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Memórias urbanas e esportivas do Santa Marina Atlético Clube: pesquisa etnográfica

Este texto integra a série especial Santa Marina, o circuito varzeano de SP e a preservação dos clubes esportivos populares, publicada na coluna Em defesa da várzea do portal Ludopédio. O principal objetivo é colocar em debate a urgência de garantir a reprodução e continuidade das práticas populares esportivas e culturais nas cidades brasileiras. Os textos, que serão publicados quinzenalmente ao longo de 2023 e 2024, apresentarão as atividades, etapas, metodologias, resultados e principais reflexões do “Mapeamento do Futebol Varzeano em São Paulo”, realizado em 2021, sob encomenda do Núcleo de Identificação e Tombamento (NIT) do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura do Município de São Paulo, a fim de reunir subsídios para identificar práticas culturais relacionadas ao futebol de várzea e para analisar processos administrativos de proteção do patrimônio cultural. Além disso, diante de um contexto marcado por reiteradas ameaças aos espaços urbanos onde se pratica o futebol popular, esta série busca colocar em discussão o caso do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), clube amador centenário cujo espaço de atuação vem sendo ameaçado por um pedido de reintegração de posse pela multinacional Saint-Gobain.


Este texto dá continuidade à apresentação dos resultados da pesquisa etnográfica realizada no Santa Marina Atlético Clube (SMAC) e que integra o estudo “Mapeamento do Futebol de Várzea em São Paulo”. O primeiro eixo de análise terá como foco as memórias urbanas e esportivas de frequentadores, dirigentes, jogadores que possuem diferentes vínculos com o tradicional clube da zona oeste paulistana.

Memórias

Ainda hoje, quando se caminha pelos bairros da Barra Funda, Lapa e Água Branca, na Zona Oeste da cidade de São Paulo, é possível observar os resquícios da paisagem que dominava parte importante desse território durante a maior parte do século XX. Principalmente nos arredores da linha do trem – hoje utilizado somente como transporte metropolitano de passageiros – e da avenida marginal do Rio Tietê, ainda se vê grandes galpões fabris abandonados, muitos dos quais em vias de serem demolidos para abrir espaço à especulação imobiliária, com seus novos e modernos prédios residenciais e comerciais. 

Na Água Branca, entre o trilho do trem e o rio, nos arredores do encontro das avenidas Marquês de São Vicente e Ermano Marchetti, é possível observar a antiga chaminé da fábrica de vidros Santa Marina. Trata-se de uma grande construção de tijolos que ostenta um antigo letreiro com o nome da empresa. Entrando pela avenida Santa Marina, e passando ao lado do prédio de uma grande faculdade particular, surgem as antigas dependências da fábrica abandonada, além de outros galpões que parecem vazios. Vê-se também o portal de entrada do Santa Marina Atlético Clube. Uma das poucas construções que aparenta ainda ser utilizada. 

Fundado em 1913, o Santa Marina Atlético Clube (SMAC) presenciou as impactantes mudanças ocorridas na região. O espaço da várzea do rio que, antes, era ocupado pela grande fábrica de vidros, com sua vila operária, hoje abriga grandes avenidas. Se antes ali era um local em que se andava de bicicleta e a pé, e onde se caçava animais selvagens que ocupavam a várzea do Tietê, hoje a interação se dá com os habitantes da grande metrópole – carros, estudantes da faculdade localizada na mesma rua, policiais, funcionários do sistema de transporte público, entre tantos outros. 

A vida profissional daqueles que circulam pela região também se alterou radicalmente. Frequentadores mais antigos do clube relatam em detalhes suas rotinas como operários da fábrica de vidro. Os fornos, as linhas de montagem, o calor, a fumaça que saía da chaminé, as imensas pilhas de recipientes que seriam encaminhados para outras fábricas para serem preenchidos com refrigerantes, cervejas, produtos de limpeza etc. Tudo isso sintetiza uma experiência de vida e de trabalho que denota sofrimentos variados, mas que também carrega nostalgia: das amizades, das relações familiares, das brincadeiras, da vida social experimentada no bairro e no Santa Marina Atlético Clube em particular. 

São histórias que misturam a casa, a rua, o clube e a fábrica. Descer a Avenida Santa Marina em um carrinho de rolimã, assistir a sessões de cinema no salão do clube, viajar com os amigos, reformar a pequena casa operária onde vivia uma grande família. Mudar de casa. Ter de sair do bairro para o outro lado do rio por conta da demolição da vila. Continuar a frequentar a região, seja para trabalhar, seja para encontrar velhos conhecidos no campo de futebol e na área social. Família, trabalho, amizades, lazer: tudo era interligado e gerava memórias que, até hoje, dão sentido às vidas das pessoas que ali estão. 

Memórias que estão espalhadas pelo clube. Seja nos grandes murais fotográficos, que trazem imagens que demonstram experiências vividas por outras gerações de frequentadores — retratando festas, viagens e jogos de futebol dos anos 40 até os tempos atuais —, seja na sala de troféus ou até mesmo na área social, com fotografias digitalizadas e ampliadas de antigas equipes do clube.

Montagem a partir da digitalização e ampliação de fotografia do acervo do clube. (Autoria: Enrico Spaggiari)
Montagem a partir da digitalização e ampliação de fotografia do acervo do clube. Foto: Enrico Spaggiari
Montagem a partir da digitalização e ampliação de fotografia do acervo do clube. (Autoria: Enrico Spaggiari)
Montagem a partir da digitalização e ampliação de fotografia do acervo do clube. Foto: Enrico Spaggiari

Algumas paredes do clube estão repletas de painéis envidraçados com as fotografias dos mais de 100 anos de história do Santa Marina. Essa coleção de fotos funciona como uma extensão da sala de troféus e dá destaque para os elencos e times campeões da história do clube. Os integrantes do clube muitas vezes frequentam as fotografias para lembrar de histórias, ver seus companheiros e se orgulhar de sua própria fotografia em meio à galeria. Ainda que o grande destaque seja o futebol, a memória incrustada nas paredes mostra a abrangência de significados que o SMAC assume para seus adeptos: nelas se pode ver lado a lado as equipes de crianças e de veteranos, equipes femininas organizadas pontualmente ao longo da história do clube, torcedores e jogadores; também estão presentes fotos e objetos de jogadores que fizeram uma carreira no esporte profissional e mantiveram alguma relação com o Santa Marina como Oberdan Cattani (goleiro do SMAC e do Palestra Itália) e Pelé, que presenteou uma das equipes que atua no clube com uma camisa  autografada de seu instituto; há ainda outros esportes como o boxe, o atletismo e o ciclismo; estão presentes viagens esportivas (Johannesburgo, África do Sul), passeios recreativos, como piqueniques em Campinas-SP e Caieiras-SP, e excursões do clube para localidades como o Rio de Janeiro-RJ e Praia Grande-SP. 

Há ainda, nessa galeria, fotografias que dizem respeito a outras dimensões da identidade do SMAC: as festas, encontros, almoços e jantares ao longo das últimas décadas entre integrantes do clube; comemorações específicas como aniversários do clube e festas juninas e de dia das crianças; imagens relacionadas à atividade fabril na Santa Marina: maquinário e equipamentos para a fabricação do vidro, a lagoa de onde era extraída matéria prima, as vilas onde viviam os operários. Não menos importante nessa galeria é uma grande imagem aérea do bairro, de meados do século XX, garantindo o contexto territorial para as memórias envidraçadas nessas paredes.

São muitos os troféus expostos no Santa Marina. Há grandes troféus de 70 ou 80 anos atrás, que mostram uma estética bastante peculiar – geralmente a imagem de um homem segurando uma grande esfera sobre sua cabeça —, há também taças de metal — muitas das quais carregam marcas da passagem do tempo –, há os troféus de plástico, que se tornaram moda nas últimas décadas, e há aqueles que são preteridos por serem muito baratos e de pior qualidade: os de vidro.  

Sala de troféus do Santa Marina em 2021. (Autoria: Enrico Spaggiari)
Sala de troféus do Santa Marina em 2021. Foto: Enrico Spaggiari

Mas os objetos de vidro não são considerados, em essência, algo dispensável ou de menor importância. Na verdade, o que impressiona na sede do Santa Marina Atlético Clube é o papel que este material assume na paisagem interna do espaço. Além dos troféus, medalhas e pequenos prêmios de vidro, também se vê outras peças como garrafas, grandes recipientes, armários, tampos e até mesmo os antigos moldes da velha fábrica. A utilização desses objetos é variada, podendo ser expostos junto dos troféus ou até mesmo servindo como base para a exibição de outras peças, como é o caso das luvas de boxe de um antigo sócio. 

O vidro se faz presente nos grandes quadros repletos de fotografias, na pequena capela e também cercando o espaço social, onde estão a principal churrasqueira e as mesas que sediam os eventos do clube. O vidro tem história, pois cada peça pode remeter a uma memória em particular, a uma relação de troca.

Junto dos vidros também surge com grande importância na decoração do Santa Marina uma pintura impressa em um dos muros do clube. Ali se vê a frase “Eu faço parte desta família” escrita junto a imagens de botões de televisão, indicando que aquele lugar tem importância para todos, já que, como mesmo afirmou o presidente do clube, Chiquinho, quando se está na televisão, se alcança num novo nível de importância. O Santa Marina Atlético Clube é, de fato, extremamente importante para todos os que o frequentam. Sejam os antigos trabalhadores da fábrica, os atuais alunos da escolinha de futebol ou mesmo os boleiros que vão àquele local jogar futebol com antigos e novos amigos. Para Chiquinho, que se ressente de ter contado com pouco apoio de parte da grande mídia na sua luta para a manutenção do espaço, aquele local não é só um repositório de antigas memórias, mas um local onde estas podem ser vistas, tocadas e renovadas em novos significados. 

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O próximo texto abordará, também com base na pesquisa etnográfica, as dinâmicas futebolísticas que fazem do SMAC um ponto nodal do circuito varzeano de São Paulo e da “mancha” futebolística da zona oeste paulistana.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP. Fundador e editor do Ludopédio.

Mariana Hangai

Mariana Hangai é cientista social formada pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora associada ao Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP (LabNAU). Também é fundadora da Argonautas Pesquisa Etnográfica, na qual desenvolve consultorias para projetos e iniciativas de interesse social. Nos últimos anos dedicou-se, em especil, à pesquisas no campo da cultura e patrimônio, com foco nas relações entre museus e outros equipamentos culturais com seus territórios.

Como citar

CHIQUETTO, Rodrigo Valentim; SPAGGIARI, Enrico; HANGAI, Mariana; TAMBUCCI, Yuri Bassichetto. Memórias urbanas e esportivas do Santa Marina Atlético Clube: pesquisa etnográfica. Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 26, 2024.
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