“Este é um lugar destinado para homens, onde eles podem fazer o que quiserem e, não importa o que aconteça, devem proteger uns aos outros”.

Essa poderia ser uma frase tirada de um filme americano, de um clube de homens de 1960. Poderia ser o lema de uma sociedade no século XIII ou até um slogan machista de alguma marca. Mas a ideia não fica apenas no campo das hipóteses. Essa parece ser a mensagem que, ainda hoje, é ensinada para os homens que jogam futebol e conseguem algum sucesso no esporte.

Em uma sociedade construída por homens e para homens, qual é o espaço que sobra para as mulheres ocuparem? Em um esporte que paga salários astronômicos para os jogadores, como não se ter tudo o que quer? Em país que já tornou ilegal a prática do futebol pelas mulheres, como legitimá-las nesse ambiente?

Nesse “clube do Bolinha”, quem não encarna essa ideia de masculinidade, fica de fora. Um exemplo é o ex-jogador e agora comentarista do Grupo Globo, Richarlyson. Em 2007, José Cyrillo Júnior, à época dirigente do Palmeiras, insinuou em rede nacional que o jogador seria gay. Richarlyson registrou uma queixa-crime, indeferida pelo juiz Manoel Maximiniano Junqueira Filho, que arquivou o processo ao alegar que “não seria razoável aceitar homossexuais no futebol brasileiro porque prejudicaria o pensamento da equipe”. E ainda completou: “futebol é coisa de macho, não homossexual”.

A perpetuação do futebol como um lugar “para machos”, faz com que a cada cinco dias uma mulher denuncie um jogador por estupro, segundo levantamento feito pela Folha de São Paulo, em 2021. Em um país que, também em 2021, teve um estupro a cada dez minutos, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é compreensível que a acusação por estupro tenha repercutido duas vezes menos nas redes sociais do que a convocação de Daniel Alves. Afinal, como diriam alguns, precisamos de jogadores com raça, que sejam “machos mesmo” pra vencer. 

Outro caso que explicita essa realidade é o da Ponte Preta que contratou o atacante Dudu Hatamoto, investigado por estupro. Mesmo sob protestos da torcida, o clube manteve a contratação. Mas os torcedores deram uma resposta à altura. O auge de um aficionado por futebol,  se revelou também como um momento de protesto: Dudu marcou, e a torcida não comemorou. Nas redes sociais, torcedores e torcedoras foram enfáticos: “não comemoro gol de estuprador”.

Mas a lenta mudança na sociedade ainda não chegou no clube do Bolinha. O atual técnico do Barcelona, Xavi, que foi campeão ao lado de Daniel Alves pelo clube Catalão, disse que “se sentia mal” pelo lateral ter sido denunciado por estupro. As críticas vieram rapidamente e no dia seguinte ele se desculpou por ter ignorado a vítima e que condena qualquer ato de violência de gênero ou estupro, independente de quem o tenha feito.

Daniel Alves
Daniel Alves em treino da seleção brasileira. Foto: Pedro Martins/MoWA Press.

O jornal OGlobo procurou 16 dos 26 jogadores convocados para a Copa do Mundo ao lado de Daniel Alves e ninguém quis se manifestar. Na mídia, coube às jornalistas mulheres levantar o debate, enquanto os homens confirmavam “realmente”, “sim, com certeza”, como se acenos de cabeça e respostas curtas fossem o máximo que poderia ser feito.

Escolher não falar sobre o Caso Dani Alves sob o argumento “mas ele não foi condenado”, é uma justificativa pífia para não se comprometer com o Clube do Bolinha. Afinal, o que está em questão é muito maior do que Daniel Alves. É sobre a misoginia e a cultura do estupro enraizadas no futebol. É sobre como esse é um ambiente ameaçador para as mulheres. É sobre como a mulher é descredibilizada e invisibilizada.

A jornalista Renata Mendonça, do Grupo Globo, e uma das fundadoras do site Dibradoras, levantou interessante questão: se fosse um carro roubado a cada cinco dias por jogadores de futebol, uma série de atletas envolvidos no tráfico de drogas, esportistas envolvidos em assaltos. Mas o estupro é diferente. Como ter certeza se a mulher não queria mesmo? Se ela não está querendo se promover? Talvez até ela tenha provocado ele, ou, na pior das hipóteses, ele cometeu um “deslize”. Para os amigos, “deu mole”. 

Acontece, porém, que o consentimento não está em uma linha tênue, ou em fronteiras borradas. Ele é claro, simples, direto e pode ser resumido em duas palavras: sim e não. O problema é quando os homens não respeitam a resposta negativa, afinal, não estão acostumados a terem seus desejos negados. Afirmam que elas falam “não”, querendo dizer “sim”. E que não reconhecem suas próprias ações como violentas e agressivas, afinal, eles sabem que no fundo elas queriam. Quem diria não para eles?  

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leticia Quadros

Leticia Quadros é formada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e como Atriz pelo Nu Espaço. Foi estagiária voluntária e, posteriormente, bolsista do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME) até 2021, quando passou a integrar a equipe de esportes do Grupo Globo.

Como citar

QUADROS, Letícia. Jogo (não) consensual. Ludopédio, São Paulo, v. 165, n. 12, 2023.
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