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Esporte e Cenas do Cotidiano: quais futebóis queremos?


O esporte se constitui como um elemento potente de experiências corporais. Enquanto prática que estimula o movimento humano, por meio dele é possível conhecer e explorar os limites do corpo, ampliando o autoconhecimento e as vivências de e no mundo. Ainda que norteado por regras, normativas e fundamentos que determinam em especial o esporte de alto rendimento, fazendo com que esse universo não seja tão acessível a todas as pessoas, a sua ressignificação nas práticas de lazer e educativas pode aglutinar um número maior de participantes e fomentar vivências mais participativas.

Outro aspecto marcante do esporte é a diversidade de modalidades existentes. A variação está presente tanto naquelas que são praticadas coletivamente quanto nas individuais, seja na terra, na água ou no ar, constituem-se como manifestações culturais, expressão de sentimentos e de aprendizagens.

Algumas modalidades demandam poucos recursos para serem realizadas, tornando-se mais acessíveis para a prática e potencializando a sua difusão. A corrida pode ser identificada com um exemplo de esporte individual que demanda menor gasto financeiro para iniciá-la. É possível que um praticante comece gastando pouco ou que utilize itens que já possui, uma vez que não é necessário a utilização de materiais ou equipamentos caros ou muito específicos. Usualmente um praticante iniciante de corrida costuma ter a demanda de um par de tênis e de roupas confortáveis, tais como aquelas que são utilizadas para exercício físicos em academias.

Entre os esportes coletivos, o futebol pode ser identificado como uma modalidade mais acessível, uma vez que a materialidade principal para o jogo é a bola, que pode ser encontrada para os iniciantes a preços mais em conta. E há casos em que os times se organizam para dividirem a compra da bola entre os integrantes, facilitando ainda mais a sua compra. Ainda que o calçado mais difundido entre os praticantes seja chuteiras, os tênis são utilizados, por exemplo, no futebol de salão.

Mesmo no futebol de campo é possível observar iniciantes que os utilizam quando estão jogando de modo autônomo em campos de várzea, em jogos com amigos, fora de escolinhas ou competições, substituindo as chuteiras. E as vestimentas utilizadas no cotidiano de treinos com praticantes que estão começando são acessíveis: short ou calção, camisa e meia. Em situações do treinamento corriqueiro é possível observar meninos e meninas que não utilizam meiões ou caneleiras durante treinamentos ou jogos amistosos não oficiais. Esses itens são usualmente cobrados em situações de competições oficiais, uma vez que se enquadram como equipamentos obrigatórios para jogadores e jogadoras.[1]

O espaço para praticá-lo pode ser uma quadra ou campo, muito difundidos no Brasil. Há inclusive em muitos municípios a disponibilidade de espaços públicos como quadras abertas, ginásios, campos de várzea ou estádios que são administrados pelas prefeituras ou pelos governos estaduais, tornando-se locais em que os moradores podem acessar gratuitamente para jogar o futebol ou realizar outras atividades. Nesse sentido é relevante destacar a atuação que o Estado pode ter para fomentar o desenvolvimento do esporte e do lazer, impulsionando desse modo a democratização desses setores, e contribuindo em especial para que a população mais vulnerável socialmente tenha garantido o direito de vivenciá-los.

Campo de várzea em Guaianases, São Paulo
Campo de várzea em Guaianases, São Paulo/SP. Foto: Enrico Spaggiari

Mas se o esporte pode se constituir por meio de modalidade mais acessíveis do ponto de vista financeiro, também é possível identificar outras que são menos acessíveis se considerarmos o valor de equipamentos e materiais necessários para a prática. São esportes que de modo geral demandam equipamentos e materiais mais caros, o que dificulta o acesso de boa parte da população, tornando-os mais restritos a um número menor de praticantes e contribuindo para a pouca difusão de tais esportes. Entre essas modalidades é possível identificar a esgrima, o polo, o golfe e o hipismo.

Além da possiblidade de experimentar o esporte enquanto prática, também é possível ter o contato a partir do torcer. Esta é uma experiência que nos tira do espaço de prática das modalidades e nos coloca em uma outra dimensão de contato com o universo esportivo: na beira dos campos de várzea, nas arquibancadas de ginásios e estádios, nas bordas de piscinas, nas ruas, em bares ou dentro de nossas casas. Esteja no ambiente doméstico ou no público, uma vez torcedor ou torcedora é possível mudar a perspectiva, os olhares e os sentimentos em relação ao esporte. Impulsionado pela mídia, o esporte espetáculo[2] constitui-se como manifestação amplamente difundida e com significativa penetração social, amplificando a visibilidade de atletas, de seus resultados e dos bastidores de equipes entre os telespectadores, alimentando debates entre admiradores do esporte e promovendo a movimentação do mercado que gira em seu entorno.

Na torcida, presencialmente ou acompanhando as transmissões por meio da mídia, vibramos com a vitória ou sofremos com a derrota da equipe ou do(a) atleta para qual torcemos. Nas arquibancadas a tensão toma conta naquele ponto disputado final no tie-break durante uma partida de voleibol, ou no pênalti que define a classificação para a próxima fase ou a final de um campeonato de futebol. Mesmo as modalidades pouco conhecidas ou pouco difundidas na mídia são destaque para o torcer em transmissões de esportes durante eventos como os jogos olímpicos ou os jogos paralímpicos. Nessas ocasiões não é difícil despertar em nós o sentimento de admiração diante de façanhas e das novidades que atletas daquelas modalidades pouco ou até então não conhecidas podem promover. A vibração e o encanto podem nos envolver de tal modo que quando nos damos conta estamos pulando e gritando de satisfação em frente à televisão.

Simone Biles
Simone Biles. Foto: Foto: Abelardo Mendes Jr/ rededoesporte.gov.br/Fotos Públicas

Podemos ficar maravilhados diante das imagens daqueles movimentos ainda desconhecidos de uma manobra no skate, de um salto ou um movimento de atletas em um aparelho na ginástica artística, da beleza plástica nas apresentações das atletas na ginástica rítmica, da força e da descoberta de outras possibilidades no rugby em cadeira de rodas, no futebol de cinco, no goalball, na bocha e em outros esportes paralímpicos. E nesse entusiasmo da admiração das novidades de movimentos, manobras e fundamentos, é possível que de repente a gente fique ali, diante da televisão ou das telas de computadores e celulares, vibrando, gritando e torcendo por atletas conhecidos e admirados, ou mesmo para aqueles e aquelas que pouco ou nada conhecíamos até então.   

O esporte pode aflorar sentimentos fortes e belos nos praticantes e na torcida, por exemplo, em casos de valorização da diversidade e do respeito ao próximo. Nas Olimpíadas de Tóquio as atletas das seleções do Chile, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Nova Zelândia e Suécia protestaram contra o racismo, se ajoelhando em campo antes de iniciar as partidas na primeira rodada[3].

Mas também pode evidenciar as mazelas de nossa existência humana em situações que expressam desrespeito, preconceito e discriminação que podem ser observadas em outros contextos sociais, parte do cotidiano da vida das pessoas. Infelizmente não é difícil identificar casos desse tipo no futebol ou em outras modalidades esportivas, seja no Brasil ou em outros países. Em abril de 2021, na terceira rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino A-1, houve uma situação racista durante a transmissão do jogo entre a equipe do Bahia e do Nápoli Caçadorense, quando a aparência de algumas jogadoras do Bahia foi motivo de destaque na fala dos comentaristas, que denominaram o cabelo de algumas delas como sendo exótico[4].

Bahia
Jogadoras da equipe do Bahia  Foto: reprodução facebook Bahia

Situações de preconceito e de discriminação também podem ser identificadas durante outras competições de futebol, dentro e fora dos gramados, contando inclusive com o envolvimento de torcedores.  Visitando sites de notícias será possível identificar cenas lamentáveis nesse sentido, como a ocorrida em novembro de 2019, no jogo entre o Cruzeiro e o Atlético Mineiro, válido pelo Campeonato Brasileiro. Durante um tumulto na arquibancada do Mineirão, um grupo de torcedores atleticanos estava discutindo com seguranças que trabalhavam na contenção da torcida. Um dos torcedores se dirigiu a um dos seguranças utilizando uma frase racista, dizendo para ele olhar a cor da pele[5] (fazendo menção a cor da pele do segurança).

Episódios de racismo envolvendo torcedores são apresentados em notícias de jornais impressos, televisivos e em diversos sites de notícias, sendo também objeto de estudos acadêmicos[6], o que evidencia que esse tipo de violência contra jogadores e jogadoras acontece em circunstâncias variadas, não estando presente apenas dentro de campo. Outro aspecto a ser observado é que o racismo promovido por torcedores não representa necessariamente um posicionamento majoritário das torcidas, mas é necessário que a sociedade faça o enfrentamento desse problema, que pode ser identificado entre torcedores de times brasileiros, e também de torcedores de outros países[7]: em 2014, no jogo da Libertadores entre o Cruzeiro e o Real Garcilaso no Peru, quando o jogador Tinga (Cruzeiro) tocava na bola era possível ouvir os torcedores do time peruano imitando sons de macaco; nesse mesmo ano, quando Daniel Alves jogava no Barcelona, uma banana foi arremessada por algum torcedor do Villareal em direção a Daniel, ele pegou a fruta no chão, descascou, comeu e depois seguiu com a cobrança de escanteio; ainda em 2014 quando o goleiro Aranha estava no Santos, também foi insultado durante o jogo contra o Grêmio, uma torcedora gremista gritava para ele dizendo macaco e outros torcedores imitavam sons de macaco[8]; em 2015 o jogador Arouca foi atacado com ofensas racistas vinda de parte de torcedores do Santos; e a jogadora do selecionado francês, Wendie Renard, foi atacada por brasileiros nas redes sociais quando o Brasil enfrentou a França durante a Copa do Mundo de 2019, na ocasião internautas fizeram ataques racistas quando criticaram o cabelo dela[9].

Wendie Renard
Wendie Renard. Foto: Wikimedia

Além desses casos de racismo que foram brevemente citados aqui, existem muitos outros que podem evidenciar como o futebol também pode ser utilizado por algumas pessoas como pretexto para a difusão do ódio e a expressão de violências. Seja no futebol de campo ou nas outras modalidades esportivas derivadas dele, dentro ou fora das quatro linhas, jogando ou torcendo, ele comporta as tensões da sociedade e as manifestações presentes no cotidiano. A expressão de posicionamentos sexistas, segregadores e homofóbicos não são necessariamente oriundas do esporte, mas fazem parte dele e não devem ser naturalizados, seja nas manifestações esportivas, culturais ou em outras situações do cotidiano.

O futebol se configura com uma linguagem universal. Tendo uma bola e um grupo que queira jogar ou brincar, o futebol pode agregar grupos de diferentes etnias, localidades e idiomas. E também comportar padrões mais específicos de comportamento e de jogo, sendo transformado pelos praticantes de acordo com a realidade que vivem no âmbito local. Pode ser expressão de amor, de paixão, de tolerância e de solidariedade. Mas também pode ser difusor social do ódio e de práticas presentes no cotidiano que causam dor e sofrimento.

É parte do que somos ou que gostaríamos de ser. Possibilidade da ampliação da experiência humana e também de limitações de experiências. Alienação e libertação. Fala e escuta. Som e também silêncio.

Quais futebóis queremos? Quais futebóis faremos?

Notas

[1] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201812/20181205182028_192.pdf

https://cbf7s.com.br/documents/regras-futebol-7

[2]  BETTI, Mauro. A Janela de Vidro: esporte, televisão e Educação Física.  Campinas, São Paulo: Papirus, 1998.

[3] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/07/26/racismo-e-tema-para-atletas-e-torcedores-durante-as-olimpiadas-de-toquio.ghtml

[4] https://observatorioracialfutebol.com.br/jogadoras-do-bahia-sao-alvo-de-comentarios-racistas-em-transmissao/

[5] https://ge.globo.com/mg/futebol/noticia/seguranca-do-mineirao-e-alvo-de-injuria-racial-de-torcedor-apos-cruzeiro-x-atletico-mg-olha-sua-cor.ghtml.

[6] PIMENTA, Izadora Silva. O discurso midiático e o racismo no futebol: uma abordagem sistêmico-funcional para a análise dos padrões de Julgamento. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2019.

[7] https://www.gazetaesportiva.com/bastidores/veja-os-principais-casos-de-racismo-na-historia-recente-do-futebol-brasileiro/#foto=1

[8] https://www.terra.com.br/esportes/santos/goleiro-aranha-e-alvo-de-ofensas-racistas-na-arena-do-gremio,a35122e4c2f18410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html

[9] https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2019/06/25/vitima-de-racismo-de-brasileiros-atleta-francesa-ja-venceu-fim-do-mundo.htm

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luciana Cirino

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da UFMG.

Como citar

COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues. Esporte e Cenas do Cotidiano: quais futebóis queremos?. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 6, 2021.
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