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A Copa do Mundo de 1970 e o regionalismo dos torcedores brasileiros sob o olhar da revista Placar

Eric Moreira Profitti 26 de junho de 2012

O futebol no Brasil possui forte relação com a identidade nacional do país. Esta relação foi construída principalmente durante as primeiras décadas do século XX, momento o qual a discussão acerca de uma possível identidade nacional estava muito presente entre os intelectuais brasileiros. Desde o final do século XIX diversos autores buscaram pesquisar sobre esse tema e muitos acreditavam que não existia uma identidade nacional formada. Silvio Romero, por exemplo, defendia a tese de que não havia originalidade na cultura brasileira, pois esta era baseada na “cópia” de elementos estrangeiros (Schwarcz,1995:02).

Muitos intelectuais criticavam duramente a miscigenação presente na sociedade brasileira e a acusavam de impedir a formação de uma “civilização” nacional. No entanto, durante a década de 1930 uma nova corrente surgiu questionando esse pensamento. Autores como Oswald de Andrade e Mario de Andrade salientavam que era justamente a miscigenação e a troca cultural entre indígenas, africanos e europeus que formava a originalidade da cultura brasileira. Neste momento passa a ser admitida entre intelectuais brasileiros a ideia de haver uma cultura e uma identidade brasileira (Queiroz,1989:21).

Durante estas primeiras décadas do século XX a prática do futebol passou a crescer muito no país, atingir grande nível de popularidade e ser relacionada mais fortemente com a identidade nacional. A década de 1930 foi importante neste processo, principalmente por causa da participação brasileira na Copa do Mundo de 1938, realizada na Itália. Gilberto Freyre, por exemplo, afirmou que a seleção nacional de futebol representou o povo brasileiro e era a expressão da “brasilidade” (Maranhão, 2006).

Após a Copa do Mundo de 1938, a competição só voltou a ser disputada em 1950, justamente no Brasil. Este longo tempo de inatividade não fez com que a competição perdesse o encanto, pelo contrário, a Copa do Mundo passou a crescer cada vez mais a ponto de tornar-se um dos maiores eventos mundiais da atualidade. O grande sucesso econômico e midiático deste evento, em grande parte, deve-se ao esforço em produzir a ideia de que a nação está sendo representada pelos onze homens de chuteiras. A FIFA, organizadora do evento, atuaria como uma “mão invisível” neste processo. Um bom exemplo disso é que diferentemente dos clubes, não existe possibilidade de transação de jogadores entre seleções. Além da FIFA, a mídia e as confederações nacionais de futebol também são agentes importantes nesse processo de construção do simbolismo da Copa do Mundo e estimulam por meio de propagandas e discursos a ideia de que o selecionado de futebol representa a nação (Guedes,2006).

Desta forma, notamos que a Copa do Mundo é um elemento fundamental para a relação entre o futebol e a identidade nacional brasileira. Simoni Lahud Guedes afirma que:

As Copas do Mundo constituem-se, para os brasileiros, em verdadeiros rituais nacionais, ocasiões em que se celebra a brasilidade, construção simbólica da unidade nacional, “suspendendo-se”, de certo modo, as diferenças e desigualdades que permeiam a estrutura social” (Guedes,2006:74).

De acordo com Bertoli Filho (2010), durante a década de 1970 a questão da brasilidade esteve fortemente em pauta para o governo brasileiro. O início da década foi marcado por um grande ufanismo que tomou conta de diversos setores da sociedade brasileira. Este ufanismo foi relacionado por muitos intelectuais com a conquista da Copa do Mundo de 1970, disputada no México. Podemos dizer que existe uma certa memória constituída acerca desta Copa do Mundo que aponta para os discursos de união nacional proferidos pelo governo e até pela imprensa.

Cartaz oficial da Copa de 70 no México (reprodução).

 Ao tomarmos contato com as edições da Revista Placar durante a Copa de 1970 podemos perceber que existe um discurso forte de união nacional, no entanto, observamos também indícios que esta competição pode ser um importante espaço para discussões políticas e de identidade entre os diversos Estados brasileiros. Desta forma, a Copa do Mundo pode ter, por vezes, efeito diferente do que é apontado constantemente, ou seja, apenas de união nacional.

Na edição do dia 3 de Julho de 1970 a Placar aborda a comemoração em vários Estados brasileiros após a conquista do tricampeonato mundial de futebol. A Placar cita a alegria da cidade do Rio de Janeiro, a união entre as torcidas do Rio Grande do Sul e Minas Gerais e destaca a decepção da torcida paulista devido à ausência de importantes jogadores e da taça na comemoração.

Sobre esta questão a revista Placar assume-se paulista e questiona: “Paulista não é brasileiro? Não tem direito de ver a taça que nossos jogadores ajudaram a ganhar no México?” (Placar,16,1970:03). Na edição publicada no dia 10 de Julho de 1970, após noticiar a grande operação militar para a chegada da taça em São Paulo, Placar afirma: Porque São Paulo é sempre marginalizado pela CBD? Porque a CBD não tem sede em Brasília? (Placar,17,1970:38). Nota-se que, indiretamente, a Placar questiona certo favorecimento ao Estado do Rio de Janeiro, local sede da CBD, entidade máxima do futebol brasileiro. Desta forma a publicação sugere a transferência da CBD para um local mais “neutro”. Apesar dos questionamentos esse assunto não é mais mencionado em outras matérias regulares da Placar. Porém, na sessão camisa 12, espaço destinado às cartas dos leitores, o tema mais mencionado é justamente a rivalidade e ofensas entre alguns Estados brasileiros.

Capa da Revista Placar, n.16, 06/06/1970 – Google books (reprodução).

Notamos que essa disputa tem como foco principal a afirmação de um estado sobre os demais no âmbito esportivo. Isto é, os torcedores procuravam discutir como o futebol de seu estado é melhor do que os demais e, consequentemente, deveria possuir maior número de jogadores na seleção. No dia 19 de Junho de 1970 um leitor, Gaúcho, escreveu: “Nós, gaúchos, é que somos os bons do futebol. Uma seleção gaúcha venceria paulistas, cariocas, mineiros, baianos e a própria seleção brasileira” (Placar, 14-A, 1970:42). No entanto, na mesma edição é possível encontrar provocações e reprodução de estereótipos em relação a gaúchos que ultrapassam o campo esportivo:

Quantas vezes a seleção gaúcha foi campeã brasileira, como os cariocas, paulistas, mineiros e baianos? Nenhuma. Ando cheia de tanta gauchada nas páginas da Placar. Gaúcho é bom em cima de cavalo, mas futebol é jogado a pé (Placar, 14-A,1970:42).

Ainda na mesma página, um leitor da Placar vai mais além e faz uma piada de cunho homofóbico contra os gaúchos: “O Beira-rio possui acomodações para 178.000 torcedores: 89.000 sentados na arquibancada e outros tantos gaúchos acomodados no colo dos conterrâneos” (Placar,14-A,1970:42). Percebemos a reprodução de estereótipos não somente em relação aos gaúchos, a própria Revista Placar, por meio de imagens, reproduz alguns desses estereótipos.

Na edição do dia 3 de Julho, em meio à publicação de diversas cartas que mais exaltam os clubes e Estados do que a seleção nacional, a revista publica uma imagem interessante e que, de certa forma, sintetiza a forma como mineiros, paulistas e cariocas são representados. Nesta imagem há três brasileiros brindando, sendo um mineiro, um paulista e um carioca. O mineiro é representado como caipira, o paulista parece estar vestido de forma social, com terno e gravata, já o carioca é representado é forma descontraída, com óculos escuros e camisa florida (Placar,16,1970).

Ilustração sobre a rivalidade Rio-São Paulo – Felipe Franco

Em 19 de Junho uma imagem semelhante e também baseada em estereótipos é retratada pela Placar. Nela um personagem representando um típico malandro, figura ligada ao imaginário do que é ser carioca, aplica uma rasteira em um homem que provavelmente representa um empresário paulista. A imagem mostra um pouco do teor de algumas cartas publicadas nesta edição, pois muitas são de cariocas criticando paulistas. Uma destas cartas é particularmente interessante, pois, um leitor questiona a própria revista Placar: “Vocês só publicam cartas a favor de São Paulo por que são paulistas. Qual é a bronca que vocês têm do Rio?” (Placar, 14, 1970:44). Ao tomar contato com as edições da Placar publicadas durante a Copa percebemos que o maior número de cartas ligadas a disputas regionais estão ligadas as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Percebemos que o Estado do Rio de Janeiro é retratado por sua beleza e pela malandragem dos cariocas, enquanto a imagem mais associada aos paulistas é a de industriais engravatados.

A discussão entre torcedores cariocas e paulistas ocorre, na maioria das vezes, em âmbito esportivo. Na edição do dia 12 de Junho podemos notar como esta rivalidade estava acirrada naquele momento. Diversas cartas publicadas estão relacionadas com a discussão sobre qual Estado era mais representativo no mundo do futebol. Uma das cartas de um torcedor carioca dizia: “Em São Paulo só existem três jogadores de futebol: Pelé, já no fim, Rivelino e Clodoaldo. E os três não passam de bagulhos” (Placar, 13, 1970:44). Enquanto um torcedor paulista afirmou: “Acho que a seleção pode e deve ser feita sem pernetas cariocas” (Placar, 13, 1970:44).

Ilustração de Pelé – Luis Fernando Reis

Assim como dito anteriormente, essa discussão, por vezes, ultrapassa o âmbito esportivo e o que vira motivo de disputa é a afirmação de um estado sobre o outro de maneira geral. Alguns leitores cariocas destacam a expressão “cidade maravilhosa” e criticam o Estado de São Paulo e os paulistas: “Paulista tem é mágoa da cidade maravilhosa, por isso só diz besteira” (Placar, 14, 1970:44); “O que é que São Paulo tem melhor do que a cidade Maravilhosa? Em mesmo respondo: nada” (Placar, 14, 1970:44). Enquanto os cariocas exaltam a beleza da cidade maravilhosa, um dos torcedores alega que São Paulo é a maior cidade do Brasil e a oitava do mundo.

Desta forma, o que procuramos mostrar é que apesar da Copa do Mundo ser inegavelmente um momento em que afloram discursos sobre a união nacional, esta competição pode ser também um espaço para que as rivalidades regionais fiquem em evidência. Isto pôde ser visto pela crítica da Revista Placar em relação a uma suposta marginalização do Estado de São Paulo por parte da CBD. O grande espaço dado pela revista para cartas com manifestações regionalistas também pode ser um indício de como o regionalismo estava fortemente presente entre os torcedores brasileiros no ano de 1970.

Bibliografia

BERTOLLI FILHO, Cláudio. O trato com a bola: entre a apropriação midiática e a cultura acadêmica. In: TURTELLI, Sandra Regina (org). Esporte em foco. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p.115-128.

GUEDES, Simoni Lahud. Futebol e identidade nacional: reflexões sobre o Brasil. In: DEL PRIORE, Mary e MELO, Victor Andrade de (orgs.). História do esporte no Brasil. São Paulo: Unesp, 2009. p.453 a 480.

MARANHÃO, Tiago (2006). “Apolíneos e dionisíacos”: o papel do futebol no pensamento de Gilberto Freyre a respeito do “povo brasileiro”. Revista Análise Social, nº 179, pp. 435-450.

SCHWARCZ, Lilia Moritz (1995). “Complexo de Zé Carioca: Notas sobre uma Identidade Mestiça e Malandra”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 49-63.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Identidade cultural, identidade nacional no Brasil. In: Tempo Social 1. São Paulo, Edusp, 1989.

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Como citar

PROFITTI, Eric Moreira. A Copa do Mundo de 1970 e o regionalismo dos torcedores brasileiros sob o olhar da revista Placar. Ludopédio, São Paulo, v. 36, n. 7, 2012.
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