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#MeuRival: Flor de Obsessão

Emanuel Neves 19 de janeiro de 2020

Em série de crônicas do Puntero Izquierdo, torcedores escrevem sobre a alma de seus rivais. Na estreia, um colorado reflete sobre o que é ser tricolor

Ilustração: Marcelo Armesto.

“Tenho dito, obsessivamente, que sou uma flor de obsessão”.
Nelson Rodrigues

O gremismo fundamental apresentou-se a mim num entardecer vadio de 1988, às preliminares de uma partida de futebol de botão. Meus panelinhas colorados iriam para o embate contra um Grêmio de plástico, manejado por um vizinho. Bastou colocarmos a bola preta ao centro da cancha e os elementos congênitos do DNA tricolor se sublevaram. Antes de o apito trinar, meu adversário salivante, já de caninos à mostra, facezinha transtornada por um olhar quase maníaco, definiu a única regra da disputa: “É no Beira-Rio. O jogo é no Beira-Rio!”. Ora, aquele pequeno Baidek da zona norte, aquele protótipo de João Padeiro não queria apenas me vencer: ansiava por tripudiar sobre meus domínios ilusórios.

A partida tem início, e o Grêmio de acrílico cria a primeira chance — no rebotalho, na gataria, com falta não assinalada. Meu oponente pede “a gol” e posiciona seu zagueiro para o arremate. À época, os zagueiros eram representados por peças maiores e mais taludas, como convém à compleição de um defensor. A palheta raspa o traseiro do botão, e o uruguaio Obdúlio Trasante se vem deslizando pelo gramado de tinta que a Xalingo erigira sobre as águas do Guaíba. E se vem levando tudo por diante: a bola achatada, os companheiros, meus colorados de polipropileno, Ademir Maria, a goleira, a tarde de domingo e a minha honra. Gol.

O menino ergue-se com vagar; a boca aberta e trêmula; as carótidas em relevo, os pequenos punhos cerrados castigando o peito. Vira-se para a parede nua da sala e passa a enfrentar o reboco, passa a ultrajar, passa a aviltar o reboco, a ordenar que o reboco silencie e agarre suas bolas imberbes, enquanto emaranha narrações de Ranzolin e sentencia que Trasante calara o mar vermelho, que agora o Grêmio era campeão do mundo, e ele pedira que acreditassem. A comemoração, o transe, essa cerimônia de escárnio e sandice na qual ele ficou absorto, durou coisa de quatro minutos.

Não lembro o resultado do jogo. Perdi, é certo. Estávamos em 1988, afinal. Mas recordo que o menino adquiriu uma fibrilação insistente no lábio superior depois de toda aquela exaltação. Ele findaria internado em 2004. Já pela adolescência começara a enxergar gente onde não havia, ralhava com as árvores, era lascivo com formigas, julgava-se o próprio sol e até tentou incinerar-se. Louco de atar.

Ainda assim, só o gremismo primitivo poderia acomodar um jogador chamado Obdúlio Trasante. Obdúlio Eduardo Trasante. Esplêndido nome para ser proferido com os erres em matraca que a prosódia da locução esportiva tanto cultua. Não é bem um nome: é uma machadada, é um escoiceio, são três pares de travas metálicas rasurando costelas no lodaçal de um domingo frio e chuvoso de maio. Eis, aqui, a estética do gremismo visceral.

Nesse ponto, as diferenças com o coloradismo se evidenciam. Talvez porque sejam doutrinas com campos simbólicos vertidos de mananciais diferentes. E a cosmogonia dos clubes demonstra isso. Vejam Lara, por exemplo. Lara, o arqueiro moribundo, semicomatoso, que se desvencilhou dos aparelhos da unidade de saúde, deitou médicos e enfermeiros, chacoalhou pelos bondes, arrastou-se ladeiras acima até o Fortim da Baixada e irrompeu a cancha ainda envelopado em ataduras e gazes para ter o coração destroçado ao aparar um petardo desferido em bola de cimento, sob tempestade de enxofre, enquanto resguardava mulheres e crianças tricolores ante a ofensiva do exército persa.

Não ocorreu bem assim, é claro. Lara, em verdade, sequer faleceu ainda: é vivo na fantasmagoria dos antigos e protagoniza o hino que subjuga a própria morte. A mensagem, notem, é de um heroísmo insano e feérico — e é também a motriz de toda a espartana e grandiloquente mitologia que alicerça o gremismo-de-dentes-cerrados.

Meu ancestral mais destacado, em contraposição, é Tesourinha. O ponteiro, cujo apelido homenageia um bloco carnavalesco, defendia o Colorado pelo soldo de dois litros de leite. Tocante. Lírico. Singelo, acima de tudo. Tesourinha foi superior a Garrincha — quem não viu, confirma — e até fardou azul em seu ocaso, quando já nem bem podia valer-se dentro dos meiões, sequer respondia por si e tinha o afã incontido de atentar contra a própria meta. Voltou ao Inter com 47 anos, redivivo, e levou do clube tão-somente as redes escalavradas do velho Estádio dos Eucaliptos — com as quais talvez se enrolasse nas noites de inverno e nostalgia. Tocante. Lírico. Singelo, acima de tudo.

É natural, portanto, que o imaginário do gremista de raiz carregue em seu forro esse pendor castrense, de audácia inata — uma certa petulância tresvariada de quem pensa tudo poder, a qualquer tempo, frente a qualquer um, já que nem a morte lhe faz jus. “Ser gremista é o sonho delirante de não conseguir na vida ser outra coisa”, cunhou Paulo Sant’ana, o porta-voz desse gremismo onírico e auto-suficiente.

A máxima do cronista também demonstra uma propensão ao radicalismo — configurada no monoteísmo tricolor. Não há contestação quanto ao cume do panteão azul, preto e branco: o cetro cabe a Portaluppi, sim ou sim. Embora ele tenha se mostrado um deus um tanto licencioso, quase universalista em suas fidelidades e contrapartidas, o seu par de havaianas descansa no Posto 7 da eternidade, delimitando a região antípoda ao coloradismo. Porém, como mencionei, essa condição imaculada de identificação é bastante rara. O gremista não costuma encontrar-se aqui regularmente. Ele se distribui, via de regra, mais para o lado de cá.

Façamos esse exercício, pois. Fujamos do núcleo, do epicentro da paixão tricolor. Rumemos para onde a geleia geral se balança, onde a vida acontece de fato. É ali que o turumbamba diário se dá, é ali que a maior rivalidade do mundo se alimenta e se protubera e se eriça e se faz plena. O que depararemos nesse limite imaginário, nessa fronteira onde as correntezas da psique tricolor como que se chocam, como que se dissolvem e se irmanam nos eflúvios da essência vermelha? A resposta é simples, senhores: encontraremos Andrés D’Alessandro. Sim, na pororoca do futebol gaúcho, mareja a barca do gringo Andrés D’Alessandro. E é plenamente compreensível que assim seja.

Amigos, convenhamos: a vibração, a aura, o perispírito escarlate de Andrés emana chispas daquilo que urdiu esse tal gremismo primordial. Eu me refiro a um bem-vindo quê de atrevimento, de desmesura, de bazófia salutar. Não tem a ver com arrogância — o tempo tratou de me ensinar que essa insiste em derramar-se sobre a cabeça de quem suspende copas à farta. Falo mesmo de uma postura mais assertiva, sempre sanguínea, por vezes tresloucada, ciclotímica, inconstante e até bravateira. Foi sobre esses pilares que a personalidade do gringo ascendeu e preencheu com chamas as lacunas da insolência e do desatino a uma geração de colorados. Aliás, não só de colorados.

A cada clássico dos últimos nove anos, as tribunas tricolores endereçam a D’Alessandro uma empatia muito bem maquiada de aversão. Experimentem gravar os xingamentos dardejados ao mago de La Paternal. Depois, coloquem o áudio ao contrário e percebam, lá no fundo, como que uma contestação aos céus. Atrás do sincopado das murgas, o escapulir de uma lamúria, de uma dorida cantilena. Camuflado nesse tango-fado de munhecas moles ao vento, murmureja um vagido de inconformidade uníssono e incessante. Cada apupo a Andrés carrega em seu ventre a pungência daquilo que, ao espírito tricolor, parece ser um flagrante e irremediável engano do destino.

Calcular o valor desse acaso não é difícil. Ainda mais no atual momento. Hoje, confinados nos porões do futebol, ardendo no Hades da bola, sem montaria no Fantástico, vemos um Grêmio que se vai querendo levar tudo por diante uma vez mais. Na comparação direta, um Grêmio com tudo a seu favor e Réver contra. Já foi assim no passado, será e não será de novo logo em frente. Os ciclos se revolvem e maceram nossas ilusões de uma supremacia sem fim. Sabemos disso: giramos essa roda juntos desde 1909.

Numa análise mais ampla, entretanto, a hecatombe colorada de 2016 parece ter adicionado algo de especial à rivalidade. O grande fiasco, a meu ver, pôs a balança dos fatos num pé de igualdade difícil de ser desfeito. Somem-se os sucessos, subtraiam-se os vexames, cotejem-se as plagas e números, escrutinem-se as honrarias e deboches e desfeitas: se as trombetas rasgassem as nuvens e o armagedom rebentasse hoje sobre o Pampa, existiria mesmo algum fator realmente capaz de diferir um clube do outro? Ou terminaríamos quites em praticamente tudo?

Pois eu vos digo, senhores: com lábios trêmulos, eu vos digo: enfrentando os rebocos, o sol e as formigas, eu vos digo: ao fim e ao cabo desse século e pico de escaramuças, só um dos lados poderia atear fogo às vestes e correr nu pelas esquinas, bradando o nome de Andrés D’Alessandro aos quatro ventos. Na encruzilhada entre a velha Azenha e o Menino Deus, o gringo-exu tomou o caminho do poente e decidiu guarnecer as coisas do rio. Ali se ergue o enganche bendito para nos separar e também nos unir. Se a moeda tivesse caído com outra face, essa verdade continuaria de pé. Nisso se assenta toda a transcendência da figura de Andrés como síntese daquilo que somos nós, nisso se justifica o seu magnetismo enquanto consenso divergente dessa relação irreconciliável.

Portanto, quem quiser entender o gremismo contemporâneo em sua plenitude, basta correr a trajetória gloriosa do tricolor gaúcho — de Pavilhão a Luan, de Luiz Leão a Geromel. Vá repontando seus feitos heróicos, suas epopeias, seus mitos e lendas, um a um, década após década: perscrute essas páginas fantásticas, palmilhe essa extensa trilha de sangue, barro e loucura até desembocar numa atualidade tão rica em afirmações e prenhe de promessas. Daí avance um pouco mais, mergulhe por trás desses milhões de olhos brilhantes que muito miram e já sonham em tocar, afaste esse mapa do continente delineado em tintas vivas, e então você dará de cara com as costas largas de Andrés D’Alessandro — flor de minha obsessão, flor de nossa obsessão.

Enquanto não ressurgir nada tão impactante envergando o uniforme das três cores, o argentino permanecerá assombrando esses recônditos — e um conflito velado estará estabelecido por lá. Até esse dia chegar, a essência tricolor cumprirá a obrigação de repelir a braçadeira celeste do capitão colorado, mas será atraída a ela como por um imã — porque só nela encontrará a mais bem acabada expressão de sua natureza fundamental.


Publicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2017, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Emanuel

Jornalista e colorado.

Como citar

NEVES, Emanuel. #MeuRival: Flor de Obsessão. Ludopédio, São Paulo, v. 127, n. 19, 2020.
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