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Começou com o Mazembe em 2010: a quebra de uma tradição euro-sulamericana

Fabio Santa Cruz 20 de janeiro de 2024

Até o fim do século XX, uma disputa envolvendo apenas dois continentes (América do Sul e Europa) definia o clube campeão mundial de futebol a cada ano. Eram os dois continentes que dominavam o futebol mundial e parecia óbvio que, numa disputa entre o campeão da Conmebol e o da UEFA, o vencedor podia se declarar o campeão mundial. Esta disputa ganhou o nome de Copa Intercontinental e, a partir de 1980, foi chamada de Copa Europeia-Sulamericana. Em 1980, surgiu também o nome “Copa Toyota”, que era a designação comercial da disputa.

Claro que houve questionamentos sobre a exclusão dos clubes de outros continentes, mas nenhuma delas abalou a disputa anual entre os campeões da  Conmebol e da UEFA. Os casos mais relevantes talvez tenham sido os dos anos de 1977 e 1980, quando clubes do México venceram os campeões sul-americanos na Copa Interamericana (disputada pela primeira vez em 1969) e se mostraram interessados em participar da disputa que definiria o clube campeão do mundo. O interesse mexicano foi ignorado sem maiores explicações.

A FIFA adotou uma atitude ambígua: não tomou nenhuma providência contra a Copa Intercontinental, mas também não podia considerá-la oficial, já que a sua lógica de atuação era global e destoava do exclusivismo de sul-americanos e europeus. Em 2000, a situação começou a mudar. A FIFA promoveu, pela primeira vez, uma competição mundial de clubes (incluindo equipes da Ásia, África, Oceania e CONCACAF), mas sem que a tradicional disputa entre os campeões da Conmebol e da UEFA fosse interrompida. Portanto, foram dois os clubes campeões mundiais do ano 2000: Corinthians (campeão da Copa do Mundo de clubes da FIFA, realizada no Brasil) e Boca Juniors (campeão da Copa Europeia-Sulamericana, disputada no Japão).

A Copa do Mundo de clubes não foi promovida pela FIFA nos quatro anos seguintes, mas ressurgiu em 2005. E ressurgiu como um projeto incontestável e irreversível. A Copa Europeia-Sulamericana foi extinta (realizada pela última vez em 2004) e a Copa do Mundo de clubes da FIFA passou a ser anual, com clubes das seis entidades continentais que integram a FIFA.

De 2005 a 2009, os resultados confirmaram a superioridade de europeus e sul-americanos. As finais da Copa do Mundo de clubes eram, invariavelmente, entre os campeões da Conmebol e da UEFA. Era apropriado até dizer que estava demonstrada a validade da antiga Copa Intercontinental e da Copa Europeia-Sulamericana.

Em 2010, cinquenta anos depois da primeira disputa entre europeus e sul-americanos pelo título de clube campeão mundial, a velha tradição foi quebrada.

Mazembe e Raja Casablanca (2010 e 2013)

No dia 14 de dezembro de 2010, em Abu Dhabi, os jogadores do Internacional, do Rio Grande do Sul, entraram em campo para enfrentar o Mazembe, do Congo, campeão africano de futebol um mês antes. A torcida do clube sul-rio-grandense tinha certeza que o seu time, alguns dias depois, estaria enfrentando o Inter de Milão na grande final. Encerrada a partida, a certeza havia se transformado em assombro e os jogadores do time africano estavam em festa. Haviam entrado para a história do futebol. Pela primeira vez, o título de clube campeão mundial de futebol não seria disputado entre um sulamericano e um europeu.

A vitória do Mazembe provocou euforia em seu país. A BBC falou de uma “onda de otimismo” que estava se espalhando pelo Congo e alguns torcedores acreditavam realmente em uma vitória na final, contra o Inter de Milão (que havia vencido, na outra semifinal, o Seongnam, da Coreia do Sul). Ganhou muito destaque o goleiro Kidiaba, que tinha um modo divertido de quicar as nádegas no chão para festejar o êxito de seu time. Os gremistas, no Brasil, imitavam aquela comemoração para abusar dos colorados.

Mazembe
Equipe do Mazembe em 2011. Foto: Mustapha Ennaimi/Flickr.

Na decisão, o mundo voltou ao normal e a Internazionale venceu o Mazembe por 3 a 0. Pela 25ª vez, um clube europeu se tornava campeão mundial. O tabu, porém, estava quebrado. A grande final não era mais exclusividade de sul-americanos e europeus.

Em 2013, foi a vez do Atlético Mineiro ser desclassificado por um clube africano. O Raja Casablanca não era sequer campeão continental. Entrou na competição como representante do Marrocos, o país anfitrião. Mas surpreendeu. Na fase preliminar, venceu o Auckland City por 2 a 1. Três dias depois, superou o Monterrey, também pelo placar de 2 a 1. Na semifinal, surpreendeu o Atlético e venceu por 3 a 1. Assim, classificou-se para a final contra o Bayern de Munique, provocando delírio em sua torcida, já conhecida por seu entusiasmo e fanatismo.

Como havia acontecido com o Mazembe, os torcedores marroquinos se encheram de confiança e acreditaram em mais uma vitória, que seria histórica. A superioridade europeia, porém, foi incontestável. O Bayern venceu por 2 a 0 e festejou seu terceiro título de campeão mundial (os dois anteriores eram dos anos de 1976 e 2001). 

De 2016 a 2022: a rotina dos anos pares

Em 2016, a surpresa foi o Kashima Antlers, clube onde Zico fez história na época da profissionalização do futebol japonês. O Kashima seguiu uma trajetória idêntica à do Raja Casablanca em 2013. Foi convidado para a competição como representante do país-anfitrião e alcançou três vitórias seguidas. A terceira contra o Atlético Nacional, campeão sulamericano. Assim, tornou-se a primeira equipe asiática a se classificar para a final da Copa do Mundo de clubes. O seu adversário na decisão foi o Real Madrid.

A surpresa tornou-se ainda maior porque, incrivelmente, foi uma partida bastante disputada. O Real Madrid começou vencendo com um gol aos 9 minutos de jogo, mas o Kashima Antlers virou o placar no segundo tempo. A equipe espanhola empatou e o resultado final ficou em 2 a 2. Foi preciso disputar a prorrogação, vencida pelos madrilenhos por 2 a 0.

Aquela prorrogação mostrou que, de fato, já havia condições reais para a vitória de um clube de fora da Europa e da América do Sul, ou seja, para que fosse quebrada uma tradição de mais de meio século.

Mazembe
Lance da partida do Mazembe em 2011. Foto: Mustapha Ennaimi/Flickr.

Interessante foi a rotina que se estabeleceu a partir de 2016: nos anos pares, os clubes sul-americanos não conseguiam mais chegar à final. Em 2018, os times que se enfrentaram na final foram o Real Madrid e o Al Ain, dos Emirados Árabes Unidos. Em 2020, disputaram a decisão o Bayern de Munique e o Tigres, do México. Em 2022, a final teve o Real Madrid contra o Al-Hilal, da Arábia Saudita.

A disputa entre o Bayern e o Tigres foi, em termos de resultado, a mais apertada. O Bayern venceu por 1 a 0 e parte da imprensa noticiou que houve uma infração no gol da vitória. A superioridade do Bayern ao longo da partida, porém, não foi questionada.

Já foram seis finais com clubes asiáticos, africanos e da CONCACAF (vide tabela 1). Muitos se perguntam: quando um destes clubes será não só finalista, mas campeão mundial? Além desta pergunta, há uma constatação evidente: estas seis finais revelam mudanças importantes no futebol mundial. O sub-profissionalismo e a fragilidade do futebol em alguns países já foi superada. O “boom” saudita de 2023, ademais, pode ser o prelúdio de mudanças ainda mais impactantes. Apenas a superioridade europeia parece se manter livre de ameaça. Por quanto tempo mais?

A rotina iniciada em 2016 com o Kashima Antlers faz crer, ao modo de superstição, que apenas em dezembro de 2024 haverá novamente um clube africano, asiático ou da CONCACAF na final. Para alívio e satisfação dos torcedores do Fluminense. 

Tabela 1

AFRICANOS, ASIÁTICOS E CONCACAF NAS FINAIS DA COPA DO MUNDO DE CLUBES DA FIFA

2010: Inter de Milão 3 X 0 Mazembe

2013: Bayern de Munique 2 X 0 Raja Casablanca

2016: Real Madrid 2 X 2 Kashima Antlers (prorrogação: 2 X 0)

2018: Real Madrid 4 X 1 Al Ain

2020: Bayern de Munique 1 X 0 Tigres

2022: Real Madrid 5 X 3 Al-Hilal


REFERÊNCIAS

Mazembe feat inspires DR Congo. Consultado em 17.12.2023.

Com jogral, sem camisa, de costas: como torcem os fanáticos do Raja.  Consultado em 17.12.2023.

Real leva susto de japoneses, mas vence com três de CR7 e fatura 5º Mundial.  Consultado em 17.12.2023.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

CRUZ, Fabio Santa. Começou com o Mazembe em 2010: a quebra de uma tradição euro-sulamericana. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 20, 2024.
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