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Harlen Basket Club

José Paulo Florenzano 28 de junho de 2024

Desde meados da década de trinta, a prática do basquete estava presente na vida associativa do segmento afro-brasileiro na cidade de São Paulo. O Clube Negro de Cultura Social, por exemplo, oferecia na quadra da Barra Funda: ginástica, voleibol e “cestobol”, tanto para os rapazes quanto para as “moças”, com treinos regulares ministrados às terças e quintas feiras.[1] O departamento esportivo da Frente Negra Brasileira, por sua vez, comunicava “aos interessados” a realização de “estudos para a construção de um campo de bola ao cesto”.[2] Estas iniciativas, ao que tudo indica, perderam força com o advento do Estado Novo, sendo retomadas somente após a Segunda Guerra, já no contexto de uma nova conjuntura histórica.

No entanto, ao ser retomado no Pós-Guerra, o “fidalgo esporte do quinteto exibia uma identidade cada vez mais plebeia, transformação deslanchada com a colaboração do próprio jornal.[3] De fato, em 1954, enquanto a Federação Paulista de Bola ao Cesto (FPBC) levava a cabo o III Campeonato do Interior, o periódico da Fundação Casper Líbero organizava o XVIII Campeonato Popular, título sugestivo da estratégia adotada para promover uma competição que reunia equipes formadas por trabalhadores do comércio e da indústria, estudantes de escolas públicas e privadas, jovens de vários credos religiosos, times de várzea, sócios de clubes de diversos estratos sociais, além de equipes constituídas por atletas de ascendência africana, como os da Associação Desportiva dos Negros de São Paulo.[4] A quadra de basquete voltava a se constituir nos anos cinquenta em mais um espaço de atuação contra o preconceito e a discriminação. E a luta em questão encontrava pontos de apoio insuspeitados, como nos mostra a notícia veiculada por A Gazeta Esportiva:

Foi fundado, em 29 de outubro de 1950, no bairro de Vila Mariana, o Harlen Basket Club, formado e dirigido apenas por “coloureds”.[5] 

Inspirada no Harlem Globetrotters, de Nova York, a equipe de São Paulo se achava em “período de preparação” para a disputa do Campeonato Popular promovido pelo jornal. Treinando nos espaços cedidos pelo Colégio Ipiranga e pelo Clube Atlético Indiano, os rapazes negros do bairro de Vila Mariana almejavam, em um primeiro momento, “lutar ao lado das demais agremiações” no torneio promovido por A Gazeta Esportiva, para, posteriormente, ingressar no campeonato organizado pela FPBC. No começo de 1951 eles compareceram à sede do periódico para agradecer o apoio e divulgar a existência da nova equipe. Trajados a rigor, isto é, com terno e gravata, os atletas do Harlen Basket Club foram recebidos por um repórter que, no entanto, fez questão de lhes indicar o letreiro fixado logo na entrada da redação: “Esta casa de Casper Líbero é a casa dos esportistas”.[6]

A reportagem veiculada pelo jornal deixava escapar a tensão entre a acolhida amigável dispensada ao grupo negro e a admoestação velada que a referência ao letreiro continha. O subtexto da matéria expressava o mal-estar do órgão de imprensa em face de uma equipe constituída em torno de uma identidade racial que entrava em linha de confronto com a narrativa hegemônica da democracia racial. A perturbação que se manifestava nas entrelinhas da reportagem possuía vários motivos. Principiava pela denominação em inglês assumida pelo time, passava pela sua forma de (auto) organização e incluía a pretensão do grupo de militar na competição oficial, desvelando, assim, a contradição entre a popularização da prática esportiva no circuito mais amplo da cidade e a elitização que ainda a cercava no âmbito mais restrito da FPBC.   

A fundação do Harlen Basket Club, para além de explicitar as contradições que cercavam a prática do basquete em São Paulo, refletia o aprofundamento das trocas e experiências deslanchadas no circuito comunicativo do Atlântico Negro.[7] Com efeito, as excursões empreendidas por equipes estadunidenses trouxeram ao Brasil uma contribuição inestimável não somente no plano da técnica esportiva, como, também, na luta para redefinir as linhas de cor traçadas nas quadras de basquete.[8]

Harlem Globetrotters
Fonte: divulgação FCB

Ao longo da década de cinquenta, os astros do Harlem Globetrotters visitaram o País em várias oportunidades. A primeira delas em 1951, no Rio de Janeiro, quando se apresentaram em um palco erguido no centro do gramado do Maracanã. O treinador do Flamengo, porém, não parecia plenamente satisfeito com o espetáculo. Embora reconhecesse a contribuição dos “negros” estadunidenses para elevar “o nível técnico do basquete brasileiro”, Kanela advertia os adeptos da modalidade esportiva a não tomar “ao pé da letra” o ensinamento dos adversários, isto é, a descartar o “malabarismo” exibido nas apresentações a fim de não comprometer a “efetividade do jogo”.[9]

Assim, sucedia aos jogadores negros de basquete do Harlem algo similar ao que ocorria com os jogadores negros de futebol do Brasil. Enquadrados pelo discurso do estereótipo, eles acabavam se tornando objeto de elogio e escárnio.[10] Os “infernais malabaristas da bola ao cesto”, como os denominava A Gazeta Esportiva, provocavam aqui dentro o mesmo tipo de reação ambígua que os “diabólicos malabaristas da bola de futebol” suscitavam lá fora.[11] Todavia, convém evitar as generalizações. Nem todos os grupos sociais compartilhavam a mesma leitura, possuíam a mesma apreensão dos Globetrotters. Vistos sob a ótica do Atlântico Negro, assim como acontecia com os times brasileiros de futebol, eles suscitavam identificações que, conquanto não estivessem isentas de ambiguidades, escapavam em parte às determinações do estereótipo, como, justamente, revela a criação do Harlen Basket Club.


Notas

[1] Cf. “Pelo Clube Negro de Cultura Social”, O Clarim, abril de 1935. Cf. “Pelo Clube Negro de Cultura Social”, O Clarim, março de 1935. A primeira sede localizava-se na rua Major Quedinho e havia sido instalada em 1 de julho de 1932. A nova sede ficava na rua Conselheiro Ramalho. A organização apresentava-se como a “elite representativa do nosso povo”.  Cf. “Clube Negro de Cultura Social”, O Clarim da Alvorada, 13 de maio de 1932.

[2] Cf. “Comunicado oficial do Departamento Esportivo”, A Voz da Raça, 23 de junho de 1934.

[3] A expressão “fidalgo esporte do quinteto” aparece na reportagem:  “A bola ao cesto em Campinas”, A Gazeta, 9 de fevereiro de 1930.

[4] Cf. “Espetacular a segunda rodada do XVIII Campeonato Popular de Bola ao Cesto de A Gazeta Esportiva”, A Gazeta Esportiva, 1 de setembro de 1954. Para citarmos alguns exemplos dos times que participavam do torneio: Ultra Gaz, Química Industrial, Mocidade Evangélica, Clube Esportivo da Penha, Tênis Clube, União dos Ex-Alunos Salesianos e Caveira de Ouro.

[5] Cf. “Harlen Basket Club, formado e dirigido por ´coloureds`”, A Gazeta Esportiva, 5 de janeiro de 1951.

[6] Cf. “Harlen Basket Club, formado e dirigido por ´coloureds`”, A Gazeta Esportiva, 5 de janeiro de 1951.

[7] Gilroy, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34/ Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes/Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização: Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003

[8] No início da década de 1950 vieram ao Brasil diversas equipes universitárias estadunidenses, a princípio, compostas exclusivamente por atletas brancos. Cf. “A All Stars derrotou o Flamengo por 52 a 53”, 12 de agosto de 1950. “O Bowling Green jogará em Belo Horizonte”, 14 de agosto de 1950. “Estrearão amanhã contra o Selecionado Paulista os cestobolistas americanos”, 30 de agosto de 1950. Todas as matérias publicadas em A Gazeta Esportiva.

[9] Cf. “Basket-ball em marcha”, Jornal do Brasil, 5 de maio de 1951.

[10] Bhabha, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998.

[11] Cf. “Os Globetrotters jogarão na próxima semana em São Paulo”, A Gazeta Esportiva, 21 de maio de 1954.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Harlen Basket Club. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 28, 2024.
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