74.13

As mulheres do Irã precisam ser mais esportivas?

André Alexandre Guimarães Couto 31 de agosto de 2015

Tudo começou no domingo de Páscoa, quando ao ler o jornal O Globo, me perguntei porque uma informação tão relevante para o universo esportivo e feminino poderia estar em uma pequena matéria (com poucas frases formando uma coluna) no canto inferior do caderno “Sociedade”:

“Mudança na lei”

Irã alivia restrições a mulheres em eventos esportivos
O Irã retirou parcialmente a lei que proíbe mulheres de assistirem eventos esportivos masculinos. A decisão foi anunciada ontem pelo vice-ministro dos Esportes do país, Abdolhamid Ahmadi, dias depois de uma mulher com cidadania britânica e iraniana ter sido presa por protestar contra a legislação. A nova política voltada para elas entrará em vigor ainda durante este ano iraniano, que, no calendário de Teerã, termina em março de 2016.” (O GLOBO, Rio de Janeiro, 05/04/2015)

Evidentemente, acerca do Irã, passamos ouvindo na grande mídia sobre a reaproximação das principais nações do Ocidente e o fim de embargos e punições internacionais sobre o país persa e o quanto este estava prestes a aceitar a decisão de reduzir sua capacidade de enriquecimento de urânio, um medo que a guerra fria alimentou por décadas, mas, que agora ganhou novas e quentes cores.

Entretanto, será que este “grande tema” diminuiu a importância de “outros” e talvez, “menores” assuntos como o esporte?

Fui fazer o dever de casa. Pesquisar os grandes jornais e sites on line no Irã que obviamente não deram um único destaque importante. Nem mesmo o Iran Sports News Network, que enfatizou o campeonato de futebol local e o continental (asiático). Em tratamento semelhante, o Iran Sports Press, mais poliesportivo do que o anterior, apresentando notícias de outras modalidades como o handball e luta greco romana e com um design mais arrojado do que o primeiro, falhava também no esquecimento de uma decisão ou debate tão caro.

Bandeira do Irã adotada em 1980, após a Revolução Islãmica.
Bandeira do Irã adotada em 1980, após a Revolução Islãmica.

Os esquecimentos destas questões nos apontam para um processo interno no Irã de tentativa de frear um movimento em prol de uma maior liberdade das mulheres.

No Brasil, apesar de O Globo dar um destaque ínfimo a esta questão, o site Globo Esporte apresentou uma matéria mais explicativa, apresentando dados relevantes como a permissão para as mulheres daquele país poderem a partir deste ato governamental, ter acesso a locais específicos em ginásios e estádios, desde que acompanhadas de suas famílias. Alguma informação, nenhuma reflexão, mesmo citando o caso daquela jovem Ghoncheh Ghavami, de 26 anos, após ser liberada pela justiça iraniana depois de um tempo presa. A acusação? Tentar assistir uma partida de vôlei masculino entre Irã e Itália, em junho de 2014 pela Liga Mundial. E falando em vôlei, a auxiliar da seleção brasileira, Roberta Giglio, que lida com estatística esportiva, foi impedida de trabalhar em Teerã quando o nosso selecionado esteve por lá, também pela Liga Mundial.

Bom, em se tratando do Irã, se a grande mídia brasileira só tem olhos, ouvidos e bocas para a nova tentativa de evitar um desequilíbrio diplomático (já criticada por vários países e políticos, não por acaso mais conservadores), a esportiva, pelo menos, registrou o fato, com pouquíssima reflexão, diga-se de passagem.

Outro ponto importante é perceber que apesar das leis iranianas tratarem as mulheres de forma subalterna e desumana, há um movimento de resistência aumentando cada vez mais naquele país com o apoio de instituições internacionais, como, por exemplo, a Anistia Internacional.

Teerã (Irã) - Mulheres usam o chador, tecido fechado, com espaço aberto apenas para o rosto, que cobre o cabelo, o pescoço e os ombros e em geral é preto ou cinza
Teerã (Irã) – Mulheres usam o chador, tecido fechado, com espaço aberto apenas para o rosto, que cobre o cabelo, o pescoço e os ombros e em geral é preto ou cinza. Foto: Marcello Casal Jr. – Agência Brasil.

Se por um lado, existe certo avanço nas leis que abrem os caminhos dos esportes para as mulheres (como na notícia comentada), de outro há medidas para manter as mulheres como estão. É o caso, por exemplo, das propostas de leis pelo governo para aumentar a população iraniana, as chamadas Lei 315 e a Lei 446. De acordo com estas, as mulheres teriam acesso bem restrito aos usos contraceptivos e seriam excluídas do mercado de trabalho, caso se recusassem a casar e a terem pelo menos um filho.

De acordo com Hassiba Hadj Sahraoui, representante da Anistia Internacional para o Oriente Médio e o Norte da África, “The bills send a message that women are good for nothing more than being obedient housewives and creating babies and suggests they do not have the right to work or pursue a career until they have fulfilled that primary role and duty”.

Ou seja, não faz sentido comemorar um determinado avanço social e esportivo com as respectivas presenças das iranianas nos espaços esportivos como os estádios de futebol, quando temos leis que tratam as mesmas como “máquinas de fazer bebê” (expressão utilizada pela própria Anistia Internacional). Todavia, a luta pelos direitos humanos e sociais das mulheres deve estar presente a cada assento conquistado, a cada game, set, assalto ou tempo compartilhado in loco com os homens daquele país. Desta forma, o esporte também se torna palco e campo considerável e relevante de lutas sociais e de gênero. Lembrei-me ainda do filme Fora de Jogo (“Offside”), inclusive o primeiro que vi e discuti no Cineclub do Sport, em 2010. Filme do iraniano Jafar Panahi e produzido em 2006, mostrava as peripécias de jovens mulheres tentando entrar no estádio de futebol para ver a seleção do Irã nas eliminatórias da Copa do Mundo da FIFA.

offside

Por outro lado, do ponto de vista estatal, além de toda a conjuntura internacional já citada. O governo do Irã pode utilizar o esporte como peça de propaganda e publicidade. Mais ou menos assim: transformamos o papel do Estado e da sociedade, tanto dentro como para fora do país, mas para continuar a mesma coisa. Será que, por isso, a direita conservadora internacional anda tão desconfiada das medidas de Obama voltadas para o Irã?

Veremos como a imprensa nacional (de lá, como de cá), assim como a dos demais países reage nos próximos episódios. Tanto no que publica, como no que esquece.

Texto originalmente publicado no blog História(s) do Sport e cedido para publicação nesse espaço.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

André Couto

Professor, historiador, especialista em História do Brasil (UFF) e em Educação Tecnológica (CEFET/RJ) e mestre em História Social (UERJ/FFP). Doutorando em História (UFPR).

Como citar

COUTO, André Alexandre Guimarães. As mulheres do Irã precisam ser mais esportivas?. Ludopédio, São Paulo, v. 74, n. 13, 2015.
Leia também:
  • 178.22

    De beijos forçados a desequilíbrios de poder, a violência contra as mulheres no esporte é endêmica

    Fiona Giles, Kirsty Forsdike
  • 177.31

    A necessidade de se provar: misoginia e racismo no futebol

    Nathália Fernandes Pessanha
  • 177.30

    Marielle, Robinho, Daniel Alves e a eternização do machismo estrutural brasileiro

    Leda Costa