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“Acá no pasa nada”

A Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) realiza seus dois maiores torneios e que envolvem dezenas de clubes dos seus dez países associados (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela). Times de futebol cruzam fronteiras e viajam entre diferentes países para disputar suas partidas desde os primeiros meses de 2022. Com eles, torcedores levam suas cores e cantos para os mais diferentes cenários e estádios ao longo de toda a extensão da América do Sul. Alguns encontros nas arquibancadas e fora delas se dão em tom amistoso e de integração, mas em outros o que de pior que existe em cada sociedade ganha espaço e é possível materializar diante dos olhos preconceitos alimentados ao longo período de colonização europeia mas também pelo estranhamento que se dá diante de pessoas com corpos e formação cultural diferentes.

Só durante o mês de abril, imagens de televisão mostraram cinco ofensas racistas em arquibancadas de jogos oficiais do torneio continental promovido pela Conmebol. A execução de gestos que remetem a macacos é feita para pessoas afrodescendentes e, em lugar de ser entendido como piada de mal gosto, é ofensivo por negar a humanidade àqueles a quem se destina por afirmar claramente que são enxergados como seres inferiores por conta de sua origem étnica e cultural. Sem meias palavras: são atos racistas. O jornal O Estado de São Paulo, em matéria publicada em 29 de abril de 2022, afirma terem havido 27 casos de injúria racial contra torcedores brasileiros ao longo de seis anos de competição.

O racismo é um sistema que desvaloriza corpos e saberes de populações cujos desdobramentos justificam diversos tipos de opressão nos próprios países onde vivem os agressores, que podem ser também vítimas do preconceito nas localidades onde vivem. Esse sistema serve de base para instrumentalizar os mais diversos tipos de opressão, já que nega igualdade entre as pessoas e justifica uma hierarquização de tipos humanos e dá margem para exclusão e violências na área do trabalho, educação, saúde, segurança pública etc.

Voltando a jogos de futebol recentes dos torneios da Conmebol e sem cogitar gestos que não foram registrados ou mostrados pela televisão, foram vistas ofensas nos jogos entre Universidad Católica x Flamengo (realizada em 28 de abril, em Santiago), Corinthians x Boca Juniors (realizada em 28 de abril, em São Paulo), Emelec x Palmeiras (realizada em 27 de abril, em Guaiaquil), Estudiantes x Bragantino (realizada em 26 de abril, em La Plata) e River Plate x Fortaleza (realizada em 13 de abril, em Buenos Aires).

Torcedor do River mostra uma banana e provoca a torcida do Fortaleza em ato racista. Fonte: reprodução / Twitter
Universidad Católica
Um torcedor da Universidad Católica, do Chile, imitou um macaco para a torcida do Flamengo. Fonte: reprodução

No único destes jogos realizados no Brasil, o torcedor filmado em plena ação, o boquense Leonardo Ponzo foi preso e retirado das arquibancadas pela Polícia Militar paulista. Sua prisão foi registrada na Delegacia de Polícia de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância Esportiva (Drade) da capital. Mas no dia seguinte, representantes do Consulado Argentino na mesma cidade pagaram a fiança de R$3 mil e o liberaram. Os representantes do estado argentino alegaram que seu conterrâneo apenas se coçava na arquibancada. Uma simples visão do ato do torcedor deixa essa afirmação sob suspeita. Em seguida, Ponzo, usando suas redes sociais, fez a postagem que dá nome a esse texto. Nela, publicou uma foto sua com outro homem onde se lê “Acá no pasa nada” que poderia ser entendida como uma afirmação de que está tudo bem com ele, mas o meme de um macaco ao lado da mesma frase leva a outra compreensão, de que nada acontece como punição a insultos racistas como o praticado por ele em território brasileiro. Apesar de ser crime em território nacional.

Boca Racismo
Fonte: Reprodução/Twitter

A Conmebol é frouxa em relação a ações que inibam ou punam o racismo nos estádios. Suas punições são muito leves, os clubes são meramente multados. Para a Conmebol há um preço e é suficiente aplicar uma multa de três mil dólares e sequer seja cogitado banimento ou afastamento dos clubes. A edição 2020 do Relatório Anual do Racismo no Futebol registrou dois casos contra torcedores brasileiros (na Argentina e na Bolívia). Apenas durante o mês de abril de 2022, esses registros podem mais do que duplicar se comparados ao último relatório. 

Nos demais países da América do Sul, o debate sobre o tema é menos avançado que em terras brasileiras e isso seria o suficiente para que dirigentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e dos próprios clubes assumirem o protagonismo em ações efetivas para coibir a questão. Até mesmo porque, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população brasileira é negra ou descendente. 

Seria suficiente, mas os próprios dirigentes do futebol brasileiro são, em sua maioria, parte do problema. Apesar da legislação existir, federações, clubes e operadores do Direito não enxergam a gravidade da situação e isso pode se dar por serem homens brancos em sua maioria cuja formação se deu ainda sob influência do mito da Democracia Racial, mas também por falta de empatia. Assim como para os agressores e para a Conmebol, talvez os corpos, saberes e dores dos negros e descendentes não sejam tão relevantes.

A oportunidade de ser protagonista nesta questão está nas mãos da CBF e dos clubes, uma chance de servir de modelo até mesmo para federações europeias com suas ações de antirracistas que são tão midiáticas quanto ineficazes. A confederação brasileira anunciou um seminário em junho de 2022 para discutir ações e endurecimento das punições. Talvez se deva à presença do primeiro mandatário da CBF a pertencer aos 54% citados acima. “Hay que pasar algo acá”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Vicente Magno Figueiredo Cardoso

Um jornalista que leva seu bairro de origem, Bangu, do subúrbio carioca para todos os cantos. Além de ser um devotado amante do futebol e do samba. Já andou no universo torcedor de França e Estados Unidos, além do brasileiro.

Como citar

CARDOSO, Vicente Magno Figueiredo. “Acá no pasa nada”. Ludopédio, São Paulo, v. 155, n. 17, 2022.
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