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O (lento) processo de repopularização dos estádios e arenas no Brasil

Fernando da Costa Ferreira 22 de maio de 2024

A partir do final da década de 1990, assistimos a um processo de reelitização dos locais destinados à prática do futebol no Brasil. Gustavo Coelho (2015) elegeu como três principais símbolos desses espaços ressignificados: a cadeira, o lugar marcado e a visão plena do campo de jogo.

Passada a Copa do Mundo de 2014, constatamos um lento, porém contínuo, processo de repopularização dos nossos estádios e arenas. Mesmo assim, ainda são iniciativas tímidas, que procuram confinar grupos de torcedores em pequenos pontos, geralmente sem assentos e convenientemente chamados de “setores populares”.

Pretendemos, de forma breve, identificar algumas causas responsáveis pela derrota parcial do projeto de reelitização do futebol e questionar como o termo “setores populares” tem sido empregado pelos gestores dos nossos estádios e arenas. Procuraremos também apontar possíveis caminhos e iniciativas para o retorno e a permanência dos torcedores de baixa renda. Em outras palavras, o que seria um setor verdadeiramente popular?

Apontamentos iniciais

No caso específico das partidas de futebol, podemos identificar três fatores responsáveis pelo fracasso parcial da imposição do novo modelo pretendido para esses novos ou remodelados espaços, destinados também à contínua geração de renda a partir da realização de outras atividades voltadas ao entretenimento pago:

  • A impossibilidade de ocupar as arenas apenas com torcedores das classes média, média-alta e alta de forma constante e fiel. A cobrança de ingressos caros gera uma expectativa no público frequentador de que a sua “prova de amor” seja correspondida com a vitória do time do coração. Devido ao caráter imprevisível do futebol, nem sempre a expectativa se confirma. Nos momentos de maior dificuldade da equipe, há uma tendência ao desinteresse de parte do público, frustrado com a possibilidade de frequentar um evento sem qualquer garantia de retorno do investimento realizado. Percebe-se também, em razão da falta de uma cultura torcedora “tradicional” que busque o incentivo a partir de cânticos, bandeiras e instrumentos musicais (estes dois últimos, quando permitido), a produção de uma atmosfera mais “fria”, que pode ter reflexos no desempenho dos jogadores em campo. Paralelamente, há também a frustração de parte desses frequentadores, que buscam curtir (e compartilhar nas redes sociais) espaços de festa que ficaram no passado.
  • As estratégias adotadas por alguns clubes que, em busca de um maior incentivo por parte de seus adeptos (especialmente em jogos de menor apelo e na luta pela manutenção de divisão) bancavam partidas a preços promocionais. A falta de um público fiel, disposto a encher os estádios, pagando altos valores por todas as partidas, “obriga” os dirigentes dos clubes a buscarem saídas para a ocupação dos lugares vagos. Não raro, os torcedores inicialmente excluídos desses espaços são recrutados para “salvar” a equipe de situações adversas. Ainda que não haja uma relação direta renda-vibração, a chegada dos até então “indesejáveis”, especialmente aqueles vinculados às expressões coletivas de torcer, cria uma ambiência diferente, que lembra a dos antigos estádios.
  • Os movimentos de resistência empreendidos por grupos de torcedores tradicionais (alguns deles com poder econômico para frequentar os novos espaços), que pressionaram o poder público e as diretorias das associações esportivas pela reconquista dos setores populares e da descriminalização das expressões coletivas de torcer. Não fosse a pressão dos grupos de torcedores tradicionais, o processo de repopularização dos estádios dificilmente teria iniciado. A resistência imposta por eles contra a exigência do respeito ao lugar marcado e ao confinamento nos assentos, acelerou o renascimento de uma “cultura de arquibancada” que parecia fadada ao desaparecimento, marcada, pelo que Gilmar Mascarenhas (2019) chamava de carnavalização e livre movimentação dos corpos.

É verdade que o processo em curso não ocorre de forma homogênea pelo país. Não é possível comparar o público frequentador do Allianz Parque, do agora vitorioso Palmeiras (cuja empresa responsável pela gestão da arena parece procurar “encaixar” as partidas da equipe entre a realização de eventos variados), com o da Arena Fonte Nova, do atual Morumbis, ou do Castelão por exemplo.

Elitização futebol
Torcedor mostra cédulas de 100 reais. Foto: A.Paes/Depositphoto.

Popular para quem?

Precisamos compreender o que caracteriza um setor verdadeiramente popular. Na visão dos gestores dos estádios e arenas, um setor popular seria aquela porção onde se cobram os ingressos mais baratos. A feição arquitetônica desses locais relaciona-se à retirada dos assentos e a instalação de barras de segurança (casos das arenas do Grêmio e do Corinthians). Compreendo que um setor seja verdadeiramente popular quando possibilita ao torcedor menos afortunado o comparecimento, de forma contínua e regular, ao estádio, não apenas nos momentos que o time do coração se encontra em apuros. Não é a localização ou a ausência de conforto que “populariza” um setor, mas sim políticas de acesso e permanência para quem o frequenta. Se, por acaso, um clube cobrar 150 ou 200 reais para alguém assistir a uma partida em pé e atrás do gol, não teremos um setor popular, mas sim uma estratégia perversa de aumentar a arrecadação com o incremento da capacidade do estádio.

Outra questão importante é mencionada por Irlan Simões. Geralmente, os setores ditos populares dos estádios e arenas são destinados às torcidas organizadas (ainda que nem todos os seus componentes pertençam obrigatoriamente às classes menos favorecidas economicamente). Mas, e aquele torcedor de baixa renda que gostaria de ir ao estádio sozinho ou acompanhado de amigos e familiares e que não deseja (ou mesmo teme) estar próximo às organizadas?

Quando estudei, em 2015 e 2016, o “novo” Maracanã pós-Copa do Mundo (e nos períodos imediatamente anterior e posterior aos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio-2016), constatei que o estádio das práticas cotidianas não conseguiria sobreviver “engessado” ao espaço concebido para a realização dos dois maiores megaeventos esportivos do planeta. Ao analisar cinquenta e uma partidas em oito diferentes setores, pude perceber a existência de setores de perfil popular nas porções Norte e Sul, localizadas atrás dos dois gols. Essas duas partes encontravam-se subdivididas nos níveis 1 (inferior), e 2 e 5 (superior) (Foto 1).

Foto 1: Distribuição do Maracanã por setores. Destaque para as porções Norte (em verde) e Sul (em amarelo e laranja). Fonte: Acervo pessoal (2015)

O que conferia às porções Norte e Sul traços de setores populares, tinha relação não somente com a cobrança de valores menos caros pelas entradas, mas também pela existência de políticas públicas que facilitavam o acesso de pessoas de menor poder aquisitivo. Podemos destacar a leis da meia-entrada e das gratuidades (limitada a 10% da capacidade total do estádio). A cobrança de 50% do valor total do ingresso contemplava (em todos os setores) estudantes, idosos com 60 anos ou mais, jovens pertencentes a famílias de baixa renda com idades entre 15 e 29 anos, pessoas com deficiência (e acompanhantes, quando necessário), professores e profissionais da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro e menores de 21 anos. No caso específico dos setores Norte e Sul, era concedida a gratuidade a portadores de necessidades especiais, menores de 12 anos e idosos a partir de 65 anos.

A grande diferença entre as partes inferior e superior dizia respeito à ocupação desses espaços. Ainda que, em boa parte das partidas, não houvesse qualquer separação formal relacionada ao acesso dos frequentadores, a concentração das torcidas organizadas nas porções superiores fez com que os níveis inferiores tivessem uma feição bastante peculiar, com a presença marcante de mulheres, crianças e idosos (Foto 2).

Foto 2. Torcida do Flamengo no setor Norte inferior. Destaque para a menina, em pé na cadeira, tremulando a bandeira do clube. Fonte: Acervo pessoal (2015).

Conforme pude constatar acerca do processo de construção do público frequentador dos setores inferiores Norte e Sul do Maracanã:

(…) a ampla legislação que normatiza a concessão de meias-entradas e gratuidades a diferentes categorias no Maracanã, apesar das inúmeras críticas, permite a determinados arranjos familiares e de grupos de amigos das classes menos favorecidas (especialmente à classe média-baixa) frequentar o estádio regular e/ou esporadicamente. Em situações pontuais, possibilita a reterritorialização de parte dos antigos frequentadores, desterritorializados pelo progressivo encarecimento do preço cobrado pelas entradas nos últimos anos. A significativa redução do valor per capita gasto com ingressos costuma ter no nível 1 dos setores Norte e Sul sua expressão visível. Ao que parece, os pais e avós elegem esse local como “porta de entrada” para que seus filhos tenham o primeiro contato com o estádio. É possível ter essa percepção especialmente em partidas disputadas nos finais de semana e feriados, com início durante os períodos matutino e vespertino, que oponham o time do coração a equipes cujo contingente de adeptos não seja percebido como “perigoso”. (FERREIRA, 2017, p. 336)

Nos últimos anos, assistimos também à implantação de tímidas medidas institucionais que buscam a repopularização dos estádios, com o afluxo especialmente da classe média-baixa a partir do acesso a setores menos procurados. Um bom exemplo é o plano “Arquiba Raiz” ofertado pelo Fluminense Football Club. Pelo valor mensal de 40 reais, o sócio-torcedor tem direito a um desconto de 75% no setor Leste Superior, que possui uma visão plena do gramado e encontra-se distante das torcidas organizadas.

Podemos concluir que há em curso um processo de repopularização nos espaços destinados à prática do futebol no Brasil. Ainda que não ocorra na velocidade e da maneira que desejamos, a resistência empreendida pelos torcedores tradicionais, aliada a questões conjunturais, não tivemos a plena implantação das arenas e estádios arenizados como espaços concebidos para o afluxo de cidadãos pertencentes às classes média, média-alta e alta.

Ainda há um longo e árduo caminho a ser percorrido para que tenhamos uma verdadeira reterritorialização dos torcedores organizados e de menor poder de compra. Sem políticas públicas e institucionais que garantam o acesso e permanência desses grupos, corremos o sério risco de retrocedermos nos avanços alcançados pelos movimentos de resistência nas últimas décadas.

Referências

FERREIRA, Fernando da Costa. O estádio de futebol como arena para a produção de diferentes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo Maracanã. 2017. 439 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

FLUMINENSE FOOTBALL CLUB. Socio Futebol. Disponível em:  https://sociofutebol.com.br/ Acesso em 20 de maio de 2024.

MASCARENHAS, Gilmar. O direito ao estádio. Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 12, 2019.

OLIVEIRA, Gustavo R. Coelho. Pixadores, Torcedores, Bate-Bolas e Funkeiros: enigmas no reino da humanidade esclarecida. 2015. 216 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2015.

SIMÕES, Irlan. Três questões sobre a arena do Galo: ponto cego, ‘setor popular’ e entrega à SAF. Disponível em: https://ge.globo.com/blogs/blog-do-irlan-simoes/post/2023/07/18/tres-questoes-sobre-a-arena-do-galo-ponto-cego-setor-popular-e-entrega-a-saf.ghtml. Acesso em 20 de maio de 2024.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fernando da Costa Ferreira

Doutor em Geografia pela UERJ. Professor do Instituto Benjamin Constant. Autor da tese O estádio de futebol como arena para a produção de diferentes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo Maracanã. Apesar de sofrer (e se desesperar) com o seu time, se orgulha de ter feito com que Fernanda e Helena (ainda que sem qualquer chance de escolha...) herdassem a paixão paterna.

Como citar

FERREIRA, Fernando da Costa. O (lento) processo de repopularização dos estádios e arenas no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 24, 2024.
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