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Bangu e a fábrica: um casamento (in)feliz?

Hoje vamos discutir algo que sempre esteve presente nos meus estudos: a relação futebol/fábrica. Diante tal relação me pergunto: até que ponto as indústrias interferiam no cotidiano das agremiações que se constituíram relacionadas ao ambiente fabril?

Para tentar responder uma pergunta de tamanha complexidade e, quiçá, pretensão, nos atentamos a fundação do Bangu Athletic Club, o primeiro clube operário da cidade, que criou um modelo que seria, ao longo dos anos, adotado por muitos de seus pares.

Fundado no dia 17 de abril de 1904, o Bangu Athletic Club teve estrangeiros entre seus precursores1. Chegados à cidade ainda em fins do século XIX, para trabalhar para a Companhia Progresso Industrial, que administraria a fábrica de tecidos fundada no bairro, em 1893, um grupo de técnicos ingleses mostrou-se disposto a criar uma agremiação nos moldes daquelas que existiam em seu país.

A princípio, os diretores da empresa não pareciam dispostos a apoiar tal iniciativa; o administrador da fábrica, Sr. Eduardo Gomes Ferreira, alegava ser contra qualquer tipo de jogo. Os ingleses, porém, não esmoreceram e continuaram a pedir recursos para a fundação do clube2. As restrições só chegariam ao fim com o apoio do novo administrador, João Ferrer, que enxergava com bons olhos a criação de uma agremiação.

Campo do Bangu.

A necessidade de apoio por parte da fábrica fez com que os fundadores do clube ampliassem o intuito inicial, atendendo aos interesses da empresa3. Na própria ata de fundação percebemos que o secretário ficou incumbido de divulgar a criação da agremiação, “convidando os rapazes de entrar como sócio”, o que já expressava a possibilidade de aceitação de trabalhadores das mais variadas origens4. O próprio valor para associar-se ao clube seria um importante fator para a sua popularização: 2$000 de joia e uma mensalidade de 1$000, sendo que o salário dos operários ia de 94$800 (no setor da fiação) até 260$640 (no setor de acabamento)5. O clube desde sua gênese indicava que pretendia agregar o maior número de funcionários.

Com o vínculo instituído, a fábrica criou elementos necessários para o desenvolvimento da agremiação, entre eles a construção de um campo para a prática do esporte; de frente para a Estação de Ferro, em linha paralela com a Rua Estevão, feito com grama inglesa retirada do próprio jardim da companhia, sob as ordens do administrador da fábrica João Ferrer.

A solicitação de recursos era encaminhada ao Presidente Honorário do clube, cargo definido claramente no artigo quatro em seus estatutos – “o presidente honorário do club sempre será o diretor gerente da Companhia Progresso Industrial do Brasil, que será consultado em todas as resoluções tomadas pela diretoria, estranhas a estes estatutos”6. Isto é, o administrador gerente avaliava e designava os recursos necessários para o bom andamento do clube. Suas ações interferiam diretamente na política do grêmio, principalmente no controle e na composição de seus quadros e dirigentes7. Vale salientar que qualquer obra, ou evento realizado pelo clube, por ter sua sede no terreno da companhia, precisava de autorização prévia da fábrica, até mesmo jogos e torneios, como a disputa da Taça Ferrer, em que o administrador impôs o número de competidores, data e condição de participação: “só poderá tomar parte neste torneio, jogadores que são empregados da Cia. Progresso Industrial do Brasil”8.

Sede social do clube.

Na verdade, os custos que exigia a prática do futebol, nos moldes desejados pela LMSA9, tornaram importante a participação financeira das empresas para a manutenção da atividade. Assim:

A direção da fábrica passava a subsidiar as atividades do clube; por exemplo, cedendo um terreno de propriedade da empresa para a instalação do campo de futebol e a construção da sede social ou, então, contribuindo para o pagamento de aluguéis. Mensalmente, ela oferecia ao clube uma quantia em dinheiro, a fim de complementar seu orçamento, que incluía despesas com conservação e limpeza da sede social e do campo, pagamento de impostos, energia elétrica, limpeza dos uniformes, transporte de jogadores e outras. Quanto ao material esportivo, a fábrica poderia fornecer desde as camisas até a bola e as chuteiras10.

Como se pode observar, naquele momento, a participação do Bangu, assim como a sua própria criação, só foi possível devido ao apoio dado pela Fábrica. Sem ajuda financeira, seria impossível ingressar no principal campeonato de futebol do período. Assim como desfrutar da estrutura física e dos benefícios que o jogador-operário adquiria.

__________

[1] Sua primeira diretoria foi composta por: João Ferrer (Presidente Honorário), Willian French (Presidente), Thomas Donohoe (vice-presidente), Andrew Procter (Secretário e tesoureiro), José Villas Boas, James hartley e José Soares (Conselho Fiscal), John Stark (Capitain of Football), Thomas Hellowell (Capitain of Cricket) e Frederick Jacques (Capitain of Lawn Tennis).

[2] SILVA, G. A. A. Bangu: a fábrica e o bairro. Um Estudo Histórico (1889-1930). Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1985.

[3] PEREIRA, L. A. M. Footballmania: uma história social no Futebol do Rio de Janeiro: 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.p.32.

[4] Livro de Atas das Sessões da Diretoria do Bangu A.C., 17 de Abril de 1904.

[5] MALAIA, J. M. Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). 2010. 489f. Tese (Doutorado em História Econômica) – Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

[6] Diário Oficial, 16 de fevereiro de 1918 p. 2510. Extracto Estatutos do Bangu Athletic Club.

[7] Acta da Sessão da Diretoria do Bangu Athletic Club de 28 de fevereiro de 1909.

[8] Acta da Sessão da Diretoria do Bangu Athletic Club de 21 de março de 1911.

[9] Liga Metropolitana de Sport Athleticos.

[10] ANTUNES, F. M. R. F. O futebol nas fábricas. Revista USP: dossiê futebol, São Paulo, n. 22, p. 102-109, jun.-ago. 1994. p.105.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Nei Jorge dos Santos Junior

Professor, suburbano de Campo Grande e botafoguense. Doutorando em Lazer pela UFMG e mestre em História Comparada na UFRJ.

Como citar

SANTOS JUNIOR, Nei Jorge dos. Bangu e a fábrica: um casamento (in)feliz?. Ludopédio, São Paulo, v. 36, n. 1, 2012.
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