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“Me dei conta de que eu havia sido condenado”: a história de Justin Fashanu

Victor de Leonardo Figols 11 de fevereiro de 2019

Próximo de completar 20 anos da morte de Justin Fashanu, a Netflix produziu um documentário sobre a sua vida, e sobre a sua carreira de jogador de futebol. O filme Forbidden Games: The Justin Fashanu Story (2017) busca contar a trajetória do primeiro jogador abertamente gay da história do futebol.

Poster do filme Forbidden Games: The Justin Fashanu Story (Divulgação)

Filho de pai nigeriano e mãe guianesa, Justinus Soni Fashanu, ou simplesmente Justin Fashanu, nasceu em 19 de fevereiro de 1961, em Hackney, na Inglarerra. Ainda muito pequeno, Justin e o irmão John foram entregues para a adoção. A narrativa do filme se inicia justamente no momento em que os irmãos Fashanu chegam no orfanato, focando em um primeiro momento na questão do abandono do pai (que voltou para a Nigéria), e na decisão da mãe em entregar os filhos a adoção, alegando que não tinha condições ideais para criar sozinhas seus quatro filhos.

É também no começo do filme que Justin Fashanu é apresentado. Com trechos de entrevista de amigos e familiares, com entrevistas do próprio Justin, e com recortes de jornais, o documentário constrói um personagem complexo, marcado por inseguranças e traumas. Segundo o filme, o abandono dos pais, os primeiros anos no orfanato, afetou diretamente a vida de Justin, tanto que até no fim da sua vida culpou a sua mãe pelo abandono.

No orfanato, Justin se mostrava uma criança muito forte, um porto-seguro para o irmão mais novo John, que também sofria com o abandono dos pais. Essa aproximação afetiva entre os irmãos aparece muito forte no filme, principalmente na infância dos dois. Os irmãos foram adotados por um casal branco de Norfolk. Durante a infância, duas questões incomodavam os irmãos Fashanu, primeiro era fato da mãe adotiva deles ser branca, e muito mais velha, e a segunda era de que ambos eram os únicos negros na pequena cidade.

Mas como o próprio Justin relata no filme, ele só tomou consciência que era negro, quando tinha entre 12 e 13 anos, quando a discriminação começou a ser recorrente entre os seus colegas de escola. Também foi justamente nessa idade que Justin começou a trilhar a sua carreira de jogador de futebol. E no ambiente futebolístico também conheceu o lado perverso de futebol: racismo e atos discriminatórios por parte das torcidas e de colegas de profissão.

Por outro lado, Justin e John viam no futebol uma ferramenta de reconhecimento social. Justin chegou a declarar certa vez: “O futebol servia para mostrar que éramos relevantes para a sociedade”. E mais do que isso, Justin via no futebol uma ótima forma de ascensão social. Dentro de campo Justin era um ótimo atacante, física e tecnicamente. Ele era o melhor entre os dois Fashanu.

A carreira de jogador profissional de Justin começou no Norwich City Football Club, e foi com a camisa amarela e o número 8 nas costas que Justin se tornou um ídolo do clube, com uma ascensão meteórica. Rapidamente, o Justin conquistou, materialmente, coisas que nunca sonhou em ter. O jogador via na aquisição de bens materiais (carro e roupas) uma forma de atingir um status social, mas isso era uma forma de suprir a insegurança e o abandono que marcaram o início da sua infância. Já dentro de campo, o futebol para Justin era uma forma se expressar: era a “liberdade”.

O reconhecimento mundial, e o ápice da carreira de jogador profissional se deu na partida entre Norwich City e Liverpool, em 1980. O golaço marcado por Justin chamou atenção do maior técnico do futebol inglês na época, Brian Clough. O técnico do Nottingham Forest FC que havia levado o clube ao bicampeonato da Copa da Europa (antiga UEFA Champions League) nas temporadas 1978–1979 e 1979–1980. No ano seguinte, o Nottingham Forest contratou Justin, tornando o primeiro jogador negro da história do futebol a ser transferido pelo valor de um milhão de libras esterlinas.

Com menos de 21 anos, Justin já era um fenômeno do futebol inglês, estava no clube em maior evidência da Inglaterra, com o melhor técnico do momento. A pressão no Nottingham Forest era evidente, e como é mostrado no filme, Justin sentiu. Poucos colegas de clube buscaram ajudar. Em campo, o desempenho era péssimo, fora dele, a fama e o dinheiro subiram à cabeça, e Justin começou a ser visto com frequência nas casas noturnas e em clubes gays na pequena cidade de West Bridgford. Rapidamente, os boatos de que Justin era gay chegou ao conhecimento do técnico Brian Clough, que resolveu a questão excluindo o jogador do clube. Nas páginas dos jornais, Clough teria dito para Justin: “SUMA!”. A carreira de Justin acabou no Nottingham Forest, porque que Brian Clough suspeito da sua sexualidade.

A rápida ascensão e o declínio inesperado mexeu com Justin. O jogador viajou até a Nigéria, em busca de seu pai e de suas raízes, mas o encontro não foi como esperado. O pai de Justin não quis recebê-lo. Na volta para a Inglaterra, o calvário do jogador seguia, tanto que sofreu um acidente de carro. O refúgio para essa sequência de revezes veio na religião, Justin passou a frequentar a igreja, a pregar contra uma vida materialista, e a dizer que queria fazer gols para Deus, em forma de agradecimento.

No meio da narrativa da carreira de Justin, o documentário coloca pequenos flashes de programas televisivos ingleses, e recortes de jornais sensacionalistas. É nesse momento que o documentário começa a cruzar a história da homossexualidade na Inglaterra com a carreira futebolística de Justin. Por exemplo, o trecho de um programa falando sobre a AIDS, associando a doença à relação entre dois homens, ou trechos de diversos depoimentos de pessoas na rua também associando as doenças aos gays. Além de uma matéria falando sobre as leis inglesas, que só permitia a relação entre dois homens após os 21 anos de idade.

Em 1986, ainda vivendo o seu calvário, Justin viajou a Los Angels, nos Estados Unidos, para fazer uma cirurgia no joelho. Enquanto Justin rodava por vários clubes da Inglaterra, e buscava retomar a sua carreira desde a sua passagem no Nottingham Forest, o seu irmão mais novo, John trilhava uma carreira de sucesso no Wimbledon FC, chegando até ser convocado para a Seleção da Inglaterra. Toda a inveja que John sentia do sucesso do irmão quando este estava em ascensão, havia se tornado em indiferença e abandono, tanto que John barrou a contratação de Justin no Wimbledon, dizendo que o clube só tinha espaço para um Fashanu. A relação entre os dois irmãos estava abalada, e de certa forma, afetava diretamente Justin.

Em 1990, Justin buscou um novo começo no Leyton Orient FC (então na 3ª divisão inglesa). Naquela altura, ainda que não tivesse sido revelada, a sua sexualidade não era mais um segredo, por outro lado, Justin tinha muito medo do que poderia acontecer caso assumisse que era gay, e então, sempre negava. Segundo o seu agente: “Se ele tivesse assumido, quantos clubes teriam aceito ele? Quantos teriam contrato ele? NENHUM!”.

Em outubro daquele ano, Justin não aguentou a pressão e foi ao jornal The Sun, e declarou publicamente que era gay: “Estrela de £1m: EU SOU GAY”. Na matéria, Justin assumia sua homossexualidade, e revelava eu havia mantido relações homossexuais com um parlamentar do Partido Conservador Inglês (David Atkinson). Como mostra o documentário, a vida de Justin passou a ser explorada ainda mais pelos tabloides sensacionalistas e por programas televisivos de entrevista.

Capa do The Sun de 1990 (Reprodução)

O irmão de Justin até tentou dar mais dinheiro que o próprio The Sun, para evitar que ele se assumisse publicamente. John entendeu que ir a público e se assumir gay foi a forma que o Justin encontrou para atingir a sua carreira, que estava em plena ascensão. O relacionamento entre os dois literalmente acabou, John não queria ter a sua imagem associada a Justin, muito menos à sua homossexualidade.

Declarar-se gay nos anos 1990 estava longe de ser socialmente aceito, somado ao estigma da AIDS, e ao ambiente extremamente machista, conservador e hostil que é futebol, foi determinante para a carreira de Justin entrar em um declínio ainda maior, passando a jogar em ligas alternativas e de baixo nível técnico, como a Liga Canadense. O seu retorno para a Inglaterra só ocorreu em 1992, quando se transferiu para o Torquay United FC, um clube muito pequeno que disputava a quarta divisão.

Com o seu retorno a Inglaterra, Justin buscou ter mais visibilidade, e se aproximou da atriz inglesa Julie Goodyear, figura recorrente nos tabloides sensacionalistas. Assim, os jornais voltaram a retratar a sua vida. Para muitos, foi um namoro de fachada, uma forma que Justin encontrou para voltar a ser lembrado pela mídia. Para outros, era apenas uma relação de interesse entre os dois.

Em 1993, Justin foi jogar no Heart of Midlothian FC, da Escócia, mas foi uma passagem rápida e pouco memorável. Em meio uma campanha do Partido Conservador Inglês em favor dos valores da família e contra a homossexualidade, um parlamentar (Stephen Milligan) foi morto em seu flat em Londres. O corpo de Milligan foi encontrado nu, com uma meia cinta-liga, um cabo elétrico amarrado em volta do seu pescoço, um saco de lixo na cabeça e uma laranja em sua boca. Devido a morte suspeita, a polícia associou amor a uma relação sexual homoafetiva mal sucedida. Entre os suspeitos estava Justin, que já havia declarado ter relações com parlamentares do Partido Conservador.

Em meios as acusações, Justin se viu obrigado a negar tudo, inclusive que teve relações com David Atkinson, alegando que o The Sun, havia pago a ele pela matéria. Até mesmo a sexualidade de Justin foi colocada em questão, já que sua vida retratada nos tabloides parecia ser uma grande farsa. O Hearts demitiu o jogador, mesmo não tendo nenhuma relação com a morte do Parlamentar. A carreira de Justin estava praticamente no fim. O jogador rodou por mais alguns clubes, até finalmente se aposentar.

Em 1997, já aposentado, Justin se mudou para os Estados Unidos, para ser técnico do modesto Maryland Mania, em Baltimore. A notícia de que um técnico gay estava trabalhando com jovens jogadores chegou na cidade, e em 1998, Justin foi acusado por abuso sexual de um garoto de 17 anos. Segundo o documentário, Justin não suportou a ideia de ser encarcerado, como fora no orfanato, e voltou para Londres. Pouco tempo depois, foi encontrado enforcado em uma garagem, aos 37 anos. Justin deixou uma carta de suicídio em quem dizia: “Me dei conta de que eu havia sido condenado. Não quero mais ser uma vergonha para meus amigos e minha família.”. Pouco tempo depois de sua morte, a investigação concluiu que não havia provas que ligasse Justin a suspeita, mais tarde o caso foi abandonado por falta de provas.

O documentário Forbidden Games: The Justin Fashanu Story retrata a trajetória do primeiro jogador gay da história do futebol. A narrativa foca em três pontos decisivos que moldaram a toda a sua vida até sua morte: primeiro o fato de ser negro, depois a questão do abandono – esta é a mais explorada no filme todo, sendo um fator determinante para formar o seu caráter –, e por fim o fato de ser gay.

O filme também passa a impressão de que toda a vida e Justin foi retratada por tabloides sensacionalistas e programas de entrevista. Entretanto, o que escapa ao filme, é que a vida de Justin foi o futebol. Com o próprio jogador afirma no filme, o esporte era uma forma dele se expressar e se sentir livre, o futebol era sinônimo de liberdade. Sua vida acabou quando ele percebeu que não poderia mais ser livre, em campo, e enquanto gay.


Referências:
Filme: Forbidden Games: The Justin Fashanu Story (2017)
Justin Fashanu: jogador profissional de futebol, negro e gay!

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. “Me dei conta de que eu havia sido condenado”: a história de Justin Fashanu. Ludopédio, São Paulo, v. 116, n. 11, 2019.
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