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Futebol no território da Rodrigo de Cima

Plínio Labriola Negreiros 19 de julho de 2022

Há uma lacuna nos anais da história do futebol. Mesmo diante de grandes feitos, no limiar de verdadeira epopeia, esses jogadores estão esquecidos: Donato, Fábio, Evaristo, Júnior, Didi, Renê, Jaiminho, Rainer, Geraldo, Renato, Nenê e Gisleno. Apenas sobreviveram os registros de memória, destes amantes do futebol e daqueles que os viram, ou ouviram, jogar bola. Isto, na primeira metade dos anos 1970. É a lembrança do futebol de rua em um bairro muito particular de São Paulo.

Eram 13 jogadores, os 12 citados mais quem vasculha a memória para narrar, e talvez entender, o cotidiano de meninos entre 9 e 12 anos que moravam na rua Doutor Rodrigo de Barros, no seu primeiro quarteirão. Ou melhor, na Rodrigo de Cima, um território. Existiam outros meninos neste território, mas eles não queriam, ou não podiam, ocupar a rua, descobrir seus infinitos mistérios e possibilidades de aventuras, acrescidos, sem dúvida, dos muitos perigos.

A mais recorrente dessas aventuras, que davam sentido à nossa amizade e encontros: dividir os 13 em 2 equipes de forças futebolísticas equivalentes, traçar as regras da disputa, escolher o melhor lugar da rua, marcar as traves com pedras ou latas, e começar a jogar.

O doutor Rodrigo Antônio Monteiro de Barros, o homenageado nesse logradouro, esclarece o excelente Dicionário de Ruas do Departamento do Patrimônio Histórico da cidade de São Paulo,

Nasceu em Minas Gerais. Logo após sua formatura em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1827, fixou residência em São Paulo. Exerceu os cargos de juiz de fora, ouvidor, juiz de direito e chefe de polícia. Em 1842 foi nomeado desembargador da Relação de Pernambuco. Eleito deputado à Assembleia Geral em várias legislaturas, representou a Província de São Paulo com patriotismo e independência. Deixou um filho com o mesmo nome, formado em Direito pela Faculdade de São Paulo em 1854. Faleceu em São Paulo em 28 de fevereiro de 1844.

Os amigos da Rodrigo de Cima não tinham nenhuma ideia da importância desse quase conterrâneo. Por que será que veio para a província de São Paulo? Seria efeito da decadência da exploração de ouro e diamantes nas Minas Gerais? Por outro lado, foi designado para um cargo no Judiciário da rebelde Pernambuco, fazendo parte da estratégia política do Segundo Reinado de não permitir a ascensão das elites locais espalhadas pelo Brasil do século XIX?

A Doutor Rodrigo de Barros é uma rua de três quadras desiguais, as duas primeiras com 250 metros cada e a terceira, com menos de 100 metros. Tem início na avenida Tiradentes e termina na avenida do Estado, que margeia o rio Tamanduateí. O lado direito da rua, para quem literalmente desce em direção ao final da rua, há uma primeira quadra bastante interessante, quase toda ela de propriedade de instituições ligadas à Igreja Católica. Dois espaços se destacam: o imponente Mosteiro da Luz, que nasceu como Recolhimento ainda no século XVIII, dirigido pelas freiras carmelitas e observadoras da clausura. Em 1970, sem muita boa vontade, o mosteiro cedeu parte das suas instalações para o Museu de Arte Sacra de São Paulo. Em uma parte dessa quadra, fica a casa do arcebispo de São Paulo, em construção do início dos anos 1970.

A quadra da Rodrigo de Cima era completada pelas ruas Alfredo Maia e Jorge Miranda. Parte considerável dessas ruas sediam instituições da Polícia Militar de São Paulo, como o quartel da Luz com a Rota (que tem entrada na avenida Tiradentes), a Cavalaria, a Tropa de Choque, a Farmácia, o Batalhão de Guardas, entre outros tantos segmentos. Essa presença, como se verá, era fundamental para os amigos da Rodrigo de Cima.

Casas típicas da rua Rodrigo de Barros, construídas em 1935.. Fonte: reprodução Google Maps
O bairro da Luz, espaço do qual essas referências estão inseridas, tinha a marca do uso múltiplos dos espaços: residências, comércios, serviços e indústrias. No bairro e arredores – Canindé, Bom Retiro, Pari, Ponte Pequena, Ponte Grande, Santa Ifigênia – tinham escolas, privadas e públicas, de todos os níveis, muitos templos religiosos cristãos, o famoso presídio Tiradentes e muitas fábricas de diversos produtos. Em função disso, os moradores do bairro da Luz sentiam os aromas de café da Torrefação Tiradentes e de doce, da Confiança, além das bolachas da Tostines.

Alguns campos de várzea estavam presentes, ainda que um pouco distantes. No espaço onde nascia o rio Tamanduateí, afluente do Tietê, eram três desses campos. Lá havia vários clubes de várzea e as disputas dominicais eram concorridas. Entre esses clubes, havia o Corinthians do Bom Retiro e o Sul-Americano.

Outra importante referência para a região, foi a construção da primeira linha do metrô na cidade, que começou ao final dos anos 1960. A partir de 1972, a construção das estações Tiradentes e Ponte Pequena. Nestes espaços, brincamos muito. Excetuando o presídio, que mal sabíamos da existência e, portanto, não tínhamos ideia da sua importância, tudo mais nos atraia, de uma forma ou outra, aos amigos que se encontravam para jogar bola. O presídio Tiradentes foi demolido em 1972.

A multiplicidade de funções do bairro, associadas à pequena distância do centro da cidade, da estação rodoviária e da Boca do Lixo/Luxo, trazia para o bairro famílias de classe média baixa e mesmo bem mais pobres. Na Rodrigo de Barros, ao lado das casas e dos sobrados, já existiam alguns cortiços, onde muitos dos amigos moravam. Havia (e há!) moradias ainda muito mais precárias na região, caso dos porões das casas e sobrados ocupados, muitas vezes, por mais de uma família. A disparidade econômica entre os moradores dos moradores da rua e do bairro era grande.

Dessa disparidade, resulta em meninos com história que se aproximam e que se distanciam. Havia os que não tinham pai; proporcionalmente, não eram poucos. Eu sabia que esses pais tinham morrido, mas não sabia como e não lembro se tinha alguma curiosidade sobre isso. Entre os pais, havia quem não trabalhasse. Como meu pai trabalhava muito, eu achava isso estranho. Quase todos eram de São Paulo, mas um era mineiro e outro, boliviano. Inclusive, não eram poucos os bolivianos na região, assim como havia uma forte presença de armênios. Na rua Alfredo Maia, morava uma família vinda da Bolívia e que tinha muitos filhos homens, nossos rivais esporádicos no futebol. Assim, como não eram poucos os migrantes nordestinos.

Muito concatenado com a época, quase todos estudavam na escola pública, nem sempre nas escolas mais próximas da nossa rua. Não era fácil encontrar vagas e havia famílias que buscavam as melhores escolas. Eu e meu irmão éramos exceções, porque frequentávamos uma escola católica no Bom Retiro. Minha mãe fazia questão disso. Nessa escola, algo fundamental: podia-se jogar futebol de campo, no que chamávamos de terrão. Foi lá que eu aprendi a gostar de jogar futebol. E a gostar do futebol.

Havia negros entre os amigos e para nós nada mais normal. Tenho a impressão que para alguns pais isso não era tranquilo. Existiam uma série de preconceitos e o racial era um deles. E era um preconceito explícito e naturalizado. Não esqueço quando fui alertado por uma professora do primário, quando tinha uns oito ou nove, que, ao me ver na rua de casa brincado com um amigo negro, disse que aquele menino não era uma boa companhia para mim. Vale também lembrar que eu não levei a professora a sério. E, talvez, o preconceito contra os nordestinos fosse mais forte.

Outra realidade precisa ser revelada: começava-se a trabalhar muito cedo. Em geral, o trabalho mais procurado e encontrado era o de office-boy. O mais cobiçado era o de meio-período de trabalho, o que permitia que o novo trabalhador, com 12 ou 13 anos, pudesse continuar a estudar durante o dia. Mas, na região da Luz, o trabalho fabril era recorrente para quem começava a trabalhar. Em especial, havia pequenas fábricas de calçados. E o trabalho era muito duro. Por isso, quando os meninos começaram a fazer 13 anos, progressivamente a ocupação da rua para o jogo de bola foi minguando.

Nossos encontros e jogos ocorriam o ano todo? Tenho uma falsa memória de que todos os dias estávamos juntos. Na realidade, os encontros mais recorrentes ocorriam durante as nossas férias escolares, no verão e no inverno. As aulas terminavam no fim de novembro e recomeçavam em no início de março. Eram abençoados três meses de férias. Claro, com as muitas tarefas para o período de descanso – leitura de livros, lista de exercícios, entre outras – e que apenas começávamos a fazer na última semana de fevereiro. Nas férias, sim, todos os dias fazíamos coisas juntas. Durante as aulas, nossos encontros eram nos fins-de-semana, que curtos porque era comum as aulas de sábado. E que coisas fazíamos além do futebol?

Não faltavam atividades: fazer e empinar pipas (especialmente nas férias de julho), fazer e tentar soltar balão, quebrar coisas em geral, como vidraças, lâmpadas do espaço público, provocar barulho com bombinhas e morteiros, brincar no metro em construção, andar pelo bairro, roubar frutas no quarteirão do Mosteiro da Luz e da casa do arcebispo. E muitas coisas mais. As reclamações que os pais recebiam eram recorrentes. Não houve, por conta disso, poucas punições.

Em relação à provocar barulho com bombinhas e morteiros, gostávamos muito de alguns experimentos. Em um deles, no meio da rua, acendíamos um ou mais morteiros e em cima colocávamos uma pequena lata. Com a explosão, a latinha saia voando pelos ares, muitas vezes em direção de uma luminária da rua. Nossa alegria era diretamente proporcional à altura atingida pela latinha. Outra experiência era a de acender um morteiro na entrada de um prédio. O objetivo era potencializar o barulho. É possível que essas brincadeiras, que os adultos não recebiam bem, tenha produzido o desejo daqueles meninos em enveredar para áreas ligadas à ciência e tecnologia.

Mas o jogar bola era o que mais gostávamos. Só jogávamos futebol na rua? Em regra, qualquer espaço era buscado. A rua era mais viável nos fins de semana, porque o fluxo de automóveis era menor, sendo poucos os carros estacionados na rua. Mas íamos atrás de qualquer espaço. Como em frente à antiga sede da Politécnica/USP, que ficava bem próximo da Rodrigo de Barros.

O espaço mais bem-vindo eram as quadras esportivas que ficavam dentro dos quartéis da região. Com a bola debaixo do braço, já conhecíamos o ritual: dizíamos à sentinela que queríamos conversar com o oficial do dia, momento que no qual era feito o pedido. Além disso, qual de nós que conversaria com o oficial do dia era motivo de muita análise. Era preciso alguém que estivesse confiante para essa tarefa. Era como bater um pênalti! Havia por volta de seis possibilidades de quadras para pedir. Muitas vezes a permissão era dada, em geral, com duas regras: que ficássemos apenas o tempo oferecido e que não brigássemos. Eram os nossos melhores espaços. Não custa lembrar que o país estava em plena Ditadura Cívico-Militar.

Dias desses, passei pela rua Jorge Miranda, e fui rever a quadra do Batalhão de Guardas, que o melhor espaço. Como uma forte afronta à minha memória afetiva, a quadra foi destruída e no lugar, há um estacionamento de automóveis.

O nosso jogo era com as famosas regras de pelada. Assim, os dois melhores não podiam estar no mesmo time, quem chutava a bola para longe ia buscar, havia rodízio para ficar como goleiro, entre tantas outras regras. E, em geral, terminava por terminava com alguma briga, pelo fim da luz do dia ou porque os pais/responsáveis chamavam o filho-jogador para voltar para casa. A chuva era bem-vinda.

Vale ressaltar que qualquer jogo dependia da existência de uma bola! Em geral, no começo das férias, se ninguém tivesse uma bola para oferecer, o caminho era fazer uma vaquinha e comprar uma bola. Havia três bolas de plástico muito cobiçadas: Dente de Leite, Pelé e Rivelino. A Pelé era marrom e as outras duas preto e branco. Quanto a arrecadação de recursos era favorável, íamos à rua São Caetano e comprávamos uma bola de couro ou de capotão. Eram vendidas em diversos tamanhos, todos numerados. O que conseguíamos de dinheiro garantia a bola 1 ou 2.

Em meados de 1972, um acontecimento essencial sobre as nossas bolas de futebol. Estava com meu pai pela região da avenida Angélica e achamos uma bola de couro, igual a utilizada na Copa de 1970. Sem dúvida, foi a melhor bola de futebol que eu tive e que nós tivemos. Jogamos muitas vezes com ela. Como era de couro, havia alguns cuidados para a sua conservação. Para ela não ressecar, eu passava sebo animal. Não me lembro como fazia para enchê-la. Mas me lembro dela ter furado mais de uma vez. E na mesma loja da São Caetano, consertava-se bolas de couro. Não sei qual foi o fim dessa bola.

Mas, e as meninas? Gostávamos delas, desde que não atrapalhassem nosso futebol, como quando propunham que brincássemos de queimada ou vôlei. Concordamos alguma vezes, mas sempre ressabiados.

Lá se vai meio século. Dos amigos de futebol, de brincadeiras, de aventuras, de descobertas, enfim, de vida, tenho contato com dois ou três, e notícias de mais um ou dois. Não dimensiono o quanto puderam estudar, não sei quanto tiveram que trabalhar. Pouco conheço de suas histórias. Mas sei o futebol nos agregava, mesmo em meio a uma radical divisão entre corinthianos e palmeirenses (e a presença, para mim muito estranha, de um botafoguense!). E não foram poucos os momentos que, cansados de jogar bola, íamos tomar uma tubaína do bar, se houvesse dinheiro, e conversávamos muito. Havia discussões sobre o mundo que conseguíamos enxergar. Não sabíamos da ordem autoritária, não tínhamos ideia existência de presos políticos e muito menos das suas presenças no presídio Tiradentes, não sabíamos da miséria marcando milhões de brasileiros. Conversávamos sobre escola, família, sexo, futebol. Ainda que, nas nossas intermináveis discussões, preocupávamos como os destinos da Terra: ela acabaria ou não no ano 2000? Para os que defendiam que a terra acabaria no fim do milênio, havia outra certeza: a destruição, diversamente do que ocorreu durante o Dilúvio, seria provocada pelo fogo. Era o que estava dito na Bíblia. O ano 2000, para mim, trazia outra preocupação: como eu seria aos 38 anos?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de História Estudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Futebol no território da Rodrigo de Cima. Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 20, 2022.
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