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Futebol e infância: a importância da inserção das crianças nos estudos sobre torcidas

Maria Silva 2 de julho de 2024

Inseridas na infância, categoria geracional e estruturante da sociedade (QVORTRUP, 2010), as crianças1 fazem parte da multidão de apaixonados que acompanham as agremiações esportivas nos estádios brasileiros, lugar onde aprendem, significam e produzem cultura torcedora.2

Cabe destacar que a presença das crianças nesse espaço-tempo futebolístico não é algo recente. Apesar de raros (DAMO, 2021), alguns registros fotográficos produzidos no início do século XX – época em que o desporto era uma atividade recém introduzida no país e a sua prática e contemplação eram restritas às famílias integrantes das elites econômicas e sociais (MASCARENHAS, 2014) – exibem meninos e meninas acompanhando adultos nos estádios.

Apesar disso, os estudos sobre a presença das crianças na arquibancada, bem como as problemáticas que impactam as suas experiências neste lugar, ainda são pouco explorados pela academia. Um levantamento realizado no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) permite ilustrar esse cenário. Na análise, não foram encontrados trabalhos relacionados aos descritores “crianças e torcida” e “infância e torcida” que abordassem as crianças no exercício do papel de torcedoras – diferente do que acontece quando a busca é feita associando, por exemplo, o descritor de “torcida” à categoria de “juventude”, onde a quantidade de pesquisas registradas é expressiva.

Considerando a necessidade do desenvolvimento de investigações sobre a abordagem levantada, o presente texto tem como objetivo apresentar uma discussão introdutória acerca da importância da inserção das crianças como sujeitos dos estudos sobre torcidas de futebol.

Torcida
Foto: Fabio Soares/ Futebol de Campo

Crianças como sujeitos ativos da sociedade

A partir da década de 1980, as transformações sociais, os avanços dos Estudos da Infância e o estabelecimento de leis e políticas públicas contribuíram para o reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos e agentes co-construtores de cultura (SARMENTO, 2013).

Ainda assim, em uma sociedade que funciona sob uma perspectiva adultocêntrica, vê-se que, na prática, as crianças não têm os seus direitos, demandas e narrativas plenamente considerados nos contextos políticos, sociais e econômicos. Essa conjuntura está vinculada ao sentido de infância historicamente compartilhado na sociedade.

De acordo com a etimologia, o termo “infância”, derivado do latim infantia, sugere “aquele que não fala”. Essa significação entende a infância como “o lugar do detentor do discurso inarticulado, desarranjado ou ilegítimo” (SARMENTO, 2005, p. 368). A referida interpretação não se limita apenas à origem da palavra, mas também está relacionada à maneira como os indivíduos de outras faixas etárias, especialmente os adultos, compreendem e interagem com as crianças no meio social.

A partir dessa concepção da infância, as crianças têm sido consideradas incapazes, inexperientes e imaturas para atuarem na sociedade. Essa construção social, iniciada no século XVI, resultou na simbólica separação entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças (ARIÈS, 1983). Nesse contexto, a função historicamente atribuída à figura da criança tem sido a da preparação em instituições educacionais ou no espaço privado da família, de modo a conquistar as habilidades necessárias para atuar na sociedade quando crescer. Concomitante a isso, a lógica de uma infância ideal perpassa o princípio de retirada da criança de diversos espaços que compõem o mundo, sobretudo aqueles julgados como perigosos e inseguros para os indivíduos da categoria. Em contrapartida, os adultos são reconhecidos como sujeitos legítimos para participarem na vida pública.

No entanto, a realidade é que, mesmo que de forma não outorgada, as crianças ocupam, integram e ressignificam lugares e grupos – inclusive aqueles que, frequentemente, não estão relacionados a essa lógica tutelada e privada. Nesse sentido, concordo com Gomes (2021, p. 40) que “as crianças vivem suas infâncias no aqui e no agora e não há um momento específico para uma hipotética entrada na sociedade, pois elas estão e nascem dentro da e na sociedade”. Portanto, é necessário considerar o que elas pensam, como agem e quais desafios enfrentam nos espaços que estão inseridas, como nas arquibancadas dos estádios de futebol.

Crianças torcida
Fonte: Twitter oficial do Vasco

Crianças torcedoras: uma abordagem necessária

As crianças, enquanto sujeitos que constituem a torcida, desempenham um papel ativo e fundamental na reprodução do conjunto de símbolos e elementos que identificam o grupo, como cânticos e coreografias, o que contribui para a manutenção da cultura torcedora. Portanto, defendo a tese de que elas não são meras acompanhantes de seus responsáveis. Estabelecendo relações com seus pares e adultos, as crianças, nos estádios brasileiros, se apropriam da arquibancada de forma potente: elas entoam cânticos a plenos pulmões, gritam, xingam, pulam, abraçam, se contorcem, se emocionam, sobem nas cadeiras, tremulam bandeiras, participam da elaboração das festas que antecedem as partidas, tocam instrumentos nas baterias das torcidas organizadas, além de outras práticas torcedoras.

Contudo, essa reprodução não é mecânica e desprovida de sentido. Isso porque as crianças podem significá-las de maneira própria e distinta do grupo. Corsaro (2002) fundamenta essa abordagem, indicando que as crianças não simplesmente aprendem a cultura adulta, mas integram-se a ela e a interpretam ao seu modo. Ou seja, essa ação de inserção na cultura ocorre sob uma perspectiva dual, manifestada tanto pela reprodução de sentidos comuns aos adultos, quanto pela produção de novos sentidos entre pares.

No que tange a isso, um dos entrevistados da pesquisa de Coelho (2017) revela, por exemplo, que, quando criança, cantava pelo clube motivado pelo desejo singular de marcar no próprio corpo o impacto que o jogo teve sobre si. Assim, a finalidade era que os outros reconhecessem esse rastro de entrega pessoal destinado ao time:

(…) uma fala do torcedor PiuPiu da Young Flu, em uma conversa descompromissada durante um jogo de juniores nas Laranjeiras foi bastante significativa: “lembro de quando era moleque que queria voltar rouco do jogo, eu queria chegar na escola e mostrar que eu estava rouco. Eu chegava a continuar cantando em casa para ficar mais rouco ainda (COELHO, 2017, p. 24).

Tendo isso em vista, nota-se que dialogar com as crianças nas pesquisas sobre torcidas é uma possibilidade de conhecer outros arranjos subjetivos que vêm à tona nas experiências construídas por elas, na arquibancada. É, também, uma oportunidade de compreender o que as crianças têm a dizer sobre as decisões políticas, sociais e econômicas que atravessam esse espaço e que, muitas vezes, referem-se a elas.

Um destes aspectos é a grande variação das regras de acesso de crianças nos estádios brasileiros. Nesse contexto, as determinações são distintas, a depender do Estado ou das diretrizes do próprio clube. No Rio de Janeiro, a título de exemplo, há a Lei n. 4.476/2004, que regulamenta o acesso gratuito de crianças menores de 12 anos de idade às atividades desportivas realizadas em estádios e ginásios localizados no âmbito do Estado. Já em São Paulo, há a Lei n. 11.256/1992 que determina a gratuidade para menores de 12 anos e maiores de 60 anos de idade somente no Estádio do Pacaembu. No entanto, cabe lembrar que o estádio foi concedido à iniciativa privada e está fechado para obras desde o ano de 2021. Enquanto isso, em alguns estádios privados de São Paulo, como o Allianz Parque, todas as crianças devem pagar ingressos, decisão que gera muitas críticas e reivindicações ao clube paulista.

Outro tema a ser discutido refere-se à noção comumente compartilhada pelo senso comum e pela mídia de que as torcidas organizadas são grupos que promovem a violência nos estádios e, consequentemente, ameaçam a segurança das crianças. Contudo, é possível verificar que diversas crianças fazem parte de torcidas organizadas. Nesse sentido, é necessário indagar as crianças, sujeitos envolvidos neste contexto, sobre o que elas pensam sobre essa conjuntura, e não somente construir narrativas hipotéticas baseadas em noções tuteladas de infância.

Uma pesquisa importante neste sentido foi desenvolvida por Magalhães (2021), onde a autora verificou se as condições estruturais de segurança, conforto e privacidade oferecidas nos estádios da Primeira Liga Portuguesa são adequadas para as crianças torcedoras. Para compreender esse cenário, a autora se propôs a entrevistar adultos e as próprias crianças, o que revela uma preocupação legítima sobre o que elas têm a dizer. Embora voltado a um contexto europeu, o trabalho de Magalhães (2021) é relevante, pois permite a identificação de determinadas dificuldades que, possivelmente, também são enfrentadas por meninos e meninas que torcem nos estádios brasileiros.

Para além da abordagem que articula crianças e a segurança dos estádios, cabe também destacar outro trabalho interessante, desenvolvido por Silva (2014). Apesar de não investigar as crianças na posição de torcedoras, o autor constrói análises sobre as brincadeiras e as relações intergeracionais e intrageracionais construídas por meninos à beira de um campo de futebol amador na cidade de Catingueira, na Paraíba, sobretudo no que tange à reprodução interpretativa do uso da linguagem e as questões de gênero. Em interlocução com as crianças, é possível verificar que o estádio é um espaço de produção de masculinidades e que as brincadeiras e falas das crianças são perpassadas, também, por essa condição.

Assim, constata-se que as crianças são sujeitos que integram as dinâmicas e práticas culturais nas arquibancadas, visto que (re)produzem criativamente um conjunto de códigos e significados existentes nesse espaço. Portanto, não há motivos para desconsiderar os seus pontos de vistas nos estudos sobre torcidas. Desse modo, é preciso ouvi-las nas produções científicas, não por serem “o futuro da arquibancada” – discurso comumente reproduzido pelos adultos – mas por já participarem, enquanto crianças, desse lugar.

Considero importante, ainda, que as  perguntas norteadoras de pesquisas que se voltem à temática das crianças enquanto sujeitos que torcem, nos estádios, estejam intrinsecamente articuladas aos marcadores de gênero, raça e classe, favorecendo a visibilidade de narrativas dos grupos historicamente invisibilizados e silenciados no Brasil.

Notas

1 Compreende-se que as crianças são indivíduos que têm de 0 a 12 anos incompletos de idade, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8.069/1990).

2 Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ) e bolsista CAPES-PROEX. Integrante do Território dos Estudos da Infância (TEI/UERJ) e do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFUT/UFMG).

Referências

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1983.

COELHO, Gustavo. Estádios sem mito: cadeiras e esquizofrenia. Revista Esporte e Sociedade, n. 29 (12), 2017.

CORSARO, William Arnold. A reprodução interpretativa no brincar ao faz-de-conta das crianças. Educação, Sociedade e Cultura, Porto, Portugal, n. 17, p.113-134, 2002.

DAMO, Arlei Sander. Dos Grounds às arenas – as quatro gerações de estádios brasileiros em perspectiva antropológica. Museologia e Patrimônio. Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 212-246, 2021.

GOMES, Lisandra Ogg. Infância, participação e socialização. Psicología, Conocimiento y Sociedad, v. 11, n. 1, p. 85-96, 2021.

MAGALHÃES, Maíra Uchôa. Espaço Para Crianças Nos Estádios De Futebol Da 1ª Liga Portuguesa: Um Estudo De Caso. Dissertação (Mestrado em Estudo da Criança) – Universidade do Minho, Portugal, 2021.

MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.

QVORTRUP, Jens. A infância enquanto categoria estrutural. In: Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 36, n. 2, p. 631-643, 2010.

RIO DE JANEIRO (Estado). Lei Estadual n. 4.476 de 28 de dezembro de 2004. Assegura o acesso gratuito, aos menores de 12 (doze) anos que estejam acompanhados de responsável, às atividades desportivas realizadas em estádios e ginásios localizados no Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: https://abrir.link/DZUvB. Acesso em 27 de mai. 2024.

SÃO PAULO (Cidade). Lei Municipal n. 11.256 de 6 de outubro de 1992. Isenta de pagamento de ingresso em jogo de futebol, oficiais e amistosos, no Estádio Paulo Machado de Carvalho, menores de 12 anos e maiores de 60 anos de idade, e dá outras providências. Disponível em: https://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-11256-de-6-de-outubro-de-1992. Acesso em: 27 de mai. 2024.

SARMENTO, Manuel. Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da infância. In: Revista Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p.337-712, 2005.

SARMENTO, Manuel. Sociologia da Infância e a sociedade contemporânea: desafios conceituais e praxeológicos. In: ENS, Romilda T.; GUARANHANI, Marynelma C. Sociologia da infância e a formação de professores. Curitiba: Editora Champagnat, p.13-46, 2013.

SILVA, Antonio Luiz. Jogando pelas beiradas: Sobre o vivido de meninos e homens num estádio de futebol em Catingueira-PB. Cadernos de Campo (São Paulo, 1991), São Paulo, v. 22, n. 22, p. 103-117, 2014.

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Como citar

SILVA, Maria. Futebol e infância: a importância da inserção das crianças nos estudos sobre torcidas. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 2, 2024.
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