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Mulheres nordestinas na arquibancada: territórios de resistência

Soraya Barreto Januário 19 de janeiro de 2021

Apesar do crescimento da presença da mulher nos espaços futebolísticos, o espectro do futebol conjugado no masculino, de forma universal, seja em campo ou na arquibancada, ainda é muito presente. No ambiente clubístico, em um processo de socialização coletiva que fomenta diferentes processos pedagógicos que determinam os ritos e presenças, o futebol se consolidou pautado no “futebol de homens” (GOELLNER,2005), estabelecendo pedagogias próprias do “ser torcedor” e elencando rituais que reconhecem a hora certa para gritar, calar, os cânticos e elementos discursivos, os gestos e o portar-se nessa esfera cultural.

Ao exercerem uma pedagogia particular, própria e legitimada por sua torcida, apreendidas de forma cotidiana e reforçada, num recorte de gênero, pelo processo de reiteração e legitimação do que se entende por masculinidades e feminilidades, são atreladas representações culturais e sociais vigentes.

Aira Bomfim (2019) defende que “o termo “torcedor” é originado da presença das mulheres nos estádios de futebol no início do século XX. As mulheres frequentavam os clubes vestindo roupas formais da época, tais como vestidos, luvas e chapéus. Para além do calor sentido num país tropical, tiravam as luvas quando ansiosas ou nervosas com a partida e as torciam em sinal de incentivo. Deste ato, segundo a autora, surge a palavra no português do Brasil que congrega fãs e adeptos/as do futebol.

O protagonismo das mulheres na gênese da expressão “torcida” parece ter ficado esquecido na história de construção de uma cultura futebolística por muitos anos, seguido pelo silenciamento e, por que não, apagamento da presença das mulheres nas arquibancadas (BARRETO JANUÁRIO, 2019). Entretanto, a presença e participação das mulheres nos estádios de futebol nunca foi tão evidente como temos verificado nos últimos anos. Seja no agendamento midiático aflorado, com a crescente pauta de uma nova “primavera feminista” fortemente expressa nos anos de 2015 e 2016, até os dias atuais, na pauta midiática. Seja pela visibilidade que a Copa do Mundo da FIFA de 2019 conferiu ao futebol de mulheres no Brasil, seja pela crescente presença das mulheres no campo e nos espaços políticos do futebol, é fato que as mulheres têm cobrado e ocupado esse espaço que antes lhes fora negado.

 
 
 
 
 
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Ocorre nos últimos anos uma importante ruptura na concepção sexista de que “futebol é coisa de homem”, além da presença e resistência no campo e nas arquibancadas, como torcedora, jogadora ou na gestão do futebol em suas diversas frentes; e ainda, fora do campo, enquanto comentadora e narradora, a conquista de espaços da mulher na modalidade vem ganhando visibilidade mundial. Centrarei neste debate a mulher enquanto torcedora no âmbito das torcidas femininas do Nordeste brasileiro.

A mulher enquanto torcedora vem se legitimando em um papel cada vez mais presente nas torcidas organizadas e/ou grupos de torcedoras nos clubes de futebol fomentando novas formas de composição indenitária feminina. Recorrendo as afamadas palavras de Simone de Beauvoir (1980) “não se nasce mulher, torna-se”, é pertinente pontuar que compreendemos gênero enquanto construção social, cultural e política, partindo de um processo de legitimação social. E, portanto, acredito no processo de “tornar-se torcedora”.

As maiores torcidas no Nordeste

As reflexões que gostaria de empreender nesse espaço, reforço, concentram-se no Nordeste. Com efeito, o meu foco se dará a respeito dos clubes que têm se tornado referência nas pesquisas e iniciativas publicitadas na mídia na região, junto à torcida de mulheres.

A Pluri Consultoria realizou uma pesquisa sobre torcida no Brasil, que contou com 12,7 mil entrevistas. A amostra considerou o ranking da base populacional de 211 milhões, dado do IBGE publicado em janeiro de 2020. É a quarta da pesquisa realizada pela Pluri nesta década, após os cenários de 2012, 2013, 2016. A pesquisa colhida em 2018 apresentou sua última versão em 2020.

De acordo com o ranking da Pluri, as maiores torcidas no Nordeste, acima de um milhão de pessoas, são, respectivamente: Bahia, Sport, Vitória, Ceará, Santa Cruz, Fortaleza e Náutico. Na comparação que ranqueia o tamanho da torcida geral com o da torcida feminina, o Bahia (45,7%) e o Sport Club do Recife (44%) mantêm as suas posições de primeiro e segundo lugar se considerarmos apenas a região. Com uma pequena diferença, o Santa Cruz (PE) conta com 43%, oCeará com 38% e o Fortaleza com 34,5%.

Ainda sobre a relação de torcida geral e torcida feminina, o Bahia ocupa 13º no ranking geral de torcidas, enquanto sobe duas colocações na torcida feminina ficando em 11º, já o Sport Club Recife ocupa o 14º na classificação geral e sobe para o 13ª na preferência feminina. Cabe ressaltar que o Bahia, além de se destacar nos dados apresentados pela Publi e no cenário nacional, tem fomentado ao longo dos últimos anos através do “Núcleo de Ações Afirmativas”, ações de grande importância para tornar a atmosfera do futebol mais plural, diversa e tolerante. Além do incentivo às mulheres na arquibancada, o clube exaltou e homenageou ídolos negros de sua história e tem combatido a intolerância religiosa, além de aderir à causa LGBTQ+.

Torcida feminina ou feminista?

A crescente presença das mulheres em grupos ou torcidas organizadas caracterizam a presença feminina em ambientes, até pouco tempo, tidos como espaço públicos preferencialmente masculinos. Ao meu ver, três tipos de movimentos de mulheres que fomentam a presença e permanência feminina nos estádios destacam-se. O primeiro congrega a inclusão de alas femininas em torcidas organizadas, como “Bonde Feminino da Bamor” (Bahia), “Comando feminino torcida jovem” (Sport), “Torcida feminina Inferno Coral” (Santa Cruz) e “Comando Feminino do Garra Alvinegra” (ABC). O segundo é a criação de torcidas femininas exclusivas, sem vinculação às torcidas dominantes, como é o caso de “Timbuzeiras” (Náutico) e “Tricoloucas” (Bahia). Nesse âmbito, “Torcedora Raiz”, criado por adeptas do Ceará, foi fundado em 2018 e se autointitula como a primeira torcida organizada só de mulheres no Brasil.

O terceiro é uma movimentação literal, o desabrochar da intersecção entre as pautas, bandeiras e conquistas dos feminismos e a ocupação de espaços antes negados para as mulheres, como é o caso do futebol. A existência de grupos de discussão e debates feministas no âmago das torcidas, do qual é exemplo o “Movimentos Coralinas” (Santa Cruz), o “Alvinegras 1931” (Botafogo-PB) e o “Elas e o Sport” (Sport) aponta para uma crescente incorporação da mulher na esfera do futebol enquanto torcedora.

Os obstáculos são claros na incorporação das mulheres na arquibancada e o principal deles refere-se à presença da mulher no campo e o respeito ao seu corpo, presença e identidade. O assédio e a violência despontam como principal queixa das mulheres que frequentam os estádios (BARRETO JANUÁRIO, 2019). Todavia, ações de combate vêm sendo cobrada pelas torcedoras. Um dos exemplos mais bem-sucedidos vem mais uma vez do Bahia. A ronda Maria da Penha tem sido destacada para os jogos do clube com o intuito de evitar assédio e qualquer tipo de crime contra a mulher, um exemplo único no país e de grande relevância no incentivo da participação das mulheres nos estádios.

Foto: Reprodução CBF/Twitter

Outro ponto a destacar nesse processo diz respeito à legitimação da mulher como pessoa que não apenas compreende o esporte, mas também é capaz de nutrir sentimentos de pertencimento a um determinado clube sem a prévia legitimação masculina – ou seja, para agradar o namorado, marido, pai etc. A legitimação de seu real interesse pelo jogo de futebol, compreendendo seus aspectos técnicos e táticos e não apenas emocionais. Os movimentos e grupos de torcedoras têm sido essencial para a quebra desses estereótipos, com presença marcante nas decisões, eleições e pleitos de cunho social junto aos seus clubes.

Associar um determinado ambiente como masculino ou impróprio para as mulheres é um claro mecanismo de disciplina e de controle sobre os corpos e vozes femininas. Por essa lógica dominante, as características impostas às mulheres estiveram sempre tão distanciadas das arenas esportivas, como é exemplo a prática e afeição pelo futebol.

O Nordeste certamente congrega muito mais torcidas femininas e feministas. Esse movimento crescente inspira esperança dessa torcedora e amante de futebol que vos fala. A minha intenção era ultrapassar o papel de torcedoras e/ou partícipes do espetáculo futebolístico e destacar ações e coletivos de mulheres que vão além da torcida, que buscam a quebra processos dominantes e legitimados no ambiente clubístico, procurando equanimidade e lutando pela inserção das mulheres no futebol.

 

Referências

BARRETO JANUÁRIO, S. Mulheres no campo: o ethos da torcedora pernambucana. São Paulo: Fontenele, 2019.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo – fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1980.

BOMFIM, A. “Conheça a origem de uma das palavras mais importantes de futebol“. In: Torcedores, 2019. 

GOELLNER, Silvana Vilodre. “Mulheres e futebol no Brasil: entre sobras e visibilidades“. Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.19, n.2, abr./jun., 2005, p.143- 51.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Soraya Maria Bernardino Barreto Januário

Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social - Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos/UFPE.

Como citar

JANUáRIO, Soraya Barreto. Mulheres nordestinas na arquibancada: territórios de resistência. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 32, 2021.
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