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Bola com feitiço, baliza com enguiço – Ouidah, Benin

Aos 84 minutos, a selecção do Benim estava empatada a zero com a do Gana num jogo em que só a vitória lhe interessava para a qualificação para o Copa da África (CAN) 2010. Constant Danvikpenon, 41 anos, feiticeiro da selecção, já tinha tentado fazer vários truques para que a bola entrasse na baliza dos ganeses; com a ponta de um pequeno corno castanho, espalhou um líquido preparado com ervas locais nos bancos, no chão e nos cacifos do balneário dos adversários, espalhou uma solução à base de óleo vermelho no relvado e queimou folhas e paus numa casca de árvore sagrada para dar chama à sua equipa. Nada resultou. “Decidi utilizar o meu truque mais forte”, diz. Tira do bolso o artefacto – um osso de leão, recheado com uma massa castanha, com dois dentes atados na parte de trás e com uma agulha pendurada. “Digo as palavras mágicas e o nome do guarda-redes, levo a agulha à boca e espeto-a nesta terra que recheia o osso. Se eu quiser que o guarda-redes erre, o guarda-redes erra. Se eu quiser que o guarda-redes parta o pé, ele parte o pé. Se eu quiser que o guarda-redes morra…ele morre”. Poucos minutos passaram após o truque e, diz Constant, o Stade de la Amité pulou de alegria para festejar o golo do Benin. O feiticeiro sorri, orgulhoso: “Eles trouxeram todos os seus charlatões e os seus marabouts, mas o nosso vodun foi mais forte”, No Benin, ainda mais do que em qualquer outro país africano, um jogo de futebol joga-se dentro do relvado, interpretado pelos jogadores, e fora dele, disputado por mestres de vodun, que normalmente se escondem em anexos do estádio. Durante 90 minutos utilizam truques misteriosos, tentam defender-se das magias do oponente, lançam feitiços para fintar os guarda-redes e apelam aos espíritos divinos para desferir o golpe letal na baliza adversária. E poucos são os beninenses que não acreditam nisto: “Não vale a pena desconfiar do vodun”. diz Constant. “Ninguém quer perder a vida por nada”.

Foto: João Henriques.

Ouidah, 37 quilómetros a oeste de Cotonu, é o berço do vodun. Todas as semanas, equipas do Benim, de África e mesmo de outros continentes peregrinam à cidade divina para preparar espiritualmente os desafios de futebol. O vodun é a religião nacional, praticada por três quartos da população do país. “O vodun é considerado desde 1991 como uma religião, como o cristianismo e o islamismo, praticada não só na África Ocidental, como também importada através do tráfico de escravos para o Brasil, Haiti, Cuba e sul dos Estados Unidos”, diz Daagbo Hounon Houna II, auto-proclamado Chefe Espiritual Supremo da Tradição Vodun Hwendo (Vodun Original). As famílias de Daagbo, filho do anterior chefe supremo, e do chefe supremo oficial, indigitado por oráculo, odeiam-se de morte. Apesar do vodun ser uma religião de paz por excelência, a contenda pela liderança religiosa até já teve direito a agressões e ameaças de morte. Na verdade, esta religião autóctone africana pouco tem a ver com a imagem diabólica que a Igreja Católica e os filmes de Hollywood propagaram – o vodun é muito mais do que espetar alfinetes num boneco aterrorizador. “São os espíritos. É o visível e o invisível, a Natureza, o misterioso, a árvore que sofre, que balança com o vento, é o ser humano que já não é humano e que é divinizado, são os nossos antepassados”, diz Daagbo, trajado com longas vestes brancas e um chapéu de aba larga da mesma cor. O chefe cresceu num meio futebolístico uma vez que o seu pai, Hounou Houna I, foi guarda-redes em Ouidah e mestre espiritual de várias equipas. “Quando abria os braços tocava nos dois postes, tinha um dom que atraía a bola para as suas mãos e os penaltis que lhe marcavam iam todos ao lado. Se ele quisesse, apelava a uma pitão (divindade da cidade de Ouidah) para tapar-lhe a baliza e nenhuma bola entrava”, diz. Daagbo herdou o talento oculto para comandar o rumo da bola. Recebe jogadores, treinadores e dirigentes num santuário do seu templo privado, uma estrutura circular no meio do jardim de sua casa. À porta, penas e restos mortais de duas aves esborrachadas numa parede branca. No interior, cordas, madeira e ossos de animas amontoados em potes de barro em redor de um figura com um rosto sinistro tingida com uma espécie de tinta amarela. É neste altar que se realizam cerimónias para decidir resultados. “Escrevem o nome do jogador que querem que jogue mal, invocam a divindade e atam o papel ao santuário. O jogador vai sentir-se cansado e incapaz de jogar como sabe”, diz Dati, irmão mais novo de Daagbo e também mestre de vodun.

Chefe vodun de ouidah, Daagbo Honum Houna II. Foto: João Henriques.

Pamphile Wisavi também não tem dúvidas: “A preparação espiritual joga a sua parte nos desafios de futebol”. O treinador da Jeunesse Sportif Ouidah (JOS), da terceira divisão da liga do Benim, 40 vezes internacional, submeteu-se inúmeras vezes a rituais vodun antes das partidas. “Quando joguei uma final da Taça do Benim pelo Mogas 90, um mestre chamado Sabadu, originário da zona do Níger, submeteu-nos a um ritual antes do jogo”, lembra. “Ele disse-nos que quando o adversário estivesse perto do golo, devíamos gritar a palavra “Troilá”. Aquilo resultou. Mesmo quando já estávamos fora da jogada, gritávamos todos “Troilá” e a bola desviava-se estranhamente da baliza, passando rente ao poste. Ganhámos 1-0”. Contudo, num país com vários cristãos e muçulmanos, Winsavi defende que as cerimónias devem ser pessoais e recatadas. “Cada um tem as suas crenças e o seu vodun e ninguém tem o direito de o impor à restante equipa”.

Pamphile Winsavi. Foto: João Henriques.

Não só os mestres e os feiticeiros chamam os espíritos para marcar golos e defender penaltis. Muitos adeptos levam a cabo sacrifícios e ritos para ajudar a sua equipa. “Há adeptos que andam com sal na boca 40 dias antes do jogo decisivo, sacrificam cabras e galinhas, decidem só comer fruta até ao dia do jogo ou abdicam de dormir com a sua esposa para se deitarem no estádio”, conta Salou Marouane, porta-voz da Associação de Adeptos da Equipa Nacional de Futebol. “Somos supersticiosos ao ponto de fazer cerimónias para deter a chuva em dias nublados só porque a alcunha da nossa equipa é “Esquilos” e os esquilos não gostam de água”. Marouane, que acompanha a selecção do Benim a todos os estádios, desdobra-se em episódios mirabolantes e inauditos de fenómenos sobrenaturais em estádios. “Uma vez, contra o Togo, tivemos umas seis ou sete ocasiões claras para marcar nos primeiros 20 minutos e a bola não entrava. Estávamos a perder 1-0. Mas um grupo de adeptos descobriu que o guarda-redes togolês tinha uma luva suplente escondida atrás da baliza e invadiu o campo para a ir buscar. Ele tinha tanta confiança no seu gris-gris, que tinha truques escondidos lá dentro, que desatou a correr atrás dos nossos adeptos. Nos minutos seguintes, marcámos quatro golos de rajada”. Contudo, nem sempre se pode ganhar no campeonato oculto. Os beninenses explicam muitos dos desaires da sua selecção pela força superior do juju (feitiço ou truque) do adversário. “Contra o Mali, em Bamako, estavam tantos fotógrafos atrás da baliza do Mali como marabouts atrás da baliza do Benim. Um deles tinha uma serpente escondida e, sempre que a cobra metia a cabeça de fora, os nossos jogadores perdiam a bola. Assim que ele descobriu a serpente, sofremos um golo. Perdemos por 3-1”.

Feiticeiro Constant. Foto: João Henriques.

No Benim, a fé no vodun não se fica pelas ligas amadoras e estende-se mesmo às maiores competições mundiais. Daagbo crê que o Brasil e a França foram campeões do mundo graças ao poder espiritual dos seus jogadores de origem africana e que este ano os espíritos vão ajudar uma equipa africana a chegar à final. “Num jogo de futebol nunca estão apenas onze jogadores em campo”, defende o chefe. “Os antepassados, os grandes futebolistas de cada nação, também jogam. E este ano, em terras africanas, eles vão ter um papel importante”. Pierre Henvi, director técnico do ASPAC, clube segundo classificado na primeira divisão do Benim, não partilha da mesma opinião. Ele acha que os rituais vodun só funcionam pelo poder de sugestão: “Quando um futebolista acredita no vodun, fica apavorado quando sabe que lhe lançaram um feitiço. Tem medo de se lesionar, de partir um pé e até de morrer. Desta forma, joga muito condicionado e faz uma má exibição”. Isso explica que muitos jogadores beninenses se equipem em casa, saltem os muros do campo para entrar no relvado ou se recusem mesmo a jogar, só porque lhes disseram que um feiticeiro espalhou uma poção no balneário ou enterrou um pedaço de um animal dentro das quatro linhas. “Uma vez vi um feiticeiro mandar um pó para cima de um excelente jogador camaronês. Como ele não acreditava no feitiço, descalçou-se e pediu ao feiticeiro para lhe meter o pó dentro da chuteira. Foi o melhor em campo”. Porém, mesmo sendo cristão, Pierre respeita a religião tradicional. Quando suspeita de um vodun dos adversários, borrifa os seus jogadores com água benta no balneário: “Eu não acredito mas…prefiro não arriscar”.

Futebol no Benim

Mesmo recorrendo ao vodun, o Benim nunca se qualificou para um Campeonato do Mundo. Contudo, os últimos anos têm sido de evolução para os “Esquilos” – conseguiram qualificar-se para três das últimas edições da CAN (2004, 2008 e 2010). O actual melhor jogador do país é Stéphane Sessègnon, do Paris Saint-Germain e o melhor marcador é Razak Omotuyossi, do Metz. A selecção foi recentemente renovada porque a Federação considerou que havia um excesso de internacionais nascidos noutros países da África Ocidental. A nível de clubes, o Dragons de L’Ouémé, com 12 títulos, é a equipa com mais palmarés do campeonato.

Truques e magias

Constant Danvikpenon, feiticeiro da selecção nacional e da equipa Requins de L’Atlantique, mostrou-nos os artefactos vodun que usa. Todos os feitiços são acompanhados de um ritual secreto. Fica a lista resumida dos objectos e o seu propósito:

Tronco de árvore sagrada – Num pedaço da casca de uma árvore, queima folhas e paus. O fogo serve para dar energia à equipa.

Cadeado – Evoca-se uma divindade a quem se dá o nome do melhor jogador da equipa contrária. Depois, fecha-se o cadeado e o futebolista não conseguirá jogar bem.

Apito tradicional – É feito de madeira sagrada e serve para enfeitiçar o árbitro. “Quando ouve o apito, o árbitro vai marcar um penalti a nosso favor ou expulsar um jogador da outra equipa”, diz Constant.

Osso de leão com agulha – Feitiço extreme. Usa-se quando todos os outros já foram tentados. Constant diz que pode fazer com que um guarda-redes se lesione ou morra quando ele mete o osso na boca.

Castanha – Truque da chuva. Parte-se com palavras e loções mágicas e começa a pingar água. Nessa altura, abate-se um dilúvio e o jogo é adiado. Pode também ser usada para neutralizar a magia da chuva do feiticeiro adversário.

Boneco de madeira enrolado com um fio – Enterra-se no meio da baliza para evitar que se sofram golos. “Em 100 penaltis, nenhum vai entrar”, diz o feiticeiro. Constant vai buscar a madeira a um bosque situado a 130 quilómetros de Cotonu e diz que se camufla com peles de animais selvagens para não ser atacado.

Corno negro – A sua ponta serve para espalhar uma solução líquida nos balneários dos rivais. Em contacto com esse líquido, o futebolista perde o talento. Não pode tocar no chão.

O que é o vodun?

Vodun quer dizer “espírito” e é a religião nacional do Benim. É praticado por dezenas de milhões de pessoas na costa ocidental de África, no Brasil, no Haiti, em Cuba e no sul dos Estados Unidos. A divindade suprema da religião chama-se Mawu e é coadjuvada por uma série de vodun (espíritos), encarnados em árvores, pedras, rios, árvores, pessoas ou animais. O vodun é uma crença pessoal e heterogénea e bastante mutável consoante o contexto histórico e cultural. Desta forma, misturou-se com o cristianismo e com o islamismo em diversas comunidades. Jesus Cristo é um vodun para alguns beninenses. Um indivíduo pode adorar diferentes vodun. Por exemplo, um rio pode ser divino para uma aldeia. Uma família dessa aldeia pode adorar também o leão e um membro dessa família adora ainda uma árvore.

*Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes foram de Portugal à Àfrica do Sul no projeto Road to World Cup. Foi mantida a grafia original, de português de Portugal.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

Como citar

CARRASCO, Tiago; HENRIQUES, João; FONTES, João. Bola com feitiço, baliza com enguiço – Ouidah, Benin. Ludopédio, São Paulo, v. 14, n. 6, 2010.
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