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Foi futebol, mas não apenas: a final da Champions League 2023-2024 em um cinema de Sobral (CE)

Queríamos fugir da monotonia do sábado de feriado de Corpus Christi em uma cidade tão católica. Por isso, dias antes, programamos assistir juntos a Borussia Dortmund e Real Madrid, a final da toda-poderosa Champions League 2023-2024. Em outros tempos, seria mais uma tarde em que amigos se reúnem para uma grande partida de futebol. Mas havia algo no ar que fazia com que aquele dia fosse diferente. Em meio à disputa pela taça, outra epopeia parecia transformar o ritual. Em campo estaria Vinicius Júnior, jovem e talentoso atleta brasileiro, potencial candidato a melhor jogador de futebol do mundo. Como jogador do Flamengo e, desde 2018, do Real Madrid, desde muito Vinicius Júnior, um negro retinto nascido em São Gonçalo, na Grande Rio, tem sido alvo preferencial dos mais cruéis e abjetos ataques racistas. Com o acobertamento cúmplice dos dirigentes das ligas futebolísticas e a omissão dos agentes da lei, seu cotidiano profissional tem sido marcado por xingamentos, depreciações e até pela teatralização de seu enforcamento.1 Contra a tendência de normalização dessa infâmia, Vinicius Júnior reage: “Enquanto a cor da sua pele for mais importante do que o brilho dos seus olhos, haverá guerra”, nos diz o jovem sobre sua filosofia de vida. Assim, se encontrando com uma tradição que nos remonta a gigantes como Jesse Owens e Muhammad Ali, ao lado de personalidades como Serena Williams, Lewis Hamilton e LeBron James, Vinicius Júnior tem mobilizado seu inegável talento dentro de campo para amplificar o coro do combate ao racismo. Definitivamente, para nós, aquela seria uma tarde de futebol. Mas não apenas.

Em Sobral, cidade do semiárido cearense em que trabalhamos e moramos, o espaço mais óbvio que tínhamos para sentir a temperatura do jogo era algum de seus vários bares. Mas seguimos outra rota e fomos ao cinema do único shopping da cidade – um lugar que, nos dias de hoje, ainda está pouco associado à paixão pelo futebol. Embora soubéssemos vagamente que cinemas passam algumas partidas importantes, nunca tínhamos assistido a um jogo na telona e não tínhamos muitas informações sobre como ocorreria a transmissão. Para essa escolha, pesou a nostalgia pelo Canal 100, o vibrante cinejornal que, entre o fim dos anos 1950 e a popularização da TV no país, mostrava aos brasileiros trechos de jogos emblemáticos dos seus principais clubes e de sua seleção, inclusive nas Copas do Mundo. Nossa geração (ambos nascemos no início da década de 1980) passou algum tempo vendo esses filmes na grade da extinta rede Manchete.2 Talvez aquela partida potencialmente histórica – a glória do atleta que atualmente trava as batalhas mais árduas contra o racismo – pudesse ressoar outros momentos épicos do futebol, os quais gerações anteriores à nossa puderam ver pela primeira vez no cinema.

Sobral
Sobral, Ceará. Fonte: Wikipedia

Com ingressos custando R$ 32,00 para adultos e R$ 16,00 para menores de idade e idosos, era nítido que a sessão se restringia às parcelas de maior poder aquisitivo da cidade. Ainda que mais baratos do que os valores cobrados em outras praças, os valores não nos pareceram suficientes para esconjurar a desigualdade social característica de uma cidade do interior do Nordeste.3 Chegamos pouco depois das 15h30, retiramos nossos tickets, adquiridos previamente, compramos água – a bombonière estava aberta e vendia habituais doces, refrigerantes e pipoca, mas não cerveja – e seguimos para a sala de exibição. O lugar estava cheio apenas como nas estreias dos maiores sucessos de bilheteria, indicando que a aposta das redes de cinema em jogos de grande repercussão tem sido um grande filão e que tendencialmente se expandirá ainda mais nos próximos anos.4

Esmagadoramente masculino e branco, o ambiente foi, em sua maioria, povoado por patotas de rapazes e fileiras de pais e filhos – o que leva a crer que o futebol ainda seja reivindicado como um espaço de reprodução de um certo ethos de masculinidade. Também era nítida a preferência dos presentes em se apresentar vestindo o uniforme do Real Madrid, embora surgissem aqui e ali algumas camisetas do Borussia Dortmund e da seleção brasileira.

A sala a qual o jogo foi transmitido tem 216 lugares, quase todos ocupados na ocasião, e segue o padrão confortável dos cinemas dos shoppings Brasil afora, com ótima qualidade de imagem e som. Ainda nos acomodando, percebemos que assistiríamos à transmissão da TNT Sports Brasil, que exibia o pré-jogo. Quando a partida se iniciou, porém, que tivemos o deslumbramento de vê-la na telona, cujo efeito é nos fazer achar que estamos realmente no estádio. A qualidade da transmissão em tudo contrasta com o cada vez mais costumeiro hábito de assistirmos a jogos pelas microtelas de nossos celulares e em canais suspeitíssimos no Youtube.

O primeiro tempo – sensação comum aos que viram o jogo – passou rápido demais. Contrariando as expectativas, o Real Madrid tomou um sufoco do Borussia Dortmund, que só não conseguiu abrir o placar pelos caprichos do destino. Aos poucos, a beleza da final e seus imponderáveis passou a dividir nossa atenção com o comportamento do público ali presente, que vibrava, aplaudindo com entusiasmo as grandes jogadas de ambos os times, como se de fato estivesse no estádio. O mesmo ocorria quando havia algum close em Vinicius Júnior. Logo percebemos que o jogador pelo qual mais torcíamos também era o eleito para a maior parte dos que estavam ali conosco. O ar-condicionado da sala, gelado para os dias de pouco movimento e comportamento blasé de plateias diminutas, não foi suficiente para quebrar com o calor da sala. Logo suávamos em bicas, empolgados com a partida e em adesão ao comportamento dos demais.

No intervalo do jogo, as luzes foram acesas para que os presentes pudessem ir ao banheiro e à bombonière, enquanto a transmissão do intervalo prosseguia sem que a plateia desse muita atenção. Afinal, o segundo tempo prometia. Valia mais a pena se preparar para o que estivesse por vir.

Vini Jr.
Vinicius Junior durante o jogo final da Liga dos Campeões 2024 entre Borussia Dortmund e Real Madrid. Foto: Maciej Rogowski / mrogowski_photography/depositphotos

O ritmo cadenciado desses 45 minutos não diminuiu a intensidade das manifestações da plateia, que literalmente se levantou em aplausos e gritos nos dois gols do Real Madrid – em especial no segundo, marcado por Vinicius Júnior. Pelo menos ali, no shopping em Sobral, tínhamos certeza de que nosso herói havia se consagrado. Mas, em ambos os casos, o barulho impediu que ouvíssemos a transmissão por um tempo. Não temos como precisar quanto esses momentos duraram (segundos? minutos?), mas ele pareceu se alargar com a vibração de todos os presentes.

Perto do apito final, o Borussia Dortmund fez um gol, que também foi muito aplaudido, em especial pelos poucos torcedores totalmente aderidos ao time alemão. Logo em seguida, porém, o árbitro marcou o impedimento, patente no replay do lance. Enquanto a celeuma não se resolvia, a minoria, de pé, comemorava, ansiando pela validação do tento. Nem nesse momento houve qualquer tipo de provocação aos fiéis gatos pingados amarelos.

Não percebemos entre torcedores cantos ou gritos específicos, como o conhecido bordão ¡Hala, Madrid! A plateia seguia, porém, o ritmo dos aplausos que as transmissões dos jogos internacionais tanto valorizam. Provocações e xingamentos, tão comuns nos estádios brasileiros mesmo com ao menos uma década de arenização do nosso futebol e seus efeitos de gentrificação das torcidas, não fizeram parte do repertório dos presentes. Mesmo em um ambiente tão masculino, em que mesmo raras mães das crianças se faziam presentes, podemos dizer que assistimos ao jogo em um ambiente civilizado e alegre.

O jogo acabou. Confirmando seu favoritismo, o Real Madrid mais uma vez se consagrou campeão da Champions. E se daquela plateia de homens brancos e polidez festiva nada podemos dizer seus compromissos politicos com as pautas antirracistas, sem ilusões podemos afirmar, mesmo embebidos pela eletrizante partida, que todos ali estavam rendidos a Vinicius Júnior, o jovem negro brasileiro que tem mobilizado seu talento pessoal como arma para a luta contra o racismo.

Foi sim uma bela tarde de futebol. Mas não apenas.

Vini Jr.
Fonte: Reprodução Redes Sociais/ Vini jr

Notas

1 Para mais informações, ver Marcus Vinicius Dias Magalhães, “Canal 100”. Que fim levou?, s.d. Disponível em https://terceirotempo.uol.com.br/que-fim-levou/canal-100-rede-manchete-4492. Acesso em 3 jun. 2024.

2 Até onde pudemos apurar, a transmissão das finais da Champions League nos cinemas do país se iniciou em 2011. Já a transmissão de jogos da Copa do Mundo ocorre desde 2014. “Final da Champions League será transmitida em 29 salas de cinema”. ESPN.com.br, 17 mai. 2012. Disponível em http://www.espn.com.br/noticia/252175_final-da-champions-league-sera-transmitida-em-29-salas-de-cinema. Acesso em 3 jun. 2024; e Guilherme Genestreti, “Salas de cinema oferecem transmissões ao vivo de jogos da Copa”. Folha de S.Paulo, 25 jun. 2014. Disponível em https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/06/1475515-salas-de-cinema-oferecem-transmissoes-ao-vivo-de-jogos-da-copa.shtml?cmpid=menupe. Acesso em 3 jun. 2024.

3 Por exemplo, em Goiânia (GO), a entrada para um adulto custava R$ 66,00, e em São Paulo (SP), a depender da rede de cinemas e do bairro escolhidos, tinha preços entre R$ 68,39 e R$ 79,79. “Final da Champions será transmitida em sala VIP de cinema em Goiânia: saiba onde”. Goyas: Órgão Democrata, 29 mai. 2024. Disponível em https://goyaz.com.br/final-da-champions-sera-transmitida-em-sala-vip-de-cinema-em-goiania-saiba-onde/. Acesso em 4 jun. 2024.

“Cinemas transmitem final da Champions League entre Borussia e Real Madrid”. Esportividade: o Guia Esportivo da Cidade, 29 mai. 2024. Disponível em https://esportividade.com.br/cinemas-transmitem-final-da-champions-league-entre-borussia-e-real-madrid/. Acesso em 4 jun. 2024.

4 Para mais informações sobre os ataques racistas ao jogador, ver Alex Kirkland, “Vinicius Jr. no Real Madrid: os casos de racismo contra o brasileiro na linha do tempo”. ESPN.com.br, 21 mai. 2024. Disponível em https://www.espn.com.br/futebol/laliga/artigo/_/id/13686329/vinicius-jr-real-madrid-racismo-casos-linha-do-tempo. Acesso em 4 jun. 2024.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Íris Morais Araújo

Antropóloga, torcedora do Santos Futebol Clube e professora na Universidade Estadual do Vale do Acaraú, em Sobral (CE).

Rodrigo Chaves de Mello

Cientista Político, Botafoguense, Militante Anticapitalista e Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú.

Como citar

ARAúJO, Íris Morais; MELLO, Rodrigo Chaves de. Foi futebol, mas não apenas: a final da Champions League 2023-2024 em um cinema de Sobral (CE). Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 17, 2024.
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