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O que significou ser mulher e gostar de futebol? Reflexões sobre experiência, memória e feminismo

Luiza Sarraff 1 de julho de 2024

Minhas melhores memórias da infância são ligadas ao futebol. Não lembro de torcer para outro time que não o Flamengo. Nunca houve dúvida. Eu sei os jogadores que atuaram pelo time entre os anos 90 e 2000, não lembro o que significava uma quarta ou um domingo sem futebol, não lembro de uma Copa do mundo que não tenha assistido. Eu conheço o Maracanã com sua geral, com seus banheiros que beiravam a insalubridade(e que meu pai sempre pedia pra alguma moça gentil me acompanhar), conheço o cheiro das coisas(muitas vezes de procedência duvidosa) que eram arremessadas em um momento de fúria ou de alegria, conheço todos os palavrões de cor e salteados por ouvir serem proferidos aos juízes, conheço todos os cantos da torcida. Sendo assim, acho que que o Maracanã não é só um estádio, é um templo sagrado, seguindo a esteira das afirmações de Luiz Antonio Simas, é um local que o espírito encontra corpos apaixonados que encontram no futebol a expressão máxima de suas alegrias ou tristezas.

Entre todas essas lembranças, gostaria de pedir licença ao leitor e me permitir um pequeno momento de nostalgia. Entre tantas memórias junto ao futebol, minha favorita é uma de um sábado de sol, Rio 50º graus, Flamengo X Santos pelo campeonato brasileiro. Jogo pequeno, bobo, quase sem importância. Eu e meu pai nos arrumamos, vestimos o manto e migramos pro nosso templo. Jogo meio mais ou menos, meio emperrado, parecia que ninguém queria jogar naquele calor. Até as arquibancadas estavam mais vazias. Meu pai resolveu comprar um mate e um biscoito globo pra nós, uma tentativa de melhorar o clima bem mais ou menos daquele jogo com o sol rachando nossas cabeças. Enquanto ele fazia o malabarismo de segurar o radinho dele no ombro, tirar a carteira do bolso e pagar o ambulante, eu olhava a atentamente o campo, o Flamengo despontava numa belíssima jogada. Entre passes e toques mais apressados de bola, finalmente, eu vi a bola nos pés do jogador parar dentro das redes do time adversário. Eu e meu pai pulávamos, o rádio caiu no chão, voou mate pra tudo quanto é lado e meu biscoito globo, virou farelo. Não importava. O Flamengo havia feito um gol. Estávamos salvos, felizes e satisfeitos. Voltamos pra casa mais felizes que nunca.

Se alguém me perguntar que ano foi isso, qual foi o jogador que fez o gol e o resultado final, respondo com toda a sinceridade: não sei. Só sei que o Flamengo ganhou e fui feliz como poucas vezes na vida. A memória, segundo Pollak, é um fenômeno construído social e individualmente, que ajuda na formação de um sentimento de identidade de si ou de um grupo. Sobre isso, o autor afirma“(…) a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa(…)”(1992,p.204). Portanto, não descarto a hipótese desse relato que fiz, ser um compilado de uma série de outras lembranças que ajudaram a construir minha identidade, primeiro como uma menina e hoje como uma mulher apaixonada pelo Flamengo e por futebol.

Torcida Flamengo
Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Fotos Públicas

Mas o que significou ser uma menina que cresceu apaixonada pelo Flamengo e por futebol? É essa pergunta que buscarei responder ao longo desse texto, mobilizando minhas experiências pessoais e alguns referenciais teóricos da história como uma tentativa tímida de abordar a relação entre machismo e futebol. Aponto que esta é uma tímida tentativa pelo fato de que é a primeira vez de que me disponho a escrever algo sobre futebol e, acima de tudo, pelo entendimento de que as relações sobre futebol e machismo vem sendo estudadas de forma mais densa por outras pessoas e em outros espaços.  Feito tais esclarecimentos, sigamos, então, buscando responder tal questão.

Concretamente e de forma bastante objetiva já respondo à questão: ser uma menina nos anos 2000 que gostava de futebol, basicamente, era sofrer com o machismo sempre mencionava meu gosto. Apesar das belas memórias que tenho, como relatei no início do texto, elas também são acompanhadas por uma série de lembranças em que ouvia: “Ah, impossível você gostar de futebol. Isso é coisa de meninos.”, “Se você torce mesmo pelo Flamengo, me diz qual escalação do time?”, “Qual a regra do impedimento?”, “Quem é o técnico do Flamengo” e por aí vai. Ouvia de homens, meninos e até mesmo de mulheres que a paixão pelo futebol não poderia me pertencer. Aquele não era meu lugar.

Simone de Beauvoir afirma que não se nasce mulher, torna-se mulher através das convenções sociais que impõem aos corpos femininos formas de se portar e quais desejos nos são permitidos. Hoje, quando olho para trás, penso que consegui resistir as ofensivas que diziam que o futebol não era pra mim e acho que fui muito resiliente. Não sou nenhuma heroína. Não tinha noção do que significava machismo ou opressão feminina. Eu era uma menina que aprendeu a amar o futebol com seu pai e assim me mantive porquê o esporte se tornou um dos meus melhores amigos depois da morte do meu pai. Os vinte e dois caras em campo me faziam sentir menos saudade do meu pai.

Foi dessa forma que passei a adolescência inteira vendo jogos da Premier League ou da UEFA pra manter esse laço vivo. Pra sentir que não estava sozinha. Foi muito difícil torcer pelo Flamengo após a morte do meu pai. Ele era a figura masculina que nunca questionou o fato de eu ser uma menina que torcia pelo time de coração e que amava ir ao estádio. Meu pai não era nenhum “feministo”, mas definitivamente, ele nunca foi excludente. Pelo contrário, se não fosse por ele, talvez eu não estivesse aqui escrevendo sobre futebol, enquanto tento assistir o jogo da Eurocopa.

Perdoe-me, leitor, pelas longas digressões, como você já deve ter percebido, esse é um tema muito sensível pra mim. Bom, durante a adolescência, enquanto via CR7, Messi, Adriano Imperador, Ibrahimovic, entre tantos outros, silenciei minha voz sobre gostar de futebol. Os meninos me excluíam, minhas amigas não curtiam e minha família é basicamente formada por mulheres que também não são lá tão fãs de futebol. Eu era uma péssima jogadora. Uma vez quase arranquei as canelas de duas amiguinhas em vez de chutar a bola (será que eu era ruim mesmo ou me faltou oportunidade?). Não havia diálogo, espaço pra trocar com ninguém. Minha relação com o futebol era solitária, mas em retrospecto, posso dizer não me surpreende, afinal, em um mundo que o machismo é estrutural, silenciar mulheres é rotina, é um habitus, um dispositivo entranhado em corpos e mentes para exclusão.

Eu venho de uma família de classe média, sou uma mulher branca que estudou em grandes escolas do Rio de Janeiro, logo, só vim descobrir o que é machismo na universidade. Minha geração não tinha o tiktok ou o twitter pra disseminar esses discursos. Foi no curso de História que entendi que o meu silenciamento era um fenômeno social comum na história e na vida das mulheres. Foi ali que entendi que gostar de futebol não era vergonha, que se eu falasse sobre o tema encontraria interlocutores prontos para me ouvir e debater comigo.

Pouco a pouco, fui me sentindo confortável para dialogar com colegas, descobrir outras mulheres que também gostavam de futebol, voltei a acompanhar o Flamengo e admitir pra mim mesma que minha identidade passa por essa paixão.

Hoje, eu sei que minhas experiências passadas, estruturam meu presente e ajudam a projetar expectativas para o futuro, como propõe Reinhart Koselleck. Após todas essas experiências aqui relatadas, meu presente e minha identidade são estruturados pelo meu amor pelo futebol e pelo Flamengo. Sou professora. Não sei falar de Revolução Industrial sem falar das origens do futebol moderno, Não sei falar de governo Dutra sem falar da Copa de 50 e do Maracanã e por aí vai. Nessa relação entre o meu passado e meu presente, encontro novas interlocutoras ou vejo outras meninas e mulheres se apaixonarem pelo futebol e, assim, começo a vislumbrar um futuro no qual cada vez mais meninas e mulheres estão nos estádios, torcendo pelos seus times, estudando futebol e não fazem silêncio perante suas paixões.

Como disse antes não sou heroína, mas também não sou vítima. Sou uma grande sortuda. Eu assisti a história ser feita. Vi meninas que foram silenciadas, se tornarem jogadoras. Vi meninas que foram silenciadas, chorarem pelo título de seus times. Vi meninas que foram silenciadas, gritarem para o mundo que(parafraseando a canção) teriam um desgosto profundo se faltasse o futebol no mundo. Minha expectativa para o futuro hoje é que eu possa continuar sendo testemunha ocular da história, vendo meninas e mulheres ocuparem um espaço que nunca deveria ter sido negado a elas. Meu sonho é ter 90 anos e ainda estar falando de futebol.

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. (1980a). Le sens pratique. Paris: Les Éditions de Minuit.

DE BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Nova Fronteira, 2014.

KOSELLECK, Reinhart; MASS, Wilma Patrícia; PEREIRA, Carlos Almeida. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Contraponto Editora, 2021.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SARRAFF, Luiza. O que significou ser mulher e gostar de futebol? Reflexões sobre experiência, memória e feminismo. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 1, 2024.
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