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Como driblamos nossos ídolos

No gingado do “fez que foi, mas não foi”, a pisada na bola parada e o engano do adversário: um balanço que libertava e lançava o Brasil a um novo patamar do futebol mundial. Garrincha, o Mané, nos representou com a malícia inocente de se ludibriar. O mundo se encantou com o craque. O Brasil o reverenciou. Afinal, nos deu duas Copas do Mundo. Neste fim de maio, ao ler o noticiário, me deparo com um triste episódio, um abandono, desprezo por uma das nossas maiores referências. Já não se sabe para onde foi o corpo do atleta, morto em 1983. Senti como fôssemos soviéticos em 1958, perdidos. Não é piada. É triste. E traz uma reflexão: como nos despedimos dos nossos ídolos esportivos?

O fim de semana marcou o encerramento da carreira do italiano Francesco Totti. Em toda sua vida jogou por um clube – Roma – e a seleção de seu país. Homenagens, choro, textos e mais textos… Brasileiros lamentando.

Nesta mesma temporada, também assistimos a despedida do lateral argentino Pablo Zabaleta do Manchester City com um vídeo emocionante.

Uma linda relação entre torcida e ídolos. Agora, deixe o Velho Continente e volte a essa nossa América do Sul. Em abril, Gabiru se aposentou. Pouco mais de uma década após fazer o improvável: o gol do título mundial do Inter sobre o favorito Barcelona de Ronaldinho Gaúcho. O feito eterniza o meia na história colorada. Mesmo assim, a relação com o time do Rio Grande do Sul não terminou da melhor forma.

Não vou ser injusto com o Inter, afinal, a maioria dos nossos ídolos é tratada assim por clubes e torcedores. Se os atletas buscam uma proposta melhor financeira, são tachados de mercenários. Se ficam uma ou duas temporadas rendendo abaixo do esperado, são dispensados sem cerimônia.

Embora tenha sido protagonista de um dos principais cantos da torcida brasileira no mundial, disputas políticas e empresariais tiraram do Brasil o seu Rei na Copa de 2014. Pelé merecia ser aclamado pelo o que fez em campo.

Tratar ex-jogadores apenas em reportagens de quadros “Por onde anda?” é o sinal de que precisamos recordar alguém que foi esquecido. E assim, vamos reformulando nossa memória afetiva. Descartando nossas referências e acreditando na pós-verdade da imprensa. Afinal, é melhor valorizar um jovem “que pode ser” do que aquele “que um dia foi”. Um Alzheimer esportivo de feitos e alegrias. Mas principalmente, pessoas.

Sabe, Garrincha, talvez os mais novos chorem por Totti, e nem queiram saber quem você foi. Espero que esse sumiço seja mais uma brincadeira sua para nos enganar. Se o mínimo de valorização você não teve até aqui, evite lágrimas de crocodilo em seu túmulo. Suma mesmo. Nos “dibre”, como dizem os jovens de hoje. Afinal, nós não te merecemos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Chico Brinati

Professor de Jornalismo Esportivo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Pós-doutor em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Como jornalista, atuou como produtor e editor na TV Integração, afiliada Rede Globo em Juiz de Fora-MG. Foi repórter de campo e plantonista da Rádio Panorama FM. Escreveu a coluna "Caneladas & Canetadas" no jornal "JF Hoje". Autor do livro "Maracanazo e Mineiratzen: Imprensa e Representação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1950 e 2014".

Como citar

BRINATI, Chico. Como driblamos nossos ídolos. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 2, 2017.
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