106.7

O futebol feminino no Brasil e na América do Sul: um breve olhar

Eduardo de Souza Gomes 7 de abril de 2018

Em janeiro passado, se deu início mais uma edição da Copa Libertadores da América de futebol masculino. Enquanto a competição masculina atrai mais uma vez os holofotes da modalidade na América do Sul, buscarei neste pequeno texto abordar um pouco da versão feminina da competição organizada pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), assim como estabelecer um panorama da modalidade no continente como um todo. Destaco, desde já, que a análise foi aqui realizada de forma superficial, buscando mais questões quantitativas do que qualitativas, de forma que possa suscitar a curiosidade do leitor e, quem sabe, fazer com que estudos mais específicos surjam a partir de então.

Chapecoense vs Nacional Libertadores, fotos Sirli Freitas
Chapecoense-BRA x Nacional-URU, em jogo válido pela segunda fase da Copa Libertadores da América 2018. Foto: Sirli Freitas.

Em 1960, a Conmebol começou a organizar, de maneira oficial, competições de clubes no cenário sul-americano, tendo como marco a criação da Copa Libertadores da América de futebol masculino. Atualmente, essa continua sendo a principal competição organizada pela entidade no continente. Além dessa, nos dias atuais também ocorrem a Copa Sul-Americana e a Recopa Sul-Americana. Entre as competições intercontinentais, destacamos a Copa do Mundo de Clubes FIFA (disputada pelo campeão da Copa Libertadores) e a Copa Suruga Bank (confronto realizado entre o campeão da Copa Sul-Americana e o vencedor da Copa da Liga Japonesa).

Além dessas, outras competições organizadas pela entidade já não existem mais, porém também são entendidas como competições oficiais. São essas: Supercopa da Libertadores (1988-1997), Copa Conmebol (1992-1999), Copa Mercosul (1998-2001), Copa Merconorte (1998-2001), Copa Master da Supercopa (1992-1995), Copa Master da Conmebol (1996), Copa Ouro (1993-1996), Copa Ibero-americana (1994) e Copa Interamericana (1968-1998). No âmbito intercontinental, podemos citar a Recopa Intercontinental (1968-1969) e a Copa Intercontinental (1960-2004), tendo essa última antecedido a atual Copa do Mundo de Clubes FIFA. No ano passado, segundo informação divulgada no site da Conmebol, a FIFA sinalizou pelo reconhecimento dessa competição enquanto um título mundial oficial, tendo essa decisão sido tomada a partir de uma solicitação da própria entidade sul-americana.

11
Proposta da Conmebol de reconhecimento dos títulos da Copa Intercontinental como mundiais.

Além disso, algumas competições, mesmo não tendo sido organizadas pela Conmebol, foram chanceladas pela entidade. Um exemplo é o Campeonato Sul-Americano de Clubes campeões, organizado em 1948 pela equipe chilena Colo Colo e vencido pelo brasileiro Vasco da Gama. Mesmo durante muito tempo não tendo sido reconhecido oficialmente como competição continental, esse título passou a ter a chancela da Conmebol em 1997, quando a pedido do C. R. Vasco da Gama, a entidade permitiu que a equipe disputasse a Supercopa da Libertadores daquele ano. Como essa competição só era disputada por equipes vencedores da Copa Libertadores (e até então o Vasco nunca havia ganho a competição, fato que alcançaria em 1998), a participação do Vasco como campeão do torneio em 1948 demonstra o reconhecimento da entidade para essa disputa como sendo o primeiro grande campeonato sul-americano de clubes e o percussor da Copa Libertadores, que se iniciaria doze anos depois.

12

Equipe do Vasco da Gama campeã do Sul-Americano de Clubes em 1948. Fonte: Centro de Memória C. R. Vasco da Gama

Mesmo com todo esse desenvolvimento e número de competições no masculino, o futebol feminino, entretanto, historicamente sempre se manteve em uma posição de desigualdade. Essa situação é muito explicada pela posição patriarcal e machista da sociedade em que estamos inseridos que, dentre outras esferas, também exerceu seus reflexos no âmbito do futebol. Assim, mesmo com avanços, o futebol feminino sempre esteve muitos passos atrás do masculino. Se compararmos com outras modalidades esportivas, no que diz respeito a posição da prática entre homens e mulheres, veremos que o futebol exacerba ainda mais tal discrepância no contexto sul-americano, muito devido a espetacularização e o mercado alcançados no masculino.

Mesmo com esse cenário, o avanço do futebol feminino no continente, ainda que com passos lentos, tem ocorrido. No senso comum, poucos conhecem e/ou acompanham as competições da modalidade, principalmente se comparado com o futebol masculino. Todavia, no que se refere a formação de um campo, tal cenário teve sensíveis modificações nas últimas décadas.

Se ainda não podemos falar, nem de perto, que o futebol feminino alcançou um posto similar ao do futebol masculino, que é um objeto a parte, pelo menos conseguiu desenvolver competições e estabelecer um status antes não imaginado. No Brasil, por exemplo, o avanço do futebol feminino se deu, com maior força, a partir dos anos 1990, tendo desde então consolidado um selecionado nacional que se destaca ano após ano entre os mais fortes do mundo.

Mesmo sem nunca ter ganho uma Copa do Mundo, o selecionado brasileiro feminino já foi vice-campeão mundial em 2007; medalha de prata nos Jogos Olímpicos de verão em Atenas 2004 e Pequim 2008; além de seis vezes campeão da Copa América. Jogadoras como Cristiane, Formiga e Marta, entre outras, ganharam muito destaque nos últimos anos, tendo essa última sido eleita pela FIFA a melhor jogadora do mundo por cinco vezes seguidas entre 2006 e 2010.

Marta durante jogo do Brasil contra os Estados Unidos, 14 de Dezembro de 2014. Bruno Domingos/Mowa Press
A brasileira Marta foi eleita por cinco vezes consecutivas a melhor jogadora de futebol do mundo pela FIFA. Foto: Bruno Domingos/Mowa Press.

No continente sul-americano como um todo, o avanço de competições entre seleções femininas de futebol também é notável, tendo o Campeonato Sul-Americano de Futebol Feminino (organizado pela Conmebol e também conhecido como “Copa América feminina”) tido sete edições desde 1991, com seis vitórias do Brasil e uma da Argentina, em 2006, onde as brasileiras foram vice-campeãs. A oitava edição da competição ocorrerá nesse ano de 2018, no Chile.

No âmbito maior, a Copa do Mundo (com sete edições desde 1991) e os Jogos Olímpicos de verão (com seis edições desde Atlanta 1996) continuam sendo, globalmente, as principais competições do futebol feminino. Os melhores resultados de selecionados sul-americanos nessas competições foram também alcançados pela seleção brasileira, que como já explicitado, foi vice-campeã mundial em 2007 e olímpica em 2004 e 2008. Fora do cenário sul-americano, mas ainda na América, é inegável o domínio dos Estados Unidos no futebol feminino, tendo sua seleção já ganho quatro medalhas de ouro olímpicas e três Copas do Mundo, dividindo com seleções como Alemanha, Noruega e Japão, o posto de seleções nacionais mais vitoriosas na história do futebol feminino.

No âmbito dos clubes, o abismo para o futebol masculino ainda continua grande e se faz maior até do que os eventos de seleções (pelo menos no que se diz respeito ao público que acompanha e aos patrocínios). No Brasil, a realização de competições como a Copa do Brasil (de 2007 a 2016) e o Campeonato Brasileiro (a partir de 2013), fizeram com que a formação de equipes femininas no país aumentasse no interior dos clubes. Porém, com a suspensão da Copa do Brasil feminina em 2017 pela CBF, novamente a falta de incentivo se tornou evidente na organização da modalidade no país, dificultando o mantimento e investimento em atletas por parte das equipes

A Copa Libertadores da América de futebol feminina teve seu início em 2009. Desde então, os clubes brasileiros são os recordistas de conquistas, o que evidencia ainda mais a necessidade de se investir nas atletas que representam as equipes do país. Entre os nove campeões, sete são clubes brasileiros: Santos (2009 e 2010), São José (2011, 2013 e 2014), Ferroviária (2015) e Audax, em parceria com o Corinthians (2017). Completam a lista o chileno Colo Colo (campeão em 2012) e o paraguaio Sportivo Limpeño (vencedor em 2016).

É de destaque que, sem os holofotes do futebol masculino, equipes de menor expressão na modalidade entre os homens, alcançaram notáveis resultados com as mulheres. São os casos de São José e Ferroviário, equipes brasileiras de pouca expressão no futebol masculino, mas campeãs da América entre as mulheres (o Audax, apesar de pouca expressão no masculino, foi campeão da América em 2017 no feminino com uma equipe formada em parceria com o Corinthians). Além da parceria entre Audax e Corinthians, que juntaram “grandes e pequenos”, a grande exceção à regra é o Santos, bicampeão da Libertadores entre as mulheres, tendo também ganho três vezes a competição na história entre os homens.

Barueri – SP – 22/06/2017 – BRASILEIRÃO CAIXA 2017 – ESPORTES – Jogo 117, Grupo 03 da Série A1 do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino “Brasileirão Caixa 2017” entre, S.C. Corinthians Paulista/Audax X Ferroviária de Araraquara, realizado na Arena Barueri em Barueri, SP; válido pelo grupo 03 do Brasileirão Feminino 2017 A1. Foto: JOSÉ PATRÍCIO/ALLSPORTS
Audax/Corinthians campeão da Copa Libertadores de futebol feminino em 2017. Foto: José Patrício/ALLSPORTS.

A vitória da Libertadores de 2017 foi exaltada com grande entusiasmo pelas diretorias de Corinthians e Audax. A parceria entre os clubes para formar a equipe vencedora demonstra como o futebol feminino ainda carece de patrocínios e outras formas de investimentos, tendo sido a junção de dois clubes a solução encontrada para unirem forças e alcançarem grandes conquistas. No caso do São José, tricampeão da Libertadores e campeão mundial em 2014, quando clicamos no link “elenco” no site do clube, automaticamente é aberta uma nova página com todos os atletas do futebol masculino, sem nenhuma menção feita em relação as atletas do time feminino, mesmo tendo sido com essas as principais conquistas da história do clube, já que no futebol masculino seus títulos são inexpressivos.

Se são, entre outros motivos, títulos como o da Libertadores que caracterizam um clube como sendo ou não grande, a não elevação das equipes femininas campeãs da América ao mesmo patamar alcançado pelos times masculinos, nos demonstra o quanto ainda é marginal a posição do futebol praticado por mulheres. Todavia, o que poderia ser um motivo de desânimo, tem se tornado uma causa de luta para as meninas que ainda sonham em fazer do futebol uma forma de profissão e levar a vida. Se é a Copa Libertadores da América um campeonato que, como já fica explicito em seu nome, simboliza as lutas pela libertação do continente americano, a presença de uma competição feminina de futebol dentro desse cenário, se faz também mais que necessária e importante para continuarmos avançando com a quebra dos padrões patriarcais estabelecidos e com o fim das desigualdades de gêneros existentes dentro da sociedade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Edu Gomes

Historiador, professor e pesquisador do esporte. Doutor e mestre em História Comparada, com ênfase em História do Esporte, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com período sanduíche na Universidad de Antioquia (UdeA), Colômbia. Graduando em Educação Física (Claretiano). Atua como pesquisador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ). Professor na Educação Superior e Básica. Editor e colunista de esportes do Jornal Toda Palavra (Niterói/RJ), além de atuar como repórter e comentarista da Rádio Esporte Metropolitano. Autor dos livros intitulados "A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954)" (Ed. Appris, 2019) e "El Dorado: os efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951)" (Ed. Multifoco, 2014). Organizador da obra "Olhares para a profissionalização do futebol: análises plurais" (Ed. Multifoco, 2015), além de outros trabalhos relacionados à História do Esporte na América Latina.

Como citar

GOMES, Eduardo de Souza. O futebol feminino no Brasil e na América do Sul: um breve olhar. Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 7, 2018.
Leia também:
  • 178.22

    De beijos forçados a desequilíbrios de poder, a violência contra as mulheres no esporte é endêmica

    Fiona Giles, Kirsty Forsdike
  • 177.31

    A necessidade de se provar: misoginia e racismo no futebol

    Nathália Fernandes Pessanha
  • 177.30

    Marielle, Robinho, Daniel Alves e a eternização do machismo estrutural brasileiro

    Leda Costa