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A nova (velha) ordem do futebol mundial

Victor de Leonardo Figols 6 de agosto de 2018

Quem acompanhou a Copa do Mundo da Rússia pela TV Globo, percebeu a construção de uma narrativa sobre o atual momento do futebol mundial. Na fala dos principais comentaristas, dos jornalistas e principalmente na voz de Galvão Bueno, buscou-se estabelecer uma ideia de que o futebol mundial havia entrado em uma nova fase. Essa constatação tomava como base a configuração das semifinais, no qual Alemanha, Argentina, Brasil e Itália não estavam entre as quatro melhores do mundo. Nunca na história das Copas do Mundo havia acontecido isso.

Durante a cobertura da semifinal e em todos os jogos até a final, Galvão e companhia insistiram que o futebol mundial havia entrado em uma nova ordem. Todavia, se observamos a história das Copas do Mundo, veremos que essa ordem não é tão nova assim, e se estabeleceu muito antes da última Copa. Mas se essa “nova ordem” do futebol é velha, então quando foi que ela começou? Se dividirmos todas as edições das Copas do Mundo em três grupos, tomando como base o desenvolvimento do futebol em escala global, teremos a seguinte configuração: de 1930 a 1938; de 1950 a 1970; e de 1974 até hoje.

A Copa do Mundo de 1930 que foi realizada no Uruguai, não contou com participação da Alemanha e Itália. O primeiro país passava por um processo de reestruturação, ainda fruto da derrota na I Guerra Mundial, enquanto que os italianos, que havia se candidatado para sediar a primeira edição, e estava em pleno florescimento do fascismo de Benito Mussolini. A Argentina ficou em segundo, após perder a final para o Uruguai. Aqui é necessário registrar que os dois países do Rio da Prata passavam por um desenvolvimento futebolístico acelerado, o Uruguai havia conquistado o bicampeonato nos Jogos Olímpicos (1924 e 1928), enquanto que os argentinos haviam conquistado quatro títulos da Copa América nos anos 1920, sendo o último em 1929. Já o Brasil, ficou em sexto lugar, e ainda estava longe dos rivais sul-americanos.

A Copa do Mundo de 1934, na Itália, passou de 13 participantes para 16, aumentando também a participação das seleções europeias. Se em 1930 eram quatro, em 1934 passou para 12. Apenas Argentina e Brasil representavam a América do Sul. Também foi em 1934 que o sistema de eliminatórios foi implantado, mais ainda sim muito distante do modelo que conhecemos hoje. A Itália, dona da casa e sob os olhos do regime fascista de Benito Mussolini, foi campeã, conquistando um título desde bronze nos Jogos Olímpicos de 1928. Já a dupla sul-americana ficou nas oitavas de finais, tendo realizado apenas um jogo. Na classificação geral, a Argentina ficou em 9º, e o Brasil em 14º. O desenvolvimento do futebol no Rio da Prata não foi sentido naquela Copa, assim como futebol brasileiro que começava a se profissionalizar. A Alemanha que fazia a sua estreia em Copas, ficou terceiro lugar. Diferentemente de Mussolini, Adolf Hitler não dava tanta importância para o futebol.

Quatro anos depois, na França, os italianos repetiram o feito e se tornaram bicampeões mundiais. O evento contou com 15 participantes, de 4 confederações diferentes. A Argentina não disputou a Copa do Mundo de 1938. A Alemanha, já sobre o controle nazista de Adolf Hitler, teve uma participação discreta, caindo logo na primeira fase, ficando em 10º na classificação geral. Já o Brasil, em sua terceira Copa seguida, fez uma campanha quase perfeita, pendendo nas semifinais para a Itália, mas conquistando o terceiro lugar.

Cartaz promocional da Copa do Mundo FIFA de 1938
Cartaz promocional da Copa do Mundo FIFA de 1938

As Copas do Mundo de 1930, 1934 e 1938 foram um período de muita experimentação, testes e de organização da Copa do Mundo, e do próprio futebol, que passava por uma plena evolução em termos táticos, quando esse processo foi interrompido pela II Guerra Mundial. Nessas três primeiras edições de Copa do Mundo, o futebol foi marcado pelo amadorismo, mas a profissionalizado estava começando a ganhar forma tanto na Europa, quanto na América do Sul.

Passado a guerra, a Copa do Mundo retornou ao calendário esportivo em 1950, com a Copa do Mundo no Brasil. Como anfitrião, a participação brasileira era garantida, mais 12 seleções se juntaram para a competição. A Alemanha, que sofria com as consequências da guerra, foi proibida de participar. Já a argentina, ficou de fora por divergências entre a sua Federação de Futebol e a Confederação Brasileira de Desportos (CBD). O Brasil, que passava por uma transição de jogadores, fez uma campanha quase brilhante, perdendo para o Uruguai na final. Os uruguaios haviam se mostrado um rival difícil de ser batido, de 1945 até a Copa do Mundo de 1950, brasileiros e uruguaios se enfrentaram 12 vezes, o Brasil venceu seis, os uruguaios quatro, além de três empates. A Itália ficou em 7º na classificação geral, muito distante das duas últimas campanhas.

Na Suíça, em 1954, a Seleção Brasileira se juntou com Itália e Alemanha Ocidental (isto é, apenas a parte que fora ocupada pelos aliados durante a II Guerra) e mais 13 seleções. A Argentina ficou de fora, mais uma vez. O sistema de eliminatórias fora implantado, mas diferente e mais reduzido do que acontece hoje em dia, assim como o sistema de disputa. Mais uma vez a Itália fez uma campanha ruim, ficando em 11º, o Brasil ficou longe da final, caindo nas quartas, e ficando em 6º lugar. Já a Alemanha Ocidental foi campeã após um grande jogo contra Hungria, que apresentou um futebol inovador e eficaz em termos táticos.

Era o início de uma fase de modernização do futebol, e as Copas do Mundo se tornariam uma grande vitrine para experiências e criações táticas que dariam o tom dos clubes durante pelos menos quatro anos. Foi assim em 1954, com a Hungria, que mesmo não sendo campeã mostrou ter o melhor futebol apresentado daquela Copa.

Em 1958, correndo por fora dessa lógica, o Brasil apostou na individualidade do jovem Pelé e finalmente o Brasil chegou ao título mundial. Os nossos vizinhos argentinos ficaram em último lugar no grupo. A então campeã, a Alemanha Ocidental ficou com o quarto lugar. E a Itália não se classificou para aquela edição da Copa do Mundo. Quatro anos depois, no Chile, o Brasil foi bicampeão. Naquela edição, as quatro seleções estiveram na competição, entretanto, a Argentina ainda vivia em seu calvário futebolístico e os italianos, que já viviam das glórias do passado, não passaram da fase de grupos. A Alemanha Ocidental caiu na fase de quarta de final.

Em 1966, a Copa do Mundo foi realizada na Inglaterra, e o título ficou nas mãos dos anfitriões. A Alemanha Ocidental e a Argentina estavam no mesmo grupo, e ambas se classificaram, os alemães ficaram com o vice-campeonato, já os argentinos caíram nas quartas de final. O Brasil, que enfrentou diversas dificuldades, como por exemplo a lesão de Pelé, ficou na fase de grupos, assim como a Itália.

A Seleção Brasileira se reergueria em 1970, na Copa do Mundo do México, com o tricampeonato, vencido sobre a Itália. A Alemanha Ocidental ficou em terceiro lugar. A campanha do Brasil foi brilhante, apresentando para o mundo o estilo de jogo que mais inspirou (e ainda inspira) muitos técnicos de futebol. Em termos técnicos e táticos a Seleção Brasileira estava muito à frente das outras seleções e mostrou para o mundo como se deveria jogar futebol a partir de então. Mas veio 1974, e a Holanda revolucionou o jeito de se jogar futebol, com uma intensidade e uma dinâmica única. A Laranja Mecânica apresentou o Futebol Total.

Tesltar Copa 70 - Bola da Copa do Mundo de 1970. Foto: Fernando Frazão - Agência Brasil
Tesltar Copa 70 – Bola da Copa do Mundo de 1970.
Foto: Fernando Frazão – Agência Brasil

Naquela Copa, Alemanha Ocidental e Oriental se enfrentaram na fase de grupo, o mesmo aconteceu em outro grupo com Itália e Argentina. Em 1974, foi experimentado um formato de duas fases, na primeira fase de grupos as 16 seleções eram divididas em quatro grupo com quatro seleções, as duas melhores de cada grupo avançariam para uma segunda fase de grupos, cada um contendo quatro seleções. Dali o melhor de cada grupo disputaria da final, e os dois melhores, disputaram o terceiro lugar. A Alemanha Oriental e a Argentina ficaram em terceiro e quatro lugares, respectivamente, no grupo que contava com Holanda e Brasil. Apesar do futebol apresentado em 1970, a Seleção Brasileira não chegou a repetir o feito, perdendo para os holandeses, e ficou em quarto lugar na classificação geral. Enquanto isso, os holandeses faziam uma revolução tática que os levaram para a final contra a Alemanha Ocidental. Em um jogo disputadíssimo, em que os alemães apresentaram também uma forma diferente de se jogar futebol, ainda que não tão dinâmico quanto os holandeses, mas vitorioso. A Alemanha conquistou o seu segundo título mundial com a sua versão do futebol total.

Se de 1950 a 1970, o futebol mundial viveu uma fase de inovações e desenvolvimento tático e técnico, no qual as Copas do Mundo era uma vitrine para ditar as tendências de jogo que durariam por pelo menos quatro anos. A Copa do Mundo de 1974 foi o momento de transição para uma nova fase, uma fase de revolução tecnológica de como se transmitir futebol, e de como entender o futebol enquanto negócio. O então presidente de FIFA, João Havelange transformou a Copa do Mundo em um dos negócios mais lucrativos do mundo, globalizou a marca da FIFA e barganhou votos com as federações menores, tudo com o pretexto de levar o futebol para os lugares mais longínquos do globo.

A globalização do futebol, o papel da televisão, o interesse comercial na Copa do Mundo e no futebol, colocaram o esporte mais popular em um caminho sem volta da extrema mercantilização. A Copa do Mundo de 1978 já dava indícios de que era um evento para gerar lucros, os acordos televisivos e com a Adidas são exemplos. Naquela Copa, Alemanha Ocidental, Argentina, Brasil e Itália participaram, sendo que os alemães ficaram em 6º, os argentinos em foram campões, o Brasil ficou em terceiro, e a Itália em quarto.

Já na Copa de 1982, a FIFA de João Havelange garantiu mais seleções na disputa, fruto de suas barganhas por voto. Aquela Copa do Mundo teve uma ampliação de 16 para 24 seleções, e mais uma vez as quatro seleções estiveram presentes: a Itália foi campeã, justamente sobre a Alemanha Ocidental, o Brasil ficou em quinto, e a Argentina em 11º. Pela configuração da final e da disputa de quarto lugar é possível destacar que foi composta apenas por seleções europeias, a nova ordem que teve início em 1974 começava a ganhar forma. Com a intensa mercantilização do futebol, a Europa, que já era um centro futebolísticos, passou a receber mais investimentos. O interesse televisivo e de grandes marcas revolucionaram o futebol europeu, em termos econômicos. Esse desenvolvimento econômico não foi sentido da mesma forma nas periferias futebolísticas, é o caso da América do Sul.

Na Copa de 1986, a Argentina foi campeã, em uma competição em que Alemanha Ocidental ficou como segundo lugar, o Brasil em quinto, e a Itália conseguiu passar para quartas de finais. Entre as quatro melhores seleções daquela edição, três eram europeias. O mesmo cenário se repetiu em 1990, quando a Argentina perdeu para a Alemanha Ocidental. Ainda naquela edição, a Itália ficou em terceiro lugar, já o Brasil ficou 9º, quando caiu nas oitavas de final. Na Copa do Mundo de 1994, mais uma vez o cenário se repetiu, com o Brasil campeão, vencendo a Itália. A Alemanha ficou em 6º, e a Argentina em 10º.

Cerimônia de Encerramento - Copa do Mundo de 1994. Foto: Wikipédia
Cerimônia de Encerramento – Copa do Mundo de 1994.
Foto: Wikipédia

A Copa do Mundo de 1998 ampliou o número de participantes para 32, abrindo mais vagas para as seleções que estavam ainda mais na periferia do futebol, como Ásia e África. Aquele abismo econômico, que havia sido aberto nos anos 1970, era ainda maior entre as seleções europeias e asiáticas ou africanas. O Brasil perdeu a final para a França, a Itália ficou em 5º, a Argentina em 6º e a Alemanha em 7º. Dentre as 10 primeiras seleções na classificação geral, apenas Brasil e Argentina não são europeias.

Esse quadro apresentou uma variação em 2002, na primeira Copa do Mundo que não aconteceu fora da Europa ou Américas, realizada na Coreia do Sul e no Japão. O Brasil foi campeão, vencendo a Alemanha, a Turquia ficou em terceiro lugar, à frente da Coreia do Sul. A Itália ficou em 15º, e a Argentina 18º, atrás das seleções com pouca tradição futebolísticas, como Japão e Senegal, por exemplo. Mas foi só uma esperança de mudança de cenário. A Copa do Mundo de 2006 contou com quatro seleções europeias entre as quatro primeiras. A Itália foi a campeão, e a Alemanha ficou com o terceiro lugar, já o Brasil e a Argentina ficaram em 5º e 6º lugares, respectivamente. Na Copa do Mundo de 2010, a primeira Copa do Mudo no continente africano, a configuração de três europeus para um sul-americano se manteve. A Alemanha ficou em terceiro lugar, os argentinos em quinto, a seleção brasileira em sexto, já a Itália ficou em 26º. O desenvolvimento econômico do futebol fazia o seu primeiro campeão, a Espanha. Em meio à crise econômica que assolava a Espanha desde 2008, a futebol espanhol, graças aos grandes investimentos de patrocinadores e das redes televisivas, passava por sua de suas fases mais vitoriosas, com grandes resultados nos clubes, isso foi sentido também na seleção.

Na Copa do Mundo no Brasil, em 2014, a Alemanha foi campeã, vencendo a Argentina, o Brasil ficou em quarto, e a Itália em 22º. O cenário mudou um pouco, mas os avanços técnicos e táticos mostrados por seleções como da Alemanha, França, Bélgica e até mesmo Suíça alertavam para o abismo que vinha se alargando. O desenvolvimento econômico no futebol europeu (tanto em clubes, quanto nas seleções) passava a dar resultados também no terreno futebolístico.

A Copa do Mundo de 2018 mostrou como as seleções europeias, mesmo não tendo grande protagonismo nas Copas, estão à frente até mesmo de seleções tradicionais como Brasil e Argentina, que ficaram em 6º e 16º, respectivamente. A Itália não participou daquela Copa, e mesmo a Alemanha tendo caído na primeira fase, o futebol alemão ainda segue sendo um dos mais ricos e vitoriosos do globo.

A taça da Copa do Mundo. FOTO/ RFSRU
A taça da Copa do Mundo. FOTO/ RFSRU

A trajetória de Alemanha, Argentina, Brasil e Itália nas Copas do Mundo mostra como essas seleções são extremamente tradicionais na competição, mas que estão ameaçadas a partir dessa novo ordem que vem ganhando força cada vez maior desde 1974. É bem verdade que para Brasil e Argentina, o cenário é muito mais preocupante do que para Alemanha, e no caso italiano, o sinal alerta está ligado, já que suas últimas campanhas em Copas vêm piorado, resultado do enfraquecimento econômico e futebolístico do futebol italiano.

De 1974 a 2018, foram 11 Copas, Brasil e Argentina venceram duas cada, a Alemanha três, a Itália e França duas cada, e a Espanha uma. A nova ordem que Galvão Bueno anunciou, tem na verdade sua origem em 1974, e a Copa do Mundo de 2018 só escancarou, que cada vez mais a seleções europeias vão figurar entre as melhores do mundo. Só para se te ruma ideia, o Brasil não ganha de uma seleção europeia em mata-mata desde a Copas desde 2006.

A nova (velha) ordem que foi posta a partir de 1974 é: ganha quem tem mais dinheiro. Obviamente, isso não tira o fator do acaso, do imponderável no futebol, mas com o abismo econômico e, consequentemente, futebolístico, vai ficar cada vez mais raro ver seleções de fora da Europa ser campeã, mesmo a Copa do Mundo sendo uma competição de “tiro curto” e com diferentes variáveis.

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. A nova (velha) ordem do futebol mundial. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 6, 2018.
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