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“Fute de quinta” na Casa Nipo: uma forma de arte

Luciana Rika Ito 11 de julho de 2024

Moro em uma moradia estudantil chamada Casa do Estudante Nipo-brasileira de Brasília, onde ocorrem os “futes de quinta”. Hoje ele começou às nove da noite. A temperatura tem caído rápido nesses dias de inverno do deserto de Brasília. Quando me sentei com os meninos para fumar um resto de paiero já era de gelar os pés. 

A quadra, ainda debilitada pelo pós-arraiá e do resto das cinzas do fogaréu do fim de semana, apresenta sequelas já de muito antes, com um chão cheio de fissuras e pedaços faltando. Como a tinta não é própria para as quadras que ficam ao ar livre, traz alguns riscos para quem se aventura a jogar descalço. Metade com camisa e a outra sem, os jogadores não parecem sentir o frio que sinto sentada ali entre homens suados.

O Plano Piloto na Capital do país é um lugar que oferece bons lugares para a prática de esportes e não faltam espaços para o lazer. Cada quadra oferece locais para a prática desportiva muito próprios, todas ao ar livre. Vejo com frequência pessoas trajadas de roupas de esporte saindo por entre os prédios indo ou vindo desses espaços. É comum sair cedo para uma corrida e dar de cara com diversas outras pessoas indo correr também. As ciclovias trazem segurança tanto para quem caminha quanto para os próprios ciclistas que não precisam disputar espaço com os automóveis, além de contar com muita sombra natural das árvores espalhadas por todo o trajeto. 

quadra
Fonte: Wikipedia

A Casa Nipo é uma exceção à regra. Poder ter uma quadra dentro da sua casa é algo fora do normal, pelo ao menos para a grande maioria dos residentes. A vida universitária já nos priva de muita mobilidade ao longo dos anos e ter esse espaço para extravasar o estresse na segurança de sua morada é para poucos. A preocupação da cultura nipo-brasileira com os esportes tem reflexos profundos na forma de se fazer comunidade. Um dos moradores mais antigos da Casa brinca dizendo que é bem possível que a quadra existisse mesmo antes da fundação da moradia do tanto que somos apaixonados por esportes. 

São muitos exemplos de esportes que a infraestrutura das associações nipo-brasileiras são capazes de oferecer. Eu, por exemplo, pratiquei por dez anos o kendô, uma luta de espadas de bambu, com professores voluntários no clube da associação do bairro onde cresci. Da minha academia saíram diversos atletas que participaram de competições latino-americanas e mundiais representando o Brasil, um esporte basicamente formado de atletas vindos da estrutura desses clubes nipo-brasileiros.

De volta à quadra. Os times são divididos aleatoriamente, cada qual com quatro pessoas, três na linha e uma no gol. Os jogos costumam durar de cinco a dez minutos variando a depender daqueles que fizerem os dois primeiros gols, saindo sempre o time perdedor para entrar o próximo. O simples ato de jogar bola tem unido gerações. Márcio, um ex morador, traz seus amigos para jogar, os meninos da Casa são poucos hoje e há outros que foram convidados uma vez e que mesmo depois de seus amigos moradores já terem saído da Casa, continuam vindo. A quadra tem estrutura, apesar do desgaste do tempo. São pelo menos 30 anos aguentando as muitas mudanças bruscas de temperatura do clima de Cerrado.

Arthur, um dos mais novos a entrar na Casa, aparece e tira o chinelo para jogar descalço. É quando Will, outro morador mais velho, com uma lesão no tornozelo de outros jogos, oferece a ele as suas chuteiras, que não são recusadas, são do tamanho certinho. Ele é obrigado a ficar sem camisa, pois o time com camisa não parece sair tão cedo. 

O fute de hoje foi uma pataquada. Com a presença (ilustre!) de um ex-jogador da base do São Paulo, os jogos não passavam do empate, com o gol final sempre do time de Augusto. Foram duas horas sem parar, eles não perderam uma enquanto ele jogava e cada gol, um mais bem marcado que o outro. Márcio disse que pediu para Augusto pegar leve, e brincou falando que não o chamaria mais. Os meninos saem com cara de derrota sem nem terem como pensar que foram humilhados. 

Como não sou uma fã assídua do futebol, sempre acabo por ficar ali a observar detalhes que não são muito futebolísticos. Sento-me no chão de cimento sob um declive e me coloco a analisar camisas de time, sempre muito variadas e que acabam marcando cada um. Um dos meninos veio jogar com a camisa do E. C. Bahia, hoje. Está pequena nele mas, curiosamente, não fica estranha. Separada em faixas por uma linha branca com as cores azul celeste e vermelho encarnado se intercalando. Pergunto porque há tantas pessoas usando a camisa desse clube por aí. Palácios, um dos amigos de um ex-morador da Casa Nipo, diz que “hypou”; mas que no caso dele, ele era realmente torcedor do time, o que explica ela estar curta e apertada. O brasão é um clássico círculo, com escritas nas bordas e as cores do time em forma de bandeira no centro. A combinação das cores parecem enaltecer a bandeira do Estado da Bahia, o que a deixa ainda mais bem construída, o simples no belo.

Desde que vim morar na Casa, vi muitos “futes” nessa quadra. Era um evento, muitos se sentavam ao meu lado para assistir, não duravam muito e logo já se levantavam e seguiam rumo. Em épocas de maior engajamento dos moradores tinha até torcida, com comentários entre trocas de afeto e xingamento, o que gerava muitos risos, eram na maioria meninas que não poupavam comentários. As namoradas também ficavam ali olhando e esperando o gol delas. Eu era muitas vezes a companhia delas, papeando sobre assuntos quaisquer até elas cansarem e irem fazer suas coisas. Hoje em dia, como não são muitos moradores participando, fico só em meio aos homens, “jogando” conversa fora. 

Eles não parecem se incomodar com a minha presença, meu balbuciar parece chegar até eles, que me devolvem sorrisos tímidos. Meus comentários não passam de asneira, “cacetada, que golaço!” “cara, que maestro!” “porra, esse time não sai mais não?”, eu pareço mais um tio torcedor de times de bairro. É meu momento de soltar palavrões que não me são permitidos em horário comercial. Tem sido uma terapia ao longo desses dois anos de Casa; mesmo exausta, fico até acabar. O de hoje foi até bem perto da meia noite. 

Em uma dessas conversas, a estrela da noite vem ao nosso encontro, já cansado de nos dar um show. Conta ele que jogou na base dos 12 aos 17 anos, na cidade de Cotia, localizada na Região Metropolitana de São Paulo, mas que desistiu após ver muitos problemas no clube em que jogava. Uma pena pensar que a carreira de alguém pode ser encerrada por problemas que vão muito além do simples ato de jogar bola. Hoje em dia, um homem já mais velho, é incapaz de enxergar o futebol com bons olhos apesar de amar e jogar demais. A naturalidade com que ele joga em quadra não combinam com o futebol que vemos em jogos televisionados, tudo parece ter se tornado mercadoria, para ele “parece tudo comprado”. 

O último jogo acaba com a frase “saideira, saideira!”, o primeiro time que fizer 5 gols é o vencedor. Sempre demora muito porque estão todos exaustos. Assim que termina, as pessoas vão se retirando uma a uma, de volta para suas casas. São sempre boas as conversas que tenho ao vir vê-los jogar. São pessoas ocupadas, com vidas tão diversas, de lugares distintos uns dos outros, mas unidas pelo “fute de quinta”. Apesar de não entender muito bem dos lances e só saber gritar coisas simples, ainda gosto de ver homens suados correndo atrás de uma bola. Não estou ali para contemplar a beleza de homens sem camisa. O que estou fazendo não passa de lazer, ver beleza nos corpos se movendo, parar e contemplar o futebol como uma forma de arte. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luciana Rika Ito

Sou formada em relações internacionais, curso a minha segunda graduação em ciências sociais na UnB e estou em processo de graduação para seguir pesquisando em antropologia urbana.

Como citar

ITO, Luciana Rika. “Fute de quinta” na Casa Nipo: uma forma de arte. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 11, 2024.
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