A naturalização da barbárie: a cultura dos “parças” e a permissividade no âmbito hostil do futebol
Em março de 2024, acordei com o efervescer das prisões de Rivaldo Barbosa e dos irmãos Chiquinho Brazão e Domingos Brazão, todos envolvidos com os assassinatos da então vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018.
Outros possíveis nomes envolvidos com esse bárbaro episódio, ainda seguem sendo investigados, tendo no mesmo período sido cumpridos doze mandados de busca e apreensão. Dentro de uma perspectiva em que possamos pensar o Estado Democrático de Direito, esse é um ponto de avanço importante no que tange a resolução do caso das mortes de Marielle e Anderson. Como afirmou Marcelo Freixo, ex-deputado federal e estadual pelo RJ e atual presidente da Embratur, em declaração publicada no portal Uol, “[…] a prisão dos irmãos Brasão e do Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, deixa claro quem matou, quem mandou matar e quem não deixou investigar. Esse é um ponto importante para explicar porque ficamos seis anos de angústia”.
Tal situação nos permite refletir, também, outras formas de violência contra as mulheres que ultimamente estão sendo debatidas e que ocorreram no âmbito do futebol. Os casos das condenações recentes dos ex-jogadores Daniel Alves e Robinho, tal como a condenação, agora prescrita, do atual treinador e também ex-jogador Cuca, todos relacionados a crimes de estupro contra mulheres, nos permite refletir de várias formas como o mundo do futebol ainda se caracteriza como sendo um espaço culturalmente marcado pela naturalização do machismo, do corporativismo exacerbado (a camaradagem dos “parças”) e do preconceito como pontos normalizados.
Uma demonstração dessa cultura do “passar pano” no âmbito do futebol, são as declarações já dadas por Tite (ex-treinador da seleção brasileira e atual técnico do Flamengo, ambos no futebol masculino) ao abordar o caso Daniel Alves; Dorival Júnior (atual treinador da seleção brasileira de futebol masculino), notadamente ao falar sobre o caso Robinho; e Cuca (atual treinador do time masculino do Athletico-PR) ao problematizar o próprio caso.
Em todos esses ocorridos, como veremos, é de se destacar a priori como as narrativas se basearam na diminuição e relativização dos fatos acerca dos crimes cometidos, mesmo se tratando de violências sexuais explícitas sofridas por mulheres e julgadas pela justiça dos países em que ocorreram (Espanha, no caso Daniel Alves; Itália, no caso Robinho; e Suíça, no caso Cuca e companhia). O fato de serem três nomes de considerável relevância no âmbito do futebol brasileiro e/ou mundial, fez com que tais assuntos fossem ainda mais problematizados e refletidos no contexto social atual.
Iniciando a análise pelo “caso Daniel Alves”, o badalado ex-jogador da seleção brasileira e com passagens por clubes como Barcelona-ESP, Sevilla-ESP, Juventus-ITA, Paris Saint-Germain-FRA, Bahia, São Paulo e Pumas-MEX, foi condenado por um crime cometido em Barcelona no dia 30 de dezembro de 2022, após agredir sexualmente uma mulher de 23 anos no banheiro de uma boate. Para além de diversos absurdos, como o pagamento de uma fiança que garantiu a liberdade provisória ao atleta mesmo após ser condenado a 4 anos e meio de prisão, Daniel ainda contou com uma “ajudinha dos parças”, como Neymar da Silva Santos (ou, “Neymar pai”, pai do atleta Neymar Jr., ex-companheiro de Daniel Alves no Barcelona, PSG e seleção brasileira), que o emprestou 150 mil euros e colaborou para a diminuição de sua pena. Ao portal CNN Brasil, Neymar pai afirmou que
A família nos pediu ajuda. O Daniel não tinha dinheiro para se defender, e o prazo para o pagamento da defesa estava expirando. Pense bem, em nenhum momento, eu podia negar ajuda a um amigo que está tentando se defender de uma acusação
Neymar Pai confirma auxílio financeiro a Daniel Alves: “Ajuda a um amigo”
Mesmo com todas as evidências claras de um julgamento que publicamente explicitava as incoerências de Daniel Alves e sua culpabilidade no crime, Neymar pai estabeleceu que a “amizade” com o atleta valia mais que os parâmetros éticos que se relacionavam com o crime cometido pelo ex-lateral, destacando ser justificável o empréstimo de dinheiro que resultou no pagamento de uma taxa denominada pela justiça espanhola como “atenuante de reparação de dano causado”, o que consequentemente estabeleceu, também, o caminho para a diminuição da pena no veredito final posterior.
Essa permissividade no mundo do futebol é algo tão latente que, mesmo dentre aqueles que esperamos uma maior racionalização do olhar e, consequentemente, uma opinião mais crítica e com base social, vemos um mantimento desse mundo naturalizado e caracterizado pelo preconceito, solidificando uma estrutura machista e hostil que ronda os espaços desse esporte.
Um exemplo foi a declaração de Adenor Leonardo Bachi, o Tite, hoje treinador do Flamengo. Ao comentar o caso do ex-lateral, Tite destacou que só poderia comentá-lo “conceitualmente”, mesmo com a condenação de Daniel já efetivada:
Mesmo tendo se arrependido dias depois e explicitado que a comparação que fez do caso de Daniel Alves com o de Neymar era inapropriada, já que o ex-lateral foi efetivamente condenado e não se tratava apenas de uma acusação que poderia não ter fundamento, a fala a priori estabelecida por Tite explicita essa “autoproteção” existente no mundo do futebol, que faz com que muitos dos envolvidos no campo, além de pouco politizados, relativizem casos como esse e “passem pano” com base nas relações que vivenciaram. Foi fazendo referência a essas relações de trabalho, que Tite citou ter tido com Daniel, que o hoje treinador rubro-negro saiu pela tangente ao comentar o crime cometido pelo jogador. Nessa mesma linha, Dorival Júnior, treinador da seleção brasileira, também evitou aprofundar olhares sobre os casos e ainda disse, especificamente sobre Robinho, que o ex-atleta é uma “pessoa fantástica”.
Robinho foi um atacante de destaque, tendo logo em seu início de carreira alcançado grande visibilidade pelos dois títulos brasileiros conquistados atuando pelo Santos, em 2002 e 2004. Suas famosas pedaladas o levaram para diversos outros clubes de relevância nacional e mundial, como Real Madrid-ESP, Manchester City-ING, Milan-ITA, Guangzhou Evergrande-CHI, Atlético Mineiro, Sivasspor-TUR e Istanbul-TUR.
O atleta, que ainda disputou duas Copas do Mundo (2006 e 2010) pela seleção brasileira, tal como outras muitas competições, foi condenado a nove anos de prisão pela participação no estupro coletivo de uma mulher em uma boate de Milão, Itália, no ano de 2013.
![Robinho está preso após ser condenado por crime de violência sexual na Itália. Fonte: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2024/03/27/robinho-e-fotografado-em-penitenciaria-de-tremembe-defesa-esta-confiante-na-soltura-do-ex-jogador.ghtml Robinho](https://historiadoesporte.wordpress.com/wp-content/uploads/2024/03/image-6.png)
Em entrevista concedida antes de sua estreia como técnico da seleção brasileira no último sábado (23), onde venceu por 1×0 a Inglaterra em amistoso disputado em Wembley, Dorival Júnior também se esquivou de respostas mais concretas e profundas ao ser questionado sobre os crimes cometidos por Robinho e Daniel Alves. Assim como Tite, se tratando de Daniel Alves, Dorival se apegou ao passado em que trabalhou com Robinho e chegou a destacar ser o ex-atacante, agora um criminoso preso por estupro, uma “pessoa fantástica”, como podemos conferir em parte de sua declaração abaixo:
Visões como as de Tite e Dorival Júnior, dois dos últimos três treinadores da seleção brasileira, explicam muito do porquê o mundo do futebol brasileiro ainda é caracterizado por uma estrutura que naturaliza o machismo, os preconceitos e a desigualdade de gênero e racial. Mesmo daqueles que esperaríamos um posicionamento mais refinado e crítico, dada a experiência, formação e posição de liderança que ocupam, vemos análises rasas e “em cima do muro” acerca de temas que, moralmente falando, deveríamos sempre prezar por posicionamentos mais enfáticos e combativos.
As falas de Dorival, por exemplo, ao ignorar a condenação de Robinho e o referendar como uma pessoa “fantástica”, questionando inclusive se houve ou não crime (mesmo com todas as evidências já publicamente destacadas), explicitam mais que uma ausência de opinião sobre o tema, um posicionamento conivente com o caso em si (o que se torna ainda pior).
Outro caso que podemos citar como exemplo é o de Alexi Stival, o Cuca. Atual treinador do Athletico-PR, Cuca é um profissional multicampeão, tendo dentre outros títulos ganho uma Copa Libertadores da América e dois Brasileirões. Já comandou equipes gigantes do futebol nacional, como São Paulo, Grêmio, Botafogo, Flamengo, Fluminense, Palmeiras, Santos, Atlético Mineiro, Cruzeiro, dentre outras.
Quando jogador, Cuca esteve envolvido no caso de estupro de uma jovem na Suíça, em 1987, quando seu então clube (o Grêmio) disputava uma competição amistosa na ocasião. Depois de um mês detido no país, Cuca retornou ao Brasil após pagamento de fiança e, mesmo tendo sido posteriormente condenado pela justiça suíça a 15 meses de prisão, nunca cumpriu tal pena.
![Cuca foi um dos condenados no caso conhecido como “Escândalo de Berna”, por ter cometido o crime de violência sexual na Suíça. Fonte: Jornal Zero Hora, 01 de agosto de 1987. Cuca](https://historiadoesporte.wordpress.com/wp-content/uploads/2024/03/image-7.png?w=778)
Nos últimos anos, veio à tona no Brasil a condenação de Cuca. O treinador, a priori sempre se esquivando do tema, negava sua participação no caso. Quando assumiu o comando técnico do Corinthians em 2023, os debates acerca da temática se acirraram.
Após muita pressão, notadamente da torcida feminina do clube paulista e dos movimentos sociais, Cuca se demitiu do Corinthians com a promessa de provar sua inocência. Como, segundo a justiça suíça, sua condenação foi anulada devido a prescrição do crime, Cuca pôde retornar aos trabalhos e, finalmente, fez mea-culpa ao se pronunciar sobre o caso já como comandante do Athletico-PR:
A verdade é que, mesmo louvável e necessária, a necessidade de realização da declaração acima citada só existiu pela ausência de falas sobre o tema no passado de Cuca. Independente de arrependimentos e sem desconsiderar possíveis esforços atuais, o que se percebe na fala dos três treinadores é um modus operandi que vai ao encontro da ideia, já consolidada no mundo do futebol, de não se “tocar em feridas” em casos tão polêmicos como esses.
Assim, Tite, Dorival e Cuca se esquivaram a priori de temas que são muito caros e que, nos espaços que ocupam, cada vez mais socialmente são esperados posicionamentos transparentes e que respeitem minimamente os Direitos Humanos. Não se trata de estabelecer cancelamentos, mas lembremos que, mesmo prescrito, o crime em que Cuca esteve envolvido existiu. E que nos casos de Daniel Alves e Robinho, estamos falando de condenações mais recentes em que se foram comprovadas com evidências claras as violências que ambos cometeram.
O primeiro passo para a quebra de preconceitos no mundo do futebol e, por consequência, o estabelecimento pedagógico de um olhar que lute contra preconceitos como o machismo, racismo, lgbtfobia, dentre outros que ainda ocorrem no âmbito desse esporte, é o de se estabelecer a quebra dessa cultura dos “parças” e de se tocar na ferida em temas sensíveis que muitas das vezes são colocados para debaixo dos tapetes, mas que ocorrem quase que diariamente na sociedade e devem ser abordados como forma de se estabelecer caminhos de luta e combate.