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Marta, futebol de mulheres e outras pitadas a mais…

Fidel Machado 1 de julho de 2019

A estrutura estruturante e estruturada: o risco de reproduzir a lógica no futebol de mulheres

 

Na esteira de outros textos já publicados aqui no Ludopédio sobre a temática, versarei sobre o futebol, insistentemente, chamado de futebol feminino e a oitava edição da copa do mundo que está em andamento. Os efeitos dessa edição do mundial são inquestionáveis e a repercussão ressoa para múltiplos lados, dialoga com posições plurais e, muitas vezes, recai em uma disputa polarizada. Percebo uma série de ações ativas e afirmativas que demonstram um grande avanço nesse cenário e, sobretudo, uma maior visibilidade. Contudo, concomitantemente, há um espaço reativo que busca conservar e defender uma suposta identidade masculina que se diz proprietária do futebol. Após esse preâmbulo, intento perspectivar e refletir sobre algumas temáticas referente a essa seara.

Nasci no mesmo ano da primeira edição do mundial, em 1991, da lá para cá, assisti apenas três partidas da seleção brasileira de mulheres e acompanhei dois dos dezessete gols de Marta. Ademais, para essa edição, tive de recorrer a leituras para saber um pouco mais sobre o nome das atletas e compreender, de maneira menos distante, alguns desdobramentos e alterações sociais nesses últimos meses. Aonde eu estava durante as outras edições que não ouvia e nem gritava gol, não via ruas pintadas e não parava para assistir aos jogos? Simone de Beauvoir, Michel Foucault alguns outros autores, autoras e muitos seres com os quais convivi e convivo me ajudaram a perceber os motivos da ausência dessas indagações que só hoje, após oito edições e vinte oito anos, atentei em fazer. Dentro de uma estrutura muito bem estruturada e, microfisicamente, estruturante, compreendo, minimamente, a posição que foi colada ao sexo e designada às fêmeas humanas. Tais desígnios, por vezes naturalizados, atribuem funções deterministas e chancela a condição de Outro para as mulheres. A mulher, geralmente, é o oposto, um par que complementa outro ser que ocupa pelo falo a centralidade da fala. Sua figura é associada a um objeto e tem como função saciar desejos de terceiros. O pilar de parâmetro e sustentação ancora-se em discursos totalizantes pautados por um sistema patriarcal.

No bojo dessa discussão, questiono a qual futebol masculino nos referimos ao falar de futebol masculino. Será que a seleção brasileira masculina que, recentemente, conquistou o mundial de futsal down está incluída? Qual masculinidade estamos falando quando falamos de masculinidade? De qual perspectiva? O futebol feminino é apenas para mulheres com útero? No interior do campo esportivo quem não se encaixa no polo masculino ou no polo feminino joga?

Influenciado e atravessado pela filosofia de Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, recorro à suspeita, conduta recorrente na sua filosofia e pensamento para desconfiar das interpretações vigentes e hegemônicas com possíveis associações e interferências dos elementos da moral para, posteriormente, dar-lhe outras perspectivas. Perspectivar é analisar atentamente o conflito entre as forças, pois cada interpretação só encara os fatos a partir do ponto de vista do seu próprio crescimento (KOSSOVITCH, 2004). É observar de formas distintas e sobre outros prismas, posições com pretensões absolutas e universalizantes. Logo, toda interpretação é perspectivista. Isso posto, caminhemos por mais algumas questões frutíferas para reflexão.

Inegavelmente o futebol está presente em muitos setores do nosso país. Seja no âmbito público ou no privado a temática marca presença. Nesse período duplamente futebolístico (Copa América de futebol de homens e Copa do Mundo de futebol de mulheres), comecei a observar alguns discursos, ações e reações sobre algumas situações inquietantes no decorrer dos jogos. O espectro dessas observações é amplo. Como ilustrações dessa dimensão simbólica, a UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), na última edição do mundial de homens, em 2018, parou as suas atividades nos dias dos jogos do Brasil. Todavia, no mundial de mulheres de 2019, as atividades seguem normais; no âmbito da “escutatória”, os comentários são e foram diversos. Presenciei falas que expressavam um apoio incondicional às atletas, mas também ouvi opiniões espúrias sobre o álbum de figurinhas. Paradoxalmente, em meio a muitas alterações na dinâmica cultural, há um forte movimento de recrudescimento. Uma busca desenfreada de objetificar e reduzir o corpo do outro. Esse esforço hercúleo na manutenção de uma determinada identidade rígida e fixa só demonstra a necessidade de movimentos que visam borrar esses limites. Além dessas situações, questões como o cabelo da zagueira francesa Wendie Renard e os comentários proferidos expressam questões sérias. Li, vi e ouvi críticas, zombarias e algumas explicações que colavam no fato de ela ser uma das cinco atletas mais bem pagas a justificativa para combater esse desrespeito travestido de humor, também, conhecido como racismo recreativo. Penso que a questão é bem mais grave e estrutural. Recorrer aos altos salários é jogar o jogo que colabora com a manutenção desses comentários. Não suficiente, o batom da Marta e a sua cor ganharam uma notoriedade ímpar e os juízos de valor eram amplamente declarados. O corpo das mulheres é alvo recorrente de comentários invasivos. No interior da estrutura, as relações de poder estabelecidas agem sobre seus corpos e os torna foco de adjetivos que, corriqueiramente, reduzem e resumem de forma arbitrária suas vidas.

Wendie Renard, zagueira da seleção francesa, cujo cabelo foi alvo de comentários racistas. Foto: Wikipedia.

Observar a estrutura que se alicerça o futebol, o esporte e as demais construções sociais fazem com que percebamos algumas nuances e comportamentos muito estruturados e condizentes com o paradigma que os estrutura. A associação do corpo da mulher com a sexualidade ainda insiste e impera nesse setor esportivo. O futebol é algo que está relacionado ao nosso país, a forma como agimos reflete o modo como pensamos. A mídia, por vezes, produziu e divulgou conteúdos que reforçavam essa correlação direta entre o corpo da mulher e a sexualidade. Ressalto que a problemática não se resume à sexualização, mas a redução do corpo somente a essa questão. Ademais, muitas mulheres no atual contexto social e no campo do futebol brasileiro, ainda se desdobram para lidar com o peso estrutural da dupla função. Essa duplicidade laboral se diferencia bastante da categoria dos homens. Essa diferença da categoria masculina escancara e diz muito sobre a estrutura que por ser muito coesa reforça e mantém a duplicidade laboral e algumas outras muitas discrepâncias.

A estrutura é farta de exemplos que de alguma forma simbolizam um despreparo para corpos que fujam da normativa sexualmente dominante. Muitos vestiários não possuem banheiro para mulheres. Dentro e fora das quatro linhas, casos de agressão física e verbal reforçam as estatísticas dos elevados índices de feminicídio e misoginia. Outro caso que ilustra parte de uma estrutura ainda dominada é o uso da língua portuguesa pelos diferentes sujeitos da delegação brasileira ao se referir às jogadoras. Nessa edição do mundial de mulheres, a comissão técnica brasileira, de forma geral, não altera as palavras para o feminino e persiste no uso do gênero “neutro”. As atletas, por sua vez, em sua maioria já converteram e inverteram a linguagem corrente. Parece um exemplo inofensivo e bobo, mas carrega consigo elementos densos e muito simbólicos.

Suspeitar e estranhar desses discursos é desconfiar que a fala não é isenta. Algumas vezes ela já reproduz uma violência que visa descaracterizar o outro. Enfim, retomo a frase: a forma como agimos diante desse megaevento esportivo versa bastante sobre alguns elementos ainda arraigados no nosso modo de sentir, pensar e agir. Vide as ações do presidente da república. Nessa conjuntura, o estranhamento, geralmente é da fala de terceiros, mas o grande desafio é estranhar a nossa própria fala, as nossas próprias ações.

Ainda no desdobrar das observações, pude perceber que a mulher não é boa por si. Ela é sempre tão boa quanto algum atleta homem. Outro comentário intrigante é: “a mulherada tá melhor que os homens”. A frase é ambivalente. Porém, arrisco dizer que as que eu presenciei, possuíam um tom irônico e tinha como intuito a ridicularização dos homens e não o elogio às mulheres. Nessa seara, recorrerei à lógica formal para ensaiar algumas reflexões: Quando convém, eu faço uso irrestrito da comparação. Quando desagrada, eu recrimino, critico e discordo.

Na estrutura da lógica formal, temos alguns princípios básicos. O primeiro deles é o princípio da identidade, ou seja, A = A. Em complemento, temos o princípio da não contradição, ou melhor, sob a mesma circunstância A tem de ser igual a A. Por fim, temos o princípio do terceiro excluído. Algo é ou não é. A terceira possibilidade é excluída. Todavia, caso mude a situação ou a condição, pode haver alteração. A partir desses princípios, percebemos que a utilização da comparação, sob o olhar da lógica formal, não pode ser alterada para atender interesses pessoais. Sob a mesma condição, a comparação entre atletas não pode ser alterada, caso contrário irrompe na quebra do princípio da não contradição. Por esse viés, percebemos que, independente do lado que realiza a comparação quando convém, não há coerência lógica. Ou seja, por perspectivas contrárias as duas posições visam somente a satisfação dos seus próprios interesses. Independente do argumento e da legitimação da causa, o importante é estar certo ainda que não haja lógica na construção argumentativa. Grande parte dos debates não são vencidos pela coerência interna da argumentação, mas pelos afetos e a solidificação das estruturas colabora para esse tipo de atitude.

Não quero afirmar com isso que somente a discussão argumentativa e lógica resolverá os problemas, mas, a partir de alguns elementos, ela pode colaborar para desnaturalizar e descortinar algumas estruturas muito bem estruturadas e estruturantes. Como efeito disso, penso que podemos questionar também os anseios que preconizam a igualdade, pois caso esse intuito vise somente atingir um posto que já está alcançado por um outro polo, o foco ainda permanece em um pilar que visa manter a sua hegemonia. Com isso, a estrutura balança, mas se mantém.

Em Brasil e Itália, o batom escuro usado por Marta foi alvo de comentários carregados de juízo de valor. Foto: Rener Pinheiro/MoWA Press.

Os atores que possuem regalias e privilégios buscam mantê-los. Contudo, essas mesmas alterações e dinâmicas culturais, paulatinamente, estão sendo alteradas e as vozes têm cada vez mais se tornado gritos. Talvez a estrutura e o contexto seja outro. O que provavelmente corrobore para uma mudança mais real e menos idealizada. Como lidaremos com essas modificações diz e dirá muito sobre como essa maré transcorrerá.

O esporte está incutido em um contexto que inferioriza o futebol de mulheres e, de forma sucinta, tentei apresentar algumas dessas condições que infelizmente ainda fazem muito sentido para setores da nossa sociedade. Há mudanças nessa modalidade que ainda ocupa o posto de esporte nacional. Há uma crescente no surgimento de torcidas e movimentos organizados só por mulheres em todo o Brasil, como o Movimento Alvinegras do Corinthians, o Coletivo INTERfeminista do Internacional, o São Pra Elas do São Paulo entre outros. Vale o destaque que alguns desses movimentos surgiram a partir de casos de violência sofrida por mulheres não só em estádios, mas também em metrôs só por estarem vestidas com a camisa do clube.

Os discursos, como já anunciado, são vários. Inclusive o da própria Marta ao final do jogo contra a França, após uma derrota sofrida e com chances de vitória. Ainda que seja muito pungente e esteja sendo proferido com sangue, pode ser deslocado no interior de uma estrutura do esporte e, principalmente, do esporte de alto rendimento para um flerte direto com questões neoliberais muito sedutoras que dialogam e regozijam-se com essa primazia do sujeito e a consequente responsabilização e culpabilização pelos seus atos: “é isso que eu peço para as meninas. Não vai ter uma Formiga para sempre, não vai ter uma Marta para sempre, não vai ter uma Cristiane e o futebol feminino depende de vocês para sobreviver. Então pense nisso. Valorizar mais…”.

A partir da suspeita e de uma análise mais ampla percebemos o quão carregado dessa estrutura está o seu discurso. O intuito aqui não é erigir culpados e culpadas nem tampouco estabelecer juízos de valor, mas questionar e refletir sobre essa microfísica que controla e governa as nossas condutas. A Marta, ainda que seja a Marta, sofreu e ainda sofre no interior dessa inglória redoma. Contudo, ainda assim, por ser agente desse campo, ela também se beneficia dele. A estrutura é tão potente que uma empresa esportiva quis patrocinar a atleta, mas ofereceu uma quantia menor do que a dos jogadores homens, por essa questão desrespeitosa, Marta negou o patrocínio. A lógica é tão perversa que a própria Marta pode ser punida por ter apontado, no jogo contra a Austrália, para a sua chuteira que estampava o “Go Equal”: movimento que luta pela igualdade de gênero.

A imprensa internacional especializada se refere à Marta como a maior jogadora de todos os tempos. A brasileira possui seis bolas de ouro, suas conquistas são gigantescas. Os seus feitos são inquestionáveis e merecem de fato serem visibilizados, valorizados e enaltecidos. Todavia há uma linha tênue para que esse discurso não caia em uma seara meritocrática e seja capturado para manter a estrutura cada vez mais sedimentada. Há um risco iminente da fala sucumbir e se resumir ao esforço, à dedicação e culminar com a máxima: “se ela conseguiu, você também consegue. Basta se esforçar”. Direcionar para as meninas e para o sonho é manter vigente essa estrutura que começa com o riso e termina com o choro. Lamentavelmente, a engrenagem é ardilosa. Não adianta romantizar o desempenho, o esforço e a garra inquestionável das atletas com adjetivos engrandecedores. É paradoxal defender o futebol feminino sem questionar os pilares que o sustentam. Desconsiderar os elementos constituintes é de certa forma comungar com as condições que mantém o futebol de mulheres como futebol feminino. Como o outro. Como o figurante.

Reforço que a presença da nordestina é potente e suas falas têm tangenciado questões nevrálgicas, como isonomia salarial, maior visibilidade e mais oportunidade. O discurso pode ser interpretado por vários âmbitos e o risco é o seu possível uso para fortalecer cada vez mais a estrutura vigente. Entretanto, a trajetória da alagoana não pode ser desconsiderada somente por esse recorte ainda que o seu discurso possa ser subvertido e utilizado para fins que muitas vezes contradiz a própria postura da Marta enquanto atleta, mulher e militante dos movimentos de luta pelo futebol de mulheres. Nessa perspectiva, penso que Marta desloca o foco para instigar meninas para jogar e cutucar a estrutura posta. Insisto que o risco é que essa fala pode ser utilizada para legitimar e endossar alguns argumentos que são apropriados por interesses distintos que, muitas vezes, compromete a própria luta, pois reproduz com maestria os valores da estrutura estruturada e estruturante. A reprodução dessa lógica pode culminar somente em choro do início ao fim.

A suspeita como dispositivo de reflexão e questionamento de interpretações hegemônicas pode auxiliar na mudança da conjuntura e subsidia o estranhamento de falácias vistosas que isentam instituições responsáveis dos seus compromissos e deveres. Suspeitar e refletir do discurso da Marta e das nossas próprias falas. Os setores devem ser implicados como um todo. Algumas bases naturalizadas e, supostamente, inalteráveis podem ser ressignificadas e assim, como disse a maior artilheira de todas as copas: “chorarmos no começo para sorrir no fim”.

Conversas com:

KOSSOVITCH, L. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004.

Nara Romero

Camila Ribeiro

Carol Matos

http://midianinja.org/copa_femininja/

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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. Marta, futebol de mulheres e outras pitadas a mais…. Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 2, 2019.
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