12.2

A prática futebolística nos espaços populares e os “vazios” estatais

Enrico Spaggiari 7 de junho de 2010

É possível observar uma pluralidade espaços capitaneados pelo poder público na cidade de São Paulo, pautados por preocupações e objetivos dos mais diversos. Entre os muitos casos, é possível destacar os trabalhos realizados nos Clubes Desportivos Municipais (CDMs) da cidade de São Paulo, unidades descentralizadas do Município de São Paulo, de administração indireta, geridas por duas ou mais entidades civis sem fins lucrativos, regularmente constituídas, com o objetivo primordial de desenvolver atividade desportiva em imóvel público, especialmente cedido a título precário para esse fim. A administração é exercida por uma sociedade civil, regularmente constituída e registrada, integrada por membros das entidades administradoras, que compõem a Diretoria Gestora, o Conselho Fiscal e o Conselho Gestor, cujos membros são eleitos pelos sócios dessas entidades participantes e da população do entorno das instalações físicas dos CDMs. A manutenção dos Clubes Desportivos Municipais é de responsabilidade dessa diretoria eleita.

Trata-se de um importante equipamento esportivo e de lazer devido à carência de espaços na cidade de São Paulo para o exercício de tais práticas. Frente à expansão urbana e estruturação de serviços públicos, as áreas para a prática esportiva, parte delas não regulamentada para o seu uso, teriam sido os principais alvos de desapropriação e ocupação. Área pública gerenciada por um conselho local, os CDMs foram criados para oferecer atividades, equipamentos e estrutura esportiva; uma resposta, assim, à crescente diminuição de áreas públicas destinadas ao esporte e lazer. É permitida a entrada da população e o livre acesso às áreas comuns, sendo que o espaço não é cedido diretamente para uma liga ou um clube, mas sim para um conjunto de entidades que formam uma diretoria eleita de forma bienal. Em várias regiões da cidade, tal como ocorre na Cidade Líder, parte dos jogos e torneios de futebol de várzea, disputados majoritariamente aos finais de semana, ocorre nos campos de futebol (gramados ou de terra) dos CDMs.

Para além das iniciativas elaboradas pelo poder público, outros projetos idealizados por diferentes segmentos da sociedade ganharam força nos últimos anos, tal como a Fundação Gol de Letra, comandada pelos ex-jogadores Raí e Leonardo. Outra iniciativa, porém, vem chamando a atenção da opinião pública e de diversos atores da sociedade civil: a Escola Comunitária de Futebol, organizada pelo Grêmio Botafogo F.C., clube de futebol varzeano do bairro de Guaianazes, na Zona Leste paulistana.

Fundado pelo carioca Admardo Armond em 5 de abril de 1955, o Grêmio Botafogo Futebol Clube é, hoje, um dos clubes varzeanos mais conhecidos em São Paulo. Ao longo de sua trajetória, diversos títulos e conquistas ajudaram a construir a fama do Botafogo de Guaianazes no futebol varzeano paulistano1, desde o primeiro título em 1974, quando foi campeão do Torneio da Primavera da Copa Guaianazes. Hoje, sob a batuta de diferentes personagens, entres eles o presidente Itamar, o diretor das categorias de base Severo Ramos, o coordenador da escolinha de futebol Jurandir, o Botafogo vem ampliando seu espaço de atuação na Zona Leste paulistana.

De janeiro até junho de 2008, quase 1.000 crianças e jovens haviam se inscrito na Escola Comunitária de Futebol do Grêmio Botafogo F.C., todos entre 7 e 17 anos. Na proposta do Botafogo, a escolinha é um veículo de promoção da cidadania, educação e do esporte, com ênfase nos aspectos lúdicos. Novamente, o esporte aparece como um instrumento pedagógico privilegiado no plano educacional, voltado à transmissão de regras e valores para crianças e adolescentes, e como ampliação do acesso das camadas sociais excluídas às atividades educativas.

A concepção da escolinha como um espaço de socialização e de sociabilidade para crianças e jovens é defendida pelos diretores, para quem a escolinha do Botafogo é um importante espaço promotor de sociabilidade comunitária, que supera, inclusive, as diferenças socioeconômicas entre os diversos frequentadores. A escolinha proporciona um espaço para práticas sistemáticas e cotidianas do que se poderia chamar de convívio comunitário, onde são desenvolvidas uma pluralidade de usos coletivos para além das partidas de futebol: festas e reuniões de associações, recepção de políticos que visitam o bairro, etc. Não há dúvida, portanto, de que o futebol é um dos principais meios de fortalecimento dos laços de solidariedade entre os moradores do bairro.

Trata-se, ainda, de um projeto social que almeja também a formação de atletas. Se nas propostas dos projetos públicos a possibilidade de carreira é tida como exceção, na escolinha do Botafogo de Guaianazes um dos objetivos é a formação de jogadores. O que foi possível observar não somente na observação do cotidiano da escolinha, como também em alguns eventos que pude acompanhar. No contato com os pais, a possibilidade de profissionalização é o principal elemento destacado. Há, assim, uma preocupação com a promoção de oportunidades profissionais às crianças e adolescentes de Guaianazes e bairros próximos, neste sentido, pautadas por princípios de competitividade.

O Botafogo participa de campeonatos e torneios municipais, espaços importantes, pois permitem a visibilidade do trabalho dos alunos para um público específico: empresários, agentes, olheiros e dirigentes de clubes. O Botafogo foi campeão na categoria infantil em 2006 da Taça Cidade de São Paulo, organizada pela Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação (SEME), para categorias de base das equipes de futebol amador,torneio no qual a disputa se dá em diferentes categorias: a mais recente, criada em 2009,Pré-Mirim (sub-10), Mirim (sub-12), Infantil (sub-14) e Juvenil (sub-16).

Projetos como este, elaborado pelo Botafogo de Guaianazes, evidenciam a necessidade da ampliação do recorte de mapeamento dos projetos sociais esportivos existentes no Brasil. São iniciativas que procuram ocupar os espaços que deveriam ser contemplados pelo poder público, mas que este não consegue alcançar. Além disso, e o que acredito ser o principal, os trabalhos realizados nas centenas de associações esportivas espalhadas pela malha paulistana permitem problematizar alguns dos desígnios utilizados por formuladores das políticas públicas para justificar sua importância. Nesse sentido, é importante refletir sobre as contribuições e valores disseminados nestes projetos, porém valorizando o ponto de vista infantil, visto que os beneficiados por estes projetos, as crianças e jovens, não são consultados para os debates sobre este tema.


[1] No inicio da década de 1980, participou pela primeira vez do Desafio ao Galo, campeonato organizado e transmitido pela Rede Record. Em 1990, participou como convidado do 1º Campeonato Sulamericano de Futebol Amador. No ano de 1997, conquistou o título da 3ª Copa Kaiser/Seme de Futebol Amador, considerada a maior competição amadora no Brasil. Entre outros títulos, destacam-se ainda a Copa Ermelino Matarazzo de 1982, Copa Nelson Guerra de 1989, Campeão Varzeano de São Paulo – F.P.F em 1989 e 1990, Copa Black Power de 1990 e 1991, Copa A Gazeta Esportiva/Kaiser de 1993, Copa Botafogo/Kaiser de 1997, III Copa Metropolitana em 2006.
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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP. Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. A prática futebolística nos espaços populares e os “vazios” estatais. Ludopédio, São Paulo, v. 12, n. 2, 2010.
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