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Deus e o Diabo na terra do Sol

Sidney Dupeyrat de Santana 5 de março de 2022
Deus e o Diabo na terra do Sol
Foto: Sidney Dupeyrat de Santana.

O campo, pequeno em tamanho, presenciou os últimos grandes momentos do America. O Wolney Braune testemunhou, em dias de treino e nos dias de jogo, um elenco que desfilava talento nos gramados da primeira divisão nacional. O estádio viu também a decadência financeira e esportiva do clube, que se deu principalmente após a histórica campanha no Brasileiro de 1986, culminou na saída de Vila Isabel e no exílio da cidade do Rio de Janeiro.

Aquele pedaço de terra tinha uma curiosa particularidade: ficava aos pés do morro de Santo Antônio. Do alto da colina, com vista para uma boa parte da zona norte do Rio, fica a igreja Santo Antônio de Lisboa. Os treinos e as partidas do Diabo — como é conhecido o clube pela cor do uniforme — tinham a sagrada companhia da pequena capela.

Após a compra junto ao Andarahy AC, o estádio foi inaugurado em 19 de abril de 1967 numa partida entre os juvenis do America e do Fluminense que terminou empatada por 1 a 1. Quase dez anos depois, em janeiro de 1977, o Wolney Braune foi reinaugurado após melhorias que incluíram a instalação de novas arquibancadas.

A partida foi amistosa com o Palmeiras e terminou com vitória americana por 1 a 0, gol de pênalti do meia Bráulio. Nascia ali uma tradição que acompanhou o estádio em todos os seus jogos: muitos torcedores — no desespero pelo esgotamento dos poucos ingressos disponíveis, na falta de dinheiro para a compra das entradas ou movidos pelo simples desejo de querer ver futebol sem pagar —assistiam às partidas do morro de Santo Antônio.

Era a chamada “arquibancada dos padres”, descrita no livro “O America na história da cidade”, de Orlando Rocha e Therezinha de Castro:

“No Andaraí a renda até que daria bem, não fosse a concorrência da arquibancada dos padres. O campo dá para um morro, onde se ergue a igrejinha de Santo Antônio de Lisboa. O padre permite o acesso dos caronas e estes, de lá, assistem aos jogos acomodados na encosta. No intervalo do 1° para o 2° tempo passa-se uma bandeja entre os caronas, e cada um ‘pinga o que pode’.

A edição do Jornal do Brasil do dia 21 de janeiro de 1977 relatou que, enquanto 4.129 americanos pagaram para entrar, mais de 1.500 viram a partida do alto da colina.

Seu Darci, 84 anos, morador da região desde aqueles tempos e vizinho da igreja até hoje, confirma que quem via os jogos de lá entendia do riscado: “Do barranco se via o jogo muito bem, a visão do campo era completa”.

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O morro cheio para ver o America. (Imagem: Arquivo Jornal dos Sports).

A situação se tornou mais comum na década seguinte. Nos anos 80 o estádio passou a ser usado pelo America nos jogos do Campeonato Carioca contra equipes de menor expressão.

Para não concorrer com os certames das 17 horas, e como o campo não tinha refletores, muitas partidas eram marcadas para as dez da manhã. Era o chamado “jogo do café da manhã”, assim denominado pelo jornalista carioca Washington Rodrigues. Algumas das partidas mais encardidas do Mecão aconteciam pouco após as missas celebradas metros acima, que iniciavam às oito horas.

Aquele canto de Vila Isabel, que presenciava os sinos, sermões e preces dominicais da pequena capela, também testemunhava os gritos de sangue entoados no campo abaixo, no morro ou nas arquibancadas de compensado naval. Ali, tão perto de Deus, o Diabo realizava a sua cerimônia de culto pagão.

Pouco depois de o padre Sérgio fazer a leitura do salmo bíblico para levar aos fiéis reflexão e serenidade, o artilheiro Luizinho Lemos ou algum outro homem de vermelho balançava o alambrado do estádio a cada gol para levar os seus próprios fiéis à loucura.

Apesar do contexto incomum, que juntava públicos teoricamente antagônicos, tudo acontecia na maior tranquilidade.

Deus e o Diabo na terra do Sol
A igreja Santo Antônio de Lisboa atualmente. Foto: Sidney Dupeyrat de Santana.

Seu Darci conta que os americanos que vinham de diferentes locais da cidade assistiam aos jogos no morro e não causavam qualquer transtorno. Muitos moradores não torcedores do clube, como ele próprio, também marcavam presença no barranco para acompanhar as partidas do America. “Todo mundo se conhecia”, afirma.

Seu Hernane, que trabalha na igreja e também é morador da área, lembra com saudades dos tempos em que os eventos da capela eram acompanhados pelos jogos do Mecão: “Domingo essa rua aqui era uma festa”, relembra.

E a rotina não era prazerosa somente para os torcedores e moradores. O ídolo Luizinho Lemos, que nunca perdeu um jogo atuando no Wolney Braune, lembrava que era ali que o time treinava e vivia, assim, era natural que os atletas tivesse um carinho especial pelo estádio.

“O America tinha uma identidade tijucana e era um time vencedor”, Luizinho.

A rotina de treinos e jogos no campo era complementada pela musculação na toca do Vavá, que ficava dentro do complexo do estádio, e pelo café da manhã no Bar do Manoel do outro lado da calçada, onde os jogadores se reuniam antes dos treinos para comer e jogar conversa fora.

O velho estádio e o ambiente que o cercava deixavam o craque com saudades: “Ali eu comecei a carreira e ali eu fui jogador do America pela última vez”, disse Luisinho em conversa com a reportagem do Puntero em 2019.

Mas, talvez, o principal momento do Wolney Braune não tenha sido numa partida oficial, ou um jogo com muitos gols.

Corria o ano de 1981 e a Seleção comandada por Telê Santana se preparava para o Mundial da Espanha. Entre os certames pelas Eliminatórias, eram realizados alguns amistosos e jogos-treino. E em 19 de março de 81 foi a vez de encarar o America em seu estádio. A Seleção de Zico, Sócrates, Falcão, Reinaldo e outros craques não contava exatamente com um céu de brigadeiro.

Ainda que estivesse em situação confortável na liderança do grupo 1 das eliminatórias sul-americanas para a Copa, a equipe era questionada por atuações abaixo do esperado e por algumas escolhas de Telê, que ainda estava em processo de renegociação de contrato com a CBF.

Nesse contexto, um jogo-treino no Rio de Janeiro com a presença da torcida, quatro dias antes do jogo contra a Bolívia no Maracanã que poderia assegurar a vaga na Copa, era o plano perfeito para conquistar de vez o público e a imprensa.

Com uma equipe promissora, atuando no campo de todos os dias e com a presença da torcida de sempre, parecia evidente que o America não entraria como sparring e a Seleção não teria vida fácil.

A mobilização foi total: o Jornal dos Sports relatou que as arquibancadas estavam completamente lotadas, o morro estava tão cheio que correu o boato de que o padre estava cobrando ingresso. Um prédio vizinho, em obras, viu uma união operária em prol de um objetivo comum que deixaria Karl Marx orgulhoso:

“Os operários simplesmente decretaram ponto facultativo. Todos largaram as ferramentas, colocaram mais água no concreto para não endurecer, e sentaram-se nos andaimes para assistir, de um lugar até certo ponto privilegiado, a partida”.

Naquele dia e naquela hora, todo mundo ali só queria saber de futebol. Após 90 minutos, o 0 a 0 persistiu no placar e o Jornal dos Sports estamparia com destaque o feito Rubro na capa da edição do dia seguinte:

Deus e o Diabo na terra do Sol
O jogo terminou com aplausos para o America e vaias para a Seleção. (Imagem: Arquivo Jornal dos Sports).

Telê não gostou nem um pouco.

O técnico se incomodou com a presença de um povo que, muito mais clubista que nacionalista (um pecado naquela época?), escolheu torcer pelo time ao invés de apoiar a Seleção Brasileira.

Em entrevista para o Jornal do Brasil após a atividade, afirmou: “O público atrapalha porque os jogadores ficam nervosos. Viemos aqui para trabalhar e o torcedor não deveria participar tão ativamente do treino”.

Ainda de acordo com O Globo, Telê solicitou à CBF que alterasse o local do próximo treinamento, um jogo-treino contra o Campo Grande, que aconteceria também em Vila Isabel. A partida foi transferida para um campo da Marinha e sem torcida.

Deus e o Diabo na terra do Sol
O interior da igreja de Santo Antônio de Lisboa, na Vila Isabel. Foto: Sidney Dupeyrat de Santana

Ao longo dos anos 80, ganhou força um projeto pensado ainda na década anterior: o America deveria abandonar Vila Isabel em busca da conquista de novos horizontes.

A ideia era fazer com uma construtora uma permuta do campo pela construção de um novo estádio com capacidade para 70.000 pessoas, uma sede social e uma Vila Olímpica num terreno de 100.000 m² cedido pela prefeitura de Nova Iguaçu e pelo Estado do Rio de Janeiro.

Com a perspectiva de o dinheiro mandar cada vez mais no futebol, o clube via a necessidade de se popularizar, de ganhar novos torcedores. E Nova Iguaçu parecia o destino ideal para isso: era então o sétimo município mais povoado do País com 1 milhão e 800 mil habitantes.

Em Nova Iguaçu estaria o futuro do clube, que ali poderia se tornar o maior do continente. O periódico estampou com destaque o sonho rubro:

Deus e o Diabo na terra do Sol
(Imagem: Arquivo Jornal dos Sports).

O plano parecia vantajoso, mas foi sendo modificado com o passar dos anos.

“O projeto original da mudança para Nova Iguaçu era muito bom, mas aditivos acabaram por tirar direitos do America”, diz o atual presidente do clube, Sidney Seixas de Santana.

A torcida, formada principalmente por moradores da Tijuca, Vila Isabel e adjacências, foi majoritariamente contra o projeto. Mais do que contra a ida à Nova Iguaçu, se opunha ao que seria a saída de sua casa.

Era ali, na esquina da rua Teodoro da Silva com a Barão de São Francisco, que o America tinha o seu lugar no mundo. “Na vizinhança, nos bairros de Vila Isabel, Grajaú e Andaraí, a maioria da molecada era America porque era ali que o time treinava todos os dias e jogava as partidas do Carioca contra as equipes menores”, diz Dario Meirelles, fundador da Torcida Inferno Rubro.

Os torcedores tentaram organizar um plebiscito para definir a saída ou a permanência no Wolney Braune. Nada feito. A decisão já estava tomada e em pouco tempo o America deixaria o local que foi sua casa por décadas.

Com o clube em processo de abandono entre o final dos anos 80 e o início dos 90, foi assinado o acordo que determinou a troca do Wolney Braune por uma quantia em dinheiro e pela construção do novo estádio em Nova Iguaçu. Os americanos, torcedores e jogadores, perdiam aquele local tão íntimo.

No lugar do campo em Vila Isabel onde o clube esteve presente por quase trinta anos, a construtora subiu o mais novo shopping center da cidade.

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A esquina das ruas Barão de São Francisco e Teodoro da Silva onde antes ficavam o estádio e o bar. Hoje, o shopping e a farmácia. Foto: Sidney Dupeyrat de Santana.

Finalmente o divino da igreja e o profano do futebol estavam separados. A modesta capela Santo Antônio de Lisboa, que por tanto tempo teve a companhia do templo sagrado dos americanos, passou a ser vizinha de um outro local de adoração: a catedral do consumo.

Na igreja do morro o padre já não é mais o mesmo.

Há quem diga que as imagens sacras do local ainda sentem falta das tardes quentes de domingo no Rio de Janeiro. Sem ar condicionado, escadas rolantes e outras modernidades. Do tempo que as camisas vermelhas lutavam em campo e na arquibancada pelo Diabo, sob a bênção do crucifixo no alto da paisagem de Vila Isabel.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2020. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Sidney Dupeyrat de Santana

Sidney Dupeyrat de Santana é natural do Rio de Janeiro, formado em Comunicação Social pela UFRJ e pós-graduado em Fotografia e Imagem pela IUPERJ-UCAM. Em 2018 participou da exposição coletiva “O que eu vejo”, com curadoria de Rogério Reis; foi pré-selecionado na convocatória do Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco 2017 e junto ao Inventivo Coletivo venceu  o edital 2018/2019 do CCJF/RJ com a exposição “100 anos Dela” - realizada entre novembro de 2018 e janeiro de 2019. 

Como citar

SANTANA, Sidney Dupeyrat de. Deus e o Diabo na terra do Sol. Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 6, 2022.
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