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As mulheres que fazem a Champions Ligay

Maurício Rodrigues Pinto 15 de janeiro de 2019

Nos dias 02 e 03 de novembro de 2018, as dependências do Nacional Atlético Clube, tradicional clube de futebol paulistano com sede no bairro da Barra Funda (próximo aos Centros de Treinamento de São Paulo e Palmeiras), foram tomadas por um público diferente daquele que frequenta os jogos de futebol espetacularizados. Estava sendo realizada a terceira edição da Champions Ligay, o torneio organizado pela LiGay Nacional de Futebol (LGNF), que reuniu 16 times de futebol soçaite (ou futebol de 7) de diferentes partes do Brasil formados exclusivamente por homens com orientação sexual gay ou bissexual.

Para uma visão mais aprofundada sobre o que foi essa terceira edição da Champions Ligay, recomendo a leitura do texto “A Champions Ligay e a colonização do futebol”, escrito pelo colega Wagner Xavier Camargo e publicado aqui no Ludopédio[1], que, além de trazer uma narrativa mais detalhada sobre os jogos e o crescimento do torneio ao longo das suas três edições, reflete também sobre o fato de a Champions Ligay ser um espaço apropriado majoritariamente por “homens [cisgêneros] gays brancos e definidos”.  Mesmo representando uma importante desestabilização do ideal reiterado de que o futebol seria um “jogo pra macho”, é interessante pensar que o processo de crescimento da visibilidade e do aumento da competitividade da Champions Ligay esteja também relacionado a um processo de homogeneização dos corpos.

Ainda assim, na minha primeira vez em uma Champions Ligay, além da atmosfera animada, marcada por jogos bastante disputados e as músicas de divas pop que tocavam em alto e bom som, um dos aspectos que mais me chamou a atenção foi a participação das mulheres nos jogos. Ainda que o torneio seja disputado exclusivamente por homens, as mulheres marcam a sua presença de forma efetiva tanto nas torcidas, como na arbitragem e, principalmente, com uma grande representatividade nas comissões técnica dos times participantes, o que sugere que este universo é mais acolhedor à presença e ao protagonismo das mulheres.

A seguir, apresento histórias contadas por algumas dessas mulheres com quem conversei durante a Champions Ligay de São Paulo. Nas suas falas, além de elas narrarem suas trajetórias no futebol em meio a um contexto de machismo estrutural e as suas impressões acerca da experiência de participar daquela competição, elas trazem também pontos de vista interessantes sobre as características que diferenciariam o “futebol gay” do “futebol hétero”.

Luciana Aureliano, árbitra. Foto: Maurício Rodrigues Pinto.

Luciana Aureliano – juíza de Futebol de 7

Eu jogava futebol há uns 15 anos, mas como eu fui ficando mais velha e não tinha mais como seguir na carreira, eu parei. Aí eu tinha que trabalhar e uma forma de continuar no meio do futebol seria essa, fazendo um curso e me tornando árbitra. Já tem 11 anos que eu sou juíza, que eu tô nessa luta. É um esporte bonito, porém a gente deixa a família em casa nos finais de semana, sábado, domingo, feriados e é o dia todo… A gente mal vê a família, então tem de gostar muito do que faz.

Direto tem situação de preconceito. Digamos que todos os dias. O único jogo em que eu não fui xingada, acho que foi hoje, aqui. Me mandam lavar louça, falam que lugar de mulher é na cozinha, fora tentativas de agressão, mas, graças a Deus, nesses 11 anos eu nunca fui agredida. Chutaram bolas em mim, mas nada muito intenso… Mas o preconceito é direto, a gente sofre preconceito demais. E pra seguir tem que gostar, tem que gostar mesmo! Não adianta você vir fazer o trabalho porque você tá recebendo um dinheiro. Você tem que fazer uma coisa por que é feliz. Agora eu tô me formando em Educação Física, que não é uma profissão que tá em alta, mas eu tô fazendo porque eu quero. Arbitragem é a mesma coisa. Eu gosto muito, entendo muito de futebol, já joguei dos meus 10 anos de idade até os 20 anos. Hoje tenho 30, faz uns 10 anos que eu parei, então tem de gostar muito, fazer com amor.

Sobre ser juíza na Champions Ligay, eu achei interessante que o pessoal é bem raçudo, joga legal, joga limpo! A diferença que dá pra ver é que no futebol jogado pelos héteros, eles são muito maldosos e desonestos. E aqui não, você vê honestidade e vê o pessoal jogando tão sério quanto os héteros. Outra diferença também é que tem algumas coisas que o pessoal aqui não entende. Por exemplo, tem um contato, jogo de corpo, eles acabam querendo a falta e a gente fala “Calma, gente! Futebol é contato. Tem jogada que vocês vão se trombar e é normal…”. Eles acabam pedindo faltas por causa disso e essa é uma das diferenças. Mas eles jogam tão firme e bem quanto os héteros.

Na verdade, eu só soube hoje que eu ia apitar em um torneio jogado por gays. Me mandaram uma escala com tantos jogos da “Champions Ligay” e eu pensei que estava escrito errado. Quando eu cheguei aqui e vi essa alegria toda, o pessoal todo colorido, eu achei muito divertido! Gostei, tô amando, hoje é o único dia em que a gente tá apitando sossegado, sem ninguém xingando a gente… É um pessoal muito divertido, alegre, que alegra qualquer ambiente e eu gostei muito de participar!

Fabíola de Araujo, treinadora do Bharbixas F.C. Foto: Maurício Rodrigues Pinto.

Fabíola de Araujo, treinadora do Bharbixas F.C. (MG)

Desde novinha eu sempre gostei de futebol. Eu jogava na rua, sempre acompanhei, sempre fui ao campo. Inicialmente eu queria ser jogadora, mas só que com todo o preconceito que sempre existiu, meu pai nunca me apoiou, nunca me deixou jogar também. Entrei na faculdade de Educação Física para ser treinadora, mas lá eu tive várias portas fechadas. Vários professores falaram: “Olha, no futebol não tem espaço pra mulher”. Várias vezes falaram isso, mas eu continuei jogando futsal.

Assim que eu terminei a faculdade, fiz mestrado em futsal e aí eu comecei a treinar um time de futsal feminino da UFMG. Foi quando um jogador do Bharbixas entrou em contato com uma das meninas do time: “A gente precisa de treinador” e ela respondeu: “Uai, chama a Fabíola”. E aí, os meninos me fizeram um convite e eu aceitei o desafio. Na época, futebol de 7 não era tanto o meu objeto de estudo, mas dei a cara, fui estudar, fui pegando alguns conceitos de jogos coletivos e aplicando, fui pegando mais algumas coisas e acrescentando. Foi assim que eu criei o nosso estilo de jogo. Foi aí que eu entrei no futebol de 7 com o Bharbixas. Além dos Bharbixas, eu sigo treinando o time de futsal feminino da UFMG e tem uma Atlética na UFMG, em que eu treino os times masculino e feminino.

A gente treina uma vez por semana, por quatro horas. Muito tempo de treino, mas é só uma vez por semana, porque todo mundo tem uma vida fora. Não é fácil treinar uma equipe muito heterogênea, com jogadores que estão aprendendo a jogar aqui futebol, porque demanda muito tempo, muita disponibilidade dos jogadores. Agora tem uma vantagem muito grande, porque os meninos que não tinham experiência – que são a maioria do time – têm uma dedicação enorme. Além de treinarem, veem vídeos, me mandam mensagens, perguntam: “O que eu posso assistir que vai me ajudar?” E aí eu passo algumas informações, faço um vídeo pra eles. Na verdade, a receita foi a de me manter muito próxima deles, me disponibilizar a conversar com eles tanto no momento dos treinos como também fora dos treinos, além da paciência. Porque eu tive jogador aqui, convocado, que nunca em toda a vida tinha encostado o pé na bola e veio começar a jogar aqui com o time. Então, é preciso saber respeitar o tempo de evolução de cada um. No momento do treino, tenho que pensar que existem algumas dessas pessoas e fazer algumas atividades que sejam estimulantes para elas e para aqueles que já estão há muito mais tempo ligados ao jogo. É um desafio enorme, não é fácil, mas se tiver um pouquinho de paciência, de empatia também, a gente consegue!

Foi maravilhoso receber o convite pra treinar o Bharbixas, porque além de também ser LGBT, porque eu sou lésbica, eu achei uma oportunidade incrível de contribuir pra causa. Além de serem pessoas maravilhosas. A nossa convivência é maravilhosa, eles me abraçaram de um jeito muito bom, então, foram somas de coisas boas.

Eu nunca vi nada como a Ligay. Não só a Champions Ligay, mas todos os campeonatos que eu tenho jogado com o Bharbixas é um clima maravilhoso! Porque existe uma competição, só que existe muito amor, o que é uma coisa que você não vê em nenhum outro campeonato. Eu que tô no esporte já há algum tempo, como atleta e agora como treinadora e nunca vivenciei algo assim. É algo de se apaixonar mesmo, de não querer deixar de estar aqui. Por mais que às vezes seja cansativo, corrido, esse clima aqui é tão bom que eu acho que todos os esportes, todas as modalidades tinham que ter uma vivência, passar por aqui, para entender o que é realmente o espírito competitivo, de equipe, de fair play, porque não há nada igual a isso aqui. É diferente, o clima é totalmente diferente. Existe respeito acima de qualquer outra coisa, é algo que você não encontra em nenhum outro torneio. É maravilhoso!

Cristina Buzelim e Ravana Herrera, treinadora do Manotauros F.C. Foto: Maurício Rodrigues Pinto.

Cristina Buzelim e Ravana Herrera, treinadoras do Manotauros F.C. (MG)

Cristina: “Eu sempre gostei muito de esporte. Fui campeã brasileira de atletismo e pratiquei muito esporte durante toda a minha vida. Eu tenho duas filhas: uma não quer saber de esportes de maneira alguma. Tentei, levei pra campeonato, mas ela não gosta. Já a Ravana gosta, sempre gostou e me acompanhou nos jogos. Ela foi goleira do primeiro time que eu treinei. E aí nós fomos crescendo como equipe, e, depois que ela saiu do ensino médio, ela entrou na faculdade, se formou, e nós continuamos a trabalhar na escola. Eu entrei na faculdade de Educação Física com 54 anos por insistência dela. Ela fez a minha inscrição na faculdade, eu passei, fiz o curso e, depois que eu me formei, a gente começou a trabalhar mais com equipes de escolas, que disputam campeonatos escolares. É muito bom trabalhar junto com ela, a gente se entende bem. De vez em quando tinha uma divergência ou outra, mas agora não, agora nós sabemos exatamente o que queremos, a gente conversa muito, discute. Já o meu marido e a outra filha ficam em casa e não estão nem aí, mas não tem problema, porque eles sabem que é o nosso trabalho.

Nós já vivemos muitas, muitas situações de machismo. Nós entrávamos em campeonato e o pessoal não aceitava. Lá em Belo Horizonte, na verdade, nós somos as primeiras treinadoras de futebol. No Estadual Central, que é um colégio muito famoso lá em BH, havia muito preconceito. Mas a gente foi ganhando credibilidade, o time foi crescendo, melhorando, ganhando campeonatos e eles não tinham mais como questionar se tinha resultado, foi quando nós começamos a despontar melhor, a construir uma trajetória”.

Ravana: “A gente trabalha com futebol há 11 anos. A gente trabalha em escola, com o futebol escolar. Fomos ganhando experiência, trabalhando, estudando, correndo atrás de curso, faculdade, fomos nos desenvolvendo pra poder trazer o melhor aos atletas. É amor, é paixão pelo esporte!

Em 2017, quando a gente treinava uma equipe escolar, fomos jogar com o outro time gay de Belo Horizonte, os Bharbixas. O Manotauros foi fundado na mesma época. Um jogador que tinha saído do Bharbixas nos convidou e nós aceitamos ser treinadoras do Manotauros. Quando a gente recebeu o convite, não teve aquela coisa de perguntar se eles eram gays ou não. Nós amamos o futebol, então, independente do que for, se a gente receber o convite a gente vai estar junto. Ficamos muito honradas de receber o convite. Eu brinco com os meninos: “Gente, eu vesti uma camisa que não é minha. Eu luto por uma causa que não é minha, mas eu amo vocês, eu respeito vocês, então, a gente tá junto até o fim!”

Muitos já jogavam bola antes, mas por causa do preconceito eles paravam e alguns nunca tinham jogado uma competição, só brincavam na rua ou com os amigos. Então, é possível ver a diferença em termos de fundamentos. Você fala: “Toca rápido, um, dois! Passa, afunda…” Uma palavra ou outra de fundamento, que faz parte da prática do futebol no dia a dia, alguns ainda não pegavam, não conheciam. Mas agora com os treinos, uma vez por semana, eles já têm o entendimento”.

Cristina: “A gente está no time desde o início de 2018, já participamos de quatro campeonatos. Quando a gente vê de fora, o gay é muito discriminado, passa por um monte de situações. Mas quando você está dentro, todo mundo nos conhece, nos respeita, os jogadores dos outros times vêm nos cumprimentar com o maior carinho. Hoje eu falei com os meninos do time que eles são seres humanos, têm uma opção sexual, mas isso não muda quem eles são, a essência deles. E dentro da equipe, estando dentro desse mundo deles, do que eu vejo de perto, além do carinho, a gente aprende muito, porque eu também tenho curiosidade. Eu pergunto como ele mudou, porque ele resolveu se assumir, se ele já pegou menino…

Nos jogos, nos treinos não existe diferença entre héteros e gays. A diferença é a discriminação que eles recebem quando vão jogar num time hétero. Mas eles jogam muita bola, os caras não dão mole, entram arrebentando! São muito bons, excelentes. Eu acabei de chamar a atenção deles, porque a gente perdeu um jogo que não poderia ter perdido. Levei eles pra um cantinho, fomos conversar e eu disse: “Vocês são viados, mas podem deixar de frescura! Vocês têm de fazer a coisa certa! A opção sexual não faz mudar o que vocês vieram fazer, que é jogar bola, então vamo fazer direito…” No jogo seguinte eles deram o sangue e nós conseguimos ganhar. Mas todos eles são excelentes, pessoas fantásticas, tanto os jogadores do Manotauros, como os jogadores dos times adversários. São carinhosos, vêm e cumprimentam com muito respeito, mesmo quando perdem. São adversários ali no campo, mas o respeito é muito grande.”

Alessandra Huff, treinadora do Magia S.C. Foto: Maurício Rodrigues Pinto.

Alessandra Huff, treinadora do Magia Sport Club (RS)

A minha relação com o futebol vem desde pequena, sempre tive gosto pelo jogo. Eu tenho irmãos homens e sempre fui influenciada pela minha família para estar no meio do futebol. Sempre fui a estádio assistir jogos do Grêmio e isso foi só aumentando. Quando entrei na faculdade de Educação Física, eu decidi que queria seguir nisso como uma carreira e me tornei treinadora formada pelo Sindicato dos Treinadores do Rio Grande do Sul.

A entrada nessa carreira foi muito difícil, tomei muitos “não” por ser mulher ou porque eu não saí com determinada pessoa. A minha entrada no futebol aconteceu por outro esporte, eu comecei a treinar um time de handebol, que me apresentou a um time universitário de futsal e foi assim que eu comecei a trabalhar com futebol. Óbvio que eu encontro preconceito, principalmente em competições, mas tem sido muito tranquilo, graças a Deus. Além do Magia, hoje eu trabalho com um time hétero da cidade e também na escolinha oficial do Santos, que tem lá em Porto Alegre, com as categorias de base.

Em outubro de 2017, eu conheci o presidente do Magia em um curso de futebol em Porto Alegre. Era um curso em que se falava sobre o preconceito contra os negros no futebol, contando a história da Liga da Canela Preta, que foi uma liga criada no século passado pra que os negros pudessem jogar futebol, já que eles eram proibidos de jogar com os brancos. E aí o presidente do Magia levantou a mão e pediu a palavra. Ele disse que 100 anos depois ele estava vivendo o mesmo preconceito que os negros viveram. Daí eu me interessei pelo projeto e no final do curso, eu o chamei pra conversar e na mesma noite fui ver um jogo-treino do time, conheci os meninos e desde então estamos juntos. Já participei das três edições da Champions Ligay, e em abril de 2018 o Magia sediou a Ligay em Porto Alegre e eu fui uma das organizadoras junto com o presidente, o Hernan. Essa tem sido uma experiência incrível pra mim!

Lidar com a heterogeneidade é difícil, não só com eles, é difícil em qualquer vertente que eu trabalhe, tanto com os héteros como com as crianças. Mas aqui, com eles, as dificuldades maiores são porque eu me identifico com eles. Eu sou hétero, mas eu me identifico na questão do preconceito. Eu sofri muito preconceito para estar no futebol e eles sofrem muito preconceito por jogar futebol. Então, além de cuidar do lado profissional, eu criei um vínculo afetivo muito forte com eles. Então, dependendo da situação e da piada, se alguém fala um “viado” de uma forma um pouco diferente, às vezes eu me ofendo mais do que eles. Eu tomo muito mais as dores e fico muito mais de cara do que eles com atitudes preconceituosas. Talvez seja por eles estarem mais acostumados, não sei explicar a razão, mas, às vezes, eu tomo muito mais as dores de algumas coisas por eles do que eles mesmos. Então, hoje a minha maior dificuldade com eles é essa, separar os sentimentos do trabalho.

O nosso goleiro que veio pra cá, por exemplo, nunca havia jogado uma competição. Ele tem 50 anos, negro, já passou por muita coisa na vida, estava inseguro se poderia realmente render o que a gente esperava dele. Mas veio, agradeceu a oportunidade que demos pra ele e jogou muito aqui, foi maravilhoso. Pra ele foi e tem sido uma experiência única essa de estar aqui com a gente. O Magia faz jus a palavra diversidade. A gente tem negros, brancos, gordos e magros, gente com uma condição financeira um pouco melhor, gente de condição vulnerável, a gente tem de tudo um pouco.

Na primeira Champions Ligay,no Rio de Janeiro, eram oito times participantes. Na segunda, em Porto Alegre, foram 12 times e agora aqui em São Paulo tem 16 times. Eu vejo um crescimento muito grande do futebol e dos clubes, todos os times evoluíram, essa edição do campeonato foi muito mais disputada. No Brasil, estão sendo criados times visando participar desse campeonato e através da Champions Ligay surgiram campeonatos regionais, como a Copa Sul, a Copa Sudeste, então o movimento tá crescendo e se profissionalizando cada vez mais. Hoje eu brinco com os meus meninos que antes eles eram atletas de fim de semana. Hoje não, hoje são atletas amadores. “Hoje, vocês têm duas profissões. A profissão de vocês, que vocês exercem no dia a dia e a profissão de atletas amadores. Vocês são jogadores amadores. Vocês investem dinheiro, viajam, competem, treinam duas vezes por semana, vocês têm uma vida paralela de atleta”.

Eu acho que na Champions Ligay existe mais lealdade e mais respeito que em competições héteros. Aqui no futebol gay, tu vê mais honestidade nos jogo. Às vezes, a bola bater na mão de alguém e o cara reconhecer que a bola bateu na mão dele. Outra situação: em um campeonato hétero, quando um time tá ganhando um jogo, ele abusa, faz catimba, enrola no tempo. Já o time gay não faz isso, ele continua jogando, porque ele quer jogar bola. Não importa se ele tá ganhando ou se tá perdendo. Não existe a catimba, aquela malandragem como existe no futebol hétero.

Isis Reis, treinadora do Sereyos S.C. Foto: Maurício Rodrigues Pinto.

Isis Reis, treinadora do Sereyos Sport Club (SC)

Agora em janeiro está completando um ano que eu sou técnica do time e tô muito feliz porque mantivemos o terceiro lugar que havíamos conquistado na Champions Ligay de Porto Alegre. O futebol sempre foi presente na minha vida, eu jogo futebol desde os 14 anos, já joguei futsal por times da cidade e recentemente nós montamos o time das Sereyas e lá eu sou uma das jogadoras.

Eu não sou uma profissional de Educação Física, faço Engenharia, mas eu conheci os meninos em uma festa, e o Ted, que é o presidente do time, veio e disse: “Isis, você conhece alguém pra ser técnica do time?” Eu fui atrás, porque eu conheço um monte de meninas da Educação Física, mas ninguém queria vir treinar o time deles aos domingos. Faltava um mês pra Copa Sul, lá em Floripa, e daí eu falei: “Eu vou lá, ajudo vocês”. E eu gostei, porque pela primeira vez eu tive contato com um time como técnica, e a gente acabou sendo vice na Copa Sul, já no primeiro campeonato. Mas antes de decidir ser a treinadora do time, vou te confessar que eu achei que eles não jogassem nada. Eu pensei: “Ah, deve ser uma coisa da boca pra fora o time. Os caras são das baladas, das festas, não devem levar a sério…” Eu falei pro Ted: “Olha, eu vou ver um treino de vocês, vou ver como é”. Aí quando eu fui e vi os meninos jogando, pensei: “Cara! Acho que dá pra brincar”. Individualmente eles eram muito bons, só que coletivamente o time era péssimo. Eu vi que eles jogavam bem, só precisavam de um pouquinho de técnica, um pouco de tática de jogo e de posicionamento. E foi assim, eu tentei consertar esses problemas, mostrei vários vídeos pra eles, fiz vários treinos que eu já tinha feito. Estudei bastante também, peguei material com amigas e aí eu fui conseguindo consertar pro primeiro campeonato. Foram quatro treinos que eu consegui arrumar o que dava, e a gente foi vice-campeão. “Poxa, se a gente continuar, eu acho que a gente pode chegar naquela Ligay e fazer alguma coisa”. E a gente conseguiu terceiro lugar aqui de novo.

No time tem pelo menos três meninos que já jogaram em times profissionais, mas têm também alguns meninos que não tiveram muito contato com o futebol, que veem no Sereyos uma oportunidade de se sentir à vontade pra jogar, porque passaram por muitas situações de preconceito na infância. Existem essas diferenças, eu pego desde rapazes que já jogaram em nível profissional e rapazes que estão entrando no jogo . Então, eu tenho que fazer um treino que possa incluir todo mundo e, aos poucos, muitos deles já estão no nível quase ali dos profissionais. Essa inclusão também faz parte pra um crescimento deles.

Em questão de preconceito, a gente já sofreu uma vez.  Eu marco muitos amistosos com times héteros lá em Floripa, para os meninos treinarem. Uma vez não foi nem da parte do time, o time foi super de boa. Mas a torcida atrapalhou muito, começaram a xingar muito e desestabilizou total. Esse foi o único momento triste que a gente passou.

Eu achei sensacional participar do campeonato. O campeonato gay tem um diferencial em relação aos outros campeonatos, inclusive os femininos. Porque o feminino pegou uma coisa do homem meio machista de ser meio briguento em jogos. Nesse campeonato é muito legal, porque a gente acaba os jogos, perdendo ou ganhando, todo mundo se abraça. No campo, durante o jogo, é super competitivo, mas quando tá fora todo mundo se diverte e isso não tem em nenhum campeonato heterossexual de homens e das meninas, o que eu acho o máximo.


[1] CAMARGO, WAGNER X. “A Champions LiGay e a colonização do futebol”, de 11/11/2018. Disponível em: <https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/a-champions-ligay-e-a-colonizacao-do-futebol/>.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. As mulheres que fazem a Champions Ligay. Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 11, 2019.
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