O futebol não é só um jogo. É uma forma de vida. É uma cultura. Se você não respeita e não compreende sua cultura, você perde sua identidade. Sem identidade você não cria, não imagina, não supera os obstáculos do jogo e da vida. A sanha em reproduzir o estilo de jogo europeu evidencia que estamos cada vez mais nos afastando de nós mesmos. Quase todos os analistas de futebol sugerem a reprodução do que “da certo” na Europa com relação ao estilo de jogo. Mas não entendem que “domar os corpos” do jogador brasileiro é amputar sua liberdade criativa. É limitar a sua possibilidade imaginativa.
Joel Rufino dos Santos ilustra essa percepção em seu livro “História política do futebol brasileiro” trazendo o caso de Fausto – a Maravilha Negra – melhor centro médio do futebol brasileiro na década de 30: “Fausto sempre jogou futebol com raiva. Ia na bola como num prato de comida. Jogava sério e encarava o futebol como meio de escapar à pobreza, ganhar dinheiro para poder desfrutar a vida em gafieiras e rendez-vous, muita cachaça e violão.”; e prossegue:
“É difícil encontrar um brasileiro que não tenha a sua história de futebol. Meu pai, por exemplo, contava que viu Lelé arrancar as balizas do velho campo do Madureira com um petardo da zona do agrião. Eu prefiro esta, de Fausto dos Santos, a Maravilha Negra, embora seja uma história triste. É que nela está o retrato de corpo inteiro do nosso futebol: a arte popular em luta contra os sistemas de jogo importados.”
Itália e Fausto, dois atletas do Vasco que defenderam a Seleção Brasileira na Copa de 1930. Foto: Reprodução CBF / Arquivo CR Vasco da Gama
E aqui recorro ao historiador francês Serge Gruzinski para utilizar o conceito “Colonização do imaginário”. O que quero dizer com isso ? Que no campo de jogo tal qual no jogo da vida estamos reproduzindo comportamentos mirando num modelo de “civilização” que não nos representa, que tira nossa potência, que domestica o corpo. Num modelo de sociedade que sempre precisou da força e da violência pra impor seus conceitos, suas vontades e que nos castra. E nós introjetamos, enquanto país que por muito tempo sofreu com a catástrofe da colonização – o futebol é, também, um “legado colonial” de acordo com o professor Gilmar Mascarenhas – da escravidão e do controle do corpo, essa ideia. Não. Não é necessário ignorar o que se faz pelas bandas de lá. Mas é preciso, urgentemente, resgatar os signos que nos fazem únicos. E o futebol é uma ferramenta que traduz de maneira evidente essa perda cada vez maior da nossa identidade devido a imposição de uma métrica, um modelo, uma tática e um jeito específico de jogar.
Precisamos nos “deseducar” pra desapegar desse método para que possamos voltar a nos entendermos e nos reaproximarmos novamente daquilo que nos define. Não é na força, na velocidade ou na tática que vamos virar o jogo. É na síncope: deslocamento rítmico que possibilita o preenchimento dos espaços vazios entre uma marcação e outra do tempo musical e que, no futebol, se reproduz enquanto domínio do espaço/tempo para superação do adversário em busca do vazio no campo de jogo pelo drible, assimilando que há caminhos variados e que, nem sempre, o menor trajeto entre dois pontos é uma reta. Os lançamentos parabólicos do Gerson me conferem razão.
O futebol pobre, hermenêutico e sem criatividade é um sintoma de uma sociedade que cada vez mais se permite “ser o que não é” e se nega a assumir sua identidade. E quando lhe é negado tudo “o que é” para ser o que não é perde-se o encanto. O propósito. A paixão. Perde-se a si próprio. É flagrante que nós necessitamos nos achar, pois estamos completamente perdidos. Só assim é possível buscar o placar e virar o jogo. E aí meu camisa 10, vai tocar de lado ou vai desafiar as leis da física e reinventar o tempo/espaço pra fazer a jogada mágica e inesperada rumo ao triunfo e buscar teu reencontro contigo mesmo?
Considerações finais da pesquisa (parte 1): Os clubes sociais como caminho de categorização para a preservação do futebol varzeano
Alberto Luiz dos Santos, Aira F. Bonfim, Enrico Spaggiari
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