de empresas como Shell e União dos Bancos Brasileiros (depois, Unibanco) e de vendas de adereços (moedas cunhadas com símbolos da seleção).

Entretanto, apesar do protagonismo dado aos militares e profissionais relacionados (como Claudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira) na preparação, o Planejamento México começou durante o comando técnico de João Saldanha na Seleção.

A preparação começou um mês antes da estreia para ambientação no clima e na altitude, foram escolhidas como sede Guadalajara (1700 metros) e Guanajuato (2000 metros). Outrossim, incluiu diversos profissionais para acompanhar amistosos das principais seleções e produzir relatórios. Assim, o custeio desse projeto veio, em parte, da exploração da imagem das “Feras do Saldanha” pelas empresas doadoras e nas vendas dos adereços. Ou seja, o plano só foi possível porque João Sem-Medo escalou Gérson, Jairzinho, Tostão e Pelé ao mesmo tempo. Ademais, já compunham o elenco Rivellino e Dirceu Lopes.

No entanto, restam poucas dúvidas sobre a importância de Saldanha: a preparação já estava definida; em relação aos últimos jogos das eliminatórias Zagallo promoveu Rivellino no lugar de Edu, Clodoaldo se tornou volante no lugar de Piazza (recuado para a zaga no lugar de Joel), Brito no lugar de Djalma Dias e Everaldo no lugar de Rildo. O xodó de Médici, apesar de convocado, não foi titular e as “feras do Saldanha” foram mantidas.

Contribuições de Sem-Medo e as mudanças de Zagallo

Em 2020, Mauro Beting entrevistou Rivellino, Gérson, Tostão, Jairzinho e Edu. Gérson, que já afirmou que a demissão de Saldanha não foi política, concordou com Tostão, Jairzinho e Edu afirmando que a seleção ganharia com João Sem-Medo. Mais comedido, Rivellino disse que, devido a enorme qualidade do time, “poderia, sim” ter ganho, mas era difícil saber. Tostão discordou da afirmação de Zagallo que sair do 4-2-4 para o 4-3-3 foi decisivo e diz que o diferencial brasileiro era o brilho individual. Edu convergiu com Tostão e afirmou que o esquema tático não mudou tanto uma vez que apenas mudaram os jogadores que realizavam as funções mais abertas pela esquerda.6

É claro que afirmar uma coisa ou outra, é um exercício de imaginação apenas. O fato é perceber como jogadores, sacados ou promovidos por Zagallo, concordam que a montagem da seleção estava muito avançada com Saldanha e, como relatei acima, a preparação estava desenhada. A entrada de Zagallo deu o controle da preparação física para Coutinho (Escola Militar de Educação Física) e Parreira (Escola Nacional de Educação Física e Desportos) bem como a chave da seleção para os militares, representados principalmente pelo Brigadeiro Jerônimo Baptista Bastos e Major Roberto Câmara Lima Ypiranga dos Guaranys7. Com isso, os militares capitalizaram com o tricampeonato mundial.

No entanto, cumpre resgatar a história para alertar que, diferente dos discursos oficiais, a Seleção Brasileira de 1970, que elevou o futebol ao status de arte, segundo Hobsbawm, é obra do povo brasileiro, compostos por filhos da classe trabalhadora, com grande de destaque a atletas negros e seu caminho para o título contou com a sabedoria e a coragem de João Sem-Medo para retirar a seleção da crise iniciada em 1966, quando vários técnicos, preparadores físicos ligados ao Exército e alguns clubes passaram a tratar como sinônimos e receita para o sucesso ciência, ordem, disciplina e futebol-força. Saldanha colocou as coisas em seu lugar: aceitar as contribuições científicas não era negar a brasilidade, o talento, o improviso e a genialidade dos atletas. É nesse contexto que os parâmetros técnicos do Planejamento México serviram para potencializar a arte das “Feras do Saldanha”.

Um adeus e muitos simbolismos

Quis o destino que Saldanha morresse em 1990, nove dias depois de completar 73 anos, quando cobria a Copa do Mundo na Itália. Morreu numa das copas com uma das mais baixas médias de gol, lembrada pelos fortes sistemas defensivos e pela ênfase na disciplina tática.

Era o ano seguinte à queda do Muro de Berlim. Na época, a União Soviética, cuja criação se relacionava com os acontecimentos do ano de seu nascimento, estava em seu ocaso. Morreu no ano que o “cavaleiro da esperança”, Luís Carlos Prestes, também nos deixou. Se despediu quando o mundo avançava para o estado de coisas em que vivemos. Viveu o “breve século XX”.

Saldanha está exatamente no meio, é o 7° da esquerda para direita ou da direita para esquerda. Foto da Equipe da Copa da Itália na Manchete – 1990. Fonte: Manchete.org

 

Provavelmente, Saldanha seja uma das sínteses do Brasil que poderia ter sido e que, portanto, deveria ser resgatado para retomar a vivacidade dos movimentos populares: coragem, sagacidade e compromisso com a premissa de que vencer é importante, mas vencer respeitando nossa cultura popular é ainda mais. Que nos digam o encantador Botafogo dos anos 1960 e as “Feras do Saldanha” que fizeram do nosso ludopédio arte que emociona e mobiliza.


Trata-se de uma denominação histórica formulada por Eric Hobsbawm, não confundir com o século cronológico.

Ver mais em: Eric Hobsbawm e o futebol, matéria de César Sanson (22 de outubro de 2012). Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/172-noticias/noticias-2012/514782-eric-hobsbawm-e-o-futebol.

Idem.

Ver mais em: ‘Ele escala o ministério, eu escalo a seleção’: o técnico do Brasil que peitou o presidente, matéria de Daniel Gallas (BBC News Brasil, 8 de junho de 2021).

5 Nelson Rodrigues, Guerra suja tão suja. O Globo, 19 de março de 1970.

Ver mais em: https://tntsports.com.br/blogs/O-Brasil-teria-sido-campeao-em-1970-com-Joao-Saldanha-Os-proprios-tris-respondem-20200615-0007.html.

Ypiranga dos Guaranys também ficou conhecido por concordar com o plano do Brigadeiro João Paulo Burnier para o atentado ao Gasômetro, também conhecido como Caso Para-Sar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Jefferson Nascimento

Professor no Instituto Federal do São Paulo (IFSP) - campus Sertãozinho, Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) com a tese "A institucionalização de interesses organizados na agenda do Estado no Brasil e na Argentina em perspectiva comparada: o caso do futebol (1930-2020)", membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA). E-mail: [email protected]

Como citar

NASCIMENTO, Jefferson Ferreira do. Sem medo, Saldanha foi o João do Brasil que poderia ter sido. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 3, 2024.
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