Brazuca

Não. Esse não é um texto sobre a escolha do nome da bola da Copa do Mundo de 2014, aqui no Brasil. Quero a partir deste escrito refletir um pouco sobre a composição homônima, cantada por Gabriel, o pensador.

A música retrata a vida de um menino pobre, nascido em favela, não tendo grandes oportunidades de se estabelecer como cidadão. Porém, com o futebol, consegue alcançar a fama e o reconhecimento social, tão distantes na época de sua infância miserável nos morros.

O personagem atende pelo apelido de Brazuca, não escolhido por acaso. Ele representa os infinitos jovens brasileiros pobres que veem no futebol, talvez, a única esperança de atingir o “sucesso na vida” – presente no imaginário de toda criança que cresce assistindo aos jogos de futebol pela TV e sonha em ganhar milhões de euros, jogando em grandes times do exterior.

Ronaldinho Gaúcho – Foto: Bonival Barreto – Flickr.

Há exemplos de brazucas reais. Romário, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Adriano. O problema é que se tratam de exceções. Cada um deles é um entre um milhão. Tais exemplos podem ser cruelmente usados para discursos neoliberais, que julgam como sendo fácil se tornar um grande jogador, milionário e reconhecido mundialmente, deixando de lado uma gama imensa de fatores que contribuem para todo esse processo e, dessa forma, acaba despejando nas costas de cada criança ou jovem a responsabilidade por seu próprio futuro – “No país do futebol, o sol nasce para todos, mas só brilha para poucos…”.

Na canção, Brazuca tem como contraponto a figura de Zé Batalha, seu irmão. Arrimo de família, sustenta sua mãe e Brazuca, trabalhando desde pequeno. Para sua infelicidade, não nasceu com o “dom da bola” e nem teve muito tempo para arriscar. Não teve infância. Não teve educação. Não teve chances.

A música não faz um julgamento marxista do futebol, pelo menos não inteiramente. O papel em destaque do futebol na história não é o de “ópio do povo”, mas sim de válvula de escape para aqueles que não têm grandes oportunidades. O futebol é uma Mega-Sena mais acessível e acreditada pelo “povão”.

O decorrer do enredo musicado mescla a ascensão de Brazuca e o eterno esquecimento e a sofreguidão de Zé Batalha. Enquanto o primeiro atua de maneira singular e se torna o exemplo, o segundo representa a massa, o resto, e é o que ninguém quer ser.

A narrativa termina por decretar o destino bem diferente para os dois personagens: Brazuca se torna o “camisa 10” da seleção, vai jogar em um time da Europa e recebe o maior salário dentre todos os demais jogadores de futebol do mundo; Zé Batalha trabalha diariamente para conseguir sobreviver miseravelmente. É desrespeitado constantemente pelo autoritarismo preconceituoso dos policiais que dão “batidas” nas favelas.

No fim das contas, no mesmo momento em que Brazuca cobra o pênalti que acaba por decretar a seleção brasileira como campeã de uma Copa do Mundo, Zé Batalha é morto por ser confundido com um bandido – “Bola no lugar, Brazuca vai bater. Dedo no gatilho, Zé Batalha vai morrer. Juiz apitou… tudo como tinha que ser: tá lá mais um gol e o Brasil é campeão; tá lá mais um corpo estendido no chão”.

Fica claro o balanço e a distância entre sonho e realidade, exceção e regra. Dois irmãos que tiveram a mesma criação, nas mesmas condições, seguiram caminhos opostos definidos e diferenciados unicamente por uma bola. O futebol foi quem decretou o sucesso de um, mas e o fracasso do outro?

O que mais me chama a atenção é a condição que assume o futebol, não como esporte, mas como salvador da pátria. Em uma visita que fiz ao Complexo do Alemão, num trabalho social, vi uma professora doutora perguntar a um menino, que aparentava ter cerca de 10 anos, se ele queria estudar. Envergonhado, disse que não. Aproveitei a oportunidade e interroguei, “E jogar bola?”. A resposta foi positiva e veio acompanhada de um sorriso no rosto.

Ronaldo – Foto: Thomas Wanhoff – Flickr.

O que o menino me disse, sem dizer, foi que a escola para ele é quase nada e não lhe dá prazer algum, muito menos lhe garante alguma coisa, enquanto o futebol o atrai e tem total significado e sentido para ele. É este significado que falta à escola, à educação. Estudar para que? Será que o povo não acredita no sucesso profissional através de sua formação? Ou, talvez, o ache menos vantajoso se comparado com a ascensão rápida que se pode ter através do futebol? Isso explicaria muita coisa – “Futebol não se aprende na escola… é por isso que o Brazuca é bom de bola.”.

Coube ao futebol dar conta das expectativas da sociedade quando seus direitos, como a educação, a saúde, a cidadania, foram subtraídos. Hoje, para as classes mais desassistidas, talvez faça mais sentido “crescer na vida” por conta própria, já que não pode contar com a assistência do Estado, que é (ou, pelo menos, deveria ser) uma obrigação. Daí a valorização do sucesso “via-futebol” – “Brazuca é ‘bom de bola’, Brazuca deita e rola. Zé Batalha só trabalha, Zé Batalha só se esfola.”.

Retomando e finalizando a história tratada na música, vale ressaltar que no dia do enterro de Zé Batalha não havia ninguém nem para orar pelo morto – “Tá todo mundo com a bandeira na mão, esperando a seleção no aeroporto”.

 

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

TAVARES JúNIOR, Joaquim. Brazuca. Ludopédio, São Paulo, v. 43, n. 1, 2013.
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