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O que move as torcedoras?

Sou fanática pelo meu time, o Palmeiras. Acompanho religiosamente todos os jogos desde pequena. Todavia, sempre me incomodou a necessidade de “provar” que realmente sei do que estou falando. Tenho que saber o esquema tático, o nome de todos os jogadores, o técnico de cada título, quando falar de um possível impedimento ou uma substituição que seria saudável para vencermos a partida. Diversas vezes, faço um comentário que não é levado em consideração e, então, um homem diz exatamente a mesma coisa e todos concordam.

Essa inquietação pessoal, obviamente, é histórica. O universo simbólico do futebol é associado a masculinidade, força, destreza, virilidade. O próprio termo “torcedoras” advém desse contexto – em que, as mulheres torciam seus lenços e fitas, na arquibancada, se apresentando enquanto uma das poucas expressões utilizadas no meio futebolístico que não são importadas da Inglaterra. Contudo nem sempre foi assim, nos anos 40, surgiram os torcedores-símbolos, figuras centrais das arquibancadas, que representavam a coletividade de sua torcida.

Dentre esses atores, havia algumas mulheres, como Elisa, do Corinthians e Fafinha, do São Paulo. Em 1961, Dulce Rosalina, liderança vascaína, ganhou o prêmio de melhor torcedor do Brasil, promovido pela “Revista do Esporte”. Com o crescimento e consolidação de diversas torcidas organizadas ao longo da segunda metade do século XX, o protagonismo e participação das mulheres nas arquibancadas aumentou expressivamente, inclusive gerando movimentos de torcedoras e torcidas femininas.

Apesar do cenário promissor, minha inquietação é recorrente entre as amantes do futebol. Ainda seguimos lutando para conquistar espaços hegemonicamente do patriarcado. A história das mulheres com o futebol é de disputa política. Mas, então, o que nos move atualmente?

Para começar a responder essa questão, entrevistei duas torcedoras do São José Esporte Clube (SJEC), time que foi da elite do futebol paulista nos anos oitenta e noventa, mas que desde então foi rebaixado até chegar à segunda divisão do Campeonato Paulista, menor nível da competição. Por outro lado, o clube deslanchou com o futebol de mulheres a partir de 2010. Com três libertadores (2011, 2012 e 2015) e um mundial (2014), as pelejas desse time tiveram grandes nomes em campo, como Formiga, Poliana, Andressa Alves e Cristiane. Nossas torcedoras em questão, compõem a torcida com mais tempo de atuação nas arquibancadas do SJEC, a Mancha Azul, fundada em 1987.

Mancha Azul
Foto: Reprodução Facebook

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Ana

Ana Camila
Jogo entre SJEC e Manthiqueira, pela semifinal do Campeonato Paulista da segunda divisão em 13 de dezembro de 2020. Foto: Acervo pessoal de Ana Camila.

Ana Camila é de São José dos Campos e tem 20 anos. Gosta de futebol desde criança e torcia para o São Paulo. Em setembro de 2018, uma amiga a levou para o estádio Martins Pereira. Gostou da energia da torcida “é outra coisa, é inexplicável, fico arrepiada no meio da torcida”. Antes, considerava que torcida organizada era relacionada ao uso de álcool e drogas. Entretanto, ao acompanhar a luta dos torcedores para ajudar o time a subir de divisão, se apaixonou pelo SJEC.

Seu contato inicial aconteceu com a Mancha Azul, mas foi numa caravana para Ribeirão Preto, quando o time teve uma oportunidade de acesso para a série C do Campeonato Paulista e perdeu, que ela decidiu ingressar na torcida organizada.

“Meu, foi um negócio inexplicável, a gente tava lá ganhando, nos últimos minutos os caras empataram e aí a gente não conseguiu ter o acesso. Eu via aquelas pessoas todas chorando, um desespero e eu falava ‘meu, olha isso, é amor pelo time mesmo!’, então, eu quero isso pra mim”.

Ana Camila
Jogo entre SJEC e Manthiqueira, pela semifinal do Campeonato Paulista da segunda divisão em 13 de dezembro de 2020. Foto: Acervo pessoal de Ana Camila.

Os amigos de sua idade não têm interesse pelo futebol local, todos optam por torcer para times grandes. As pessoas próximas de Ana que frequentam a torcida, desenvolvem maior interesse “porque a gente ali é uma família, então todo mundo de fora que vê gosta né?”, não é pelo futebol do SJEC.

As mulheres são muito respeitadas na torcida. Todavia, pessoas de fora do universo futebolístico as julgam como “Maria chuteira” ou que só vão por conta de “macho”.

Mesmo com todas as dificuldades do clube, o que a prendeu na torcida foi o amor, pois se apaixonou pelo time. Avalia que a dificuldade de o clube não ter uma maior adesão o SJEC estar em uma divisão tão baixa, pois “fora o amor, acho que não tem o que prender a pessoa num time numa divisão tão baixa”.

 

 

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Samilla

Samilla Morais tem 25 anos. Ela e sua família são de Pernambuco e moram em São José dos Campos há 13 anos. Jogou futsal e futebol de campo até os 18 anos, quando sua carreira foi interrompida por um derrame no joelho.  

Em 2009, aos 14 anos, acompanhou os jogos do Campeonato Paulista de Futebol Feminino. Sua mãe era contra ela ver os jogos do time masculino. Até que, escondida, viu uma partida do futebol masculino na série A2 do Campeonato Paulista: São José e Grêmio Catanduvense.

“Aí eu entrei e a Mancha Azul veio em seguida cantando ‘abre passagem que o terror chegou’. O pessoal que tava na arquibancada abriam o meio pra galera entrar e descer. Já chamou minha atenção aquilo. Fui lá na Mancha Azul junto com ela e eu sentei na mureta de costas pro jogo, de frente pra Mancha Azul, fiquei assistindo a festa, não assisti ao jogo. Aí aquilo já me contagiou. Me apaixonei primeiro pela torcida, depois pelo time”.

Samilla Morais.
Jogo entre Comercial e SJEC, pela semifinal do Campeonato Paulista da Segunda Divisão em 14 de outubro de 2018. Foto: Acervo pessoal de Samilla Morais.

Em relação ao preconceito por ser mulher, “teve um pouquinho, sempre tem, tudo que mulher faz tem, infelizmente!”. Quando começou a tocar na bateria, ouviu que isso era para homem, que ela seria “sapatão” por estar naquele espaço. Decidiu convidar mais mulheres para tocar e

“o pessoal viu que podia. Antigamente, acho que o pessoal tinha esse medo do preconceito mesmo, né? Então, eu meio que abri as portas para as meninas começarem a tocar na bateria. Eu chegava no jogo e tava tocando e aí a pessoa falava ‘você tá cansada? Quer dar pra um menino tocar?’, falei ‘não, gente, se eu não tivesse a capacidade, eu não tocava, eu não quero que vocês venham me perguntar’. Fazia bolha, descascava a minha mão, eu não reclamava de nada, sabe?”.

Samilla Morais.
Jogo entre Comercial e SJEC, pela semifinal do Campeonato Paulista da Segunda Divisão em 14 de outubro de 2018. Foto: Acervo pessoal de Samilla Morais.

Apesar de alguns torcedores considerarem “feio” o futebol das mulheres, na vida interna da torcida, Samila “compra a briga” do time feminino. Considera que há vários jogos das mulheres mais bem jogados que jogos masculinos da série A, “só que as pessoas têm na cabeça que é feio e nem quer assistir”. Então, ela ficou responsável pela tabela dos jogos do feminino, por organizar caravanas e confeccionar faixas.

“Como eu já joguei, eu vejo como é a luta, como é difícil conseguir investimento. A gente ganhou tudo, então tem que ter muito respeito pelo futebol feminino de São José. Os próprios adversários têm, a gente tem que ter também. Tem que apoiar, tem que lutar, tem que estar junto com elas porque não é fácil”.

Para ela, o que prende os torcedores ao SJEC “é o amor indescritível pelo time, que independente da situação em que se encontre, nós não desistimos jamais”. Mesmo ciente de que existem pessoas que estão acostumadas a torcer apenas em momentos bons, “o amor nos move, nos faz fazer loucuras pelo time”. Com o time na última divisão do Campeonato Paulista,

“ficaram aqueles que realmente tem um sentimento fantástico e muito fanatismo, esses que não desistiram nesse momento difícil, jamais abandonarão a equipe, lutaremos sempre juntos no mesmo ideal, que é ver o São José trilhar caminhos vitoriosos, mas independente de conquistas ou não, sempre estaremos com o São José”.

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A torcida é um lugar construção da identidade, formadora dos sujeitos que compõem a agremiação com suas respectivas formas de socialização e lazer. Ana desenvolveu interesse pelo clube se aproximando dos torcedores, sobretudo, ao presenciar as derrotas e se encantar com a garra e perseverança da Mancha Azul. Já Samilla, foi envolvida pelo futebol das mulheres, mas decidiu seu projeto de vida torcedora, principalmente, após presenciar a festa de sua torcida nas arquibancadas. Já para mim, foi pelo vínculo do meu pai com futebol, que fez questão de passar esse amor. Torcer para um time é uma ação essencialmente coletiva: não acaba em um sujeito, somos milhões que cantam e vibram a cada chute.

As mulheres, cada vez mais, compõem esse espaço. Nas ciências sociais, vivemos um momento propício para efetuar riquíssimas compreensões de nosso tempo. Temos a tarefa de compreender o senso, aquilo que as práticas significam em seus princípios que organizam a vida coletiva, e o significado das relações sociais concretas, além de colher suas contradições, paradoxos e ambivalências.

Longe de colocar um ponto final na representação que elas fazem de si mesmas e no papel social que as mulheres cumprem atualmente nas torcidas, a mulher, enquanto “ser que torce” (COSTA, 2007, p. 22), tem se tornado cada vez mais comum. As mulheres irão às arquibancadas, ocuparão postos da direção do clube, serão jogadoras e árbitras. Nunca foi fácil, mas a história nos fez forte, é isso que nos move. Para nós, não basta o amor ao esporte mais popular do mundo, é necessário ter coragem de construir um futuro mais igualitário, é político.

Por fim, tomo liberdade de mudar um trecho de “Futebol ao Sol e Sombra”, de Eduardo Galeano, para uma torcedora:

É rara a torcedora que diz: “Meu time joga hoje”. Sempre diz: “Nós jogamos hoje”. Esta jogadora número doze sabe muito bem que é ela quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.

Para além de março: discutir sobre mulheres e futebol, é falar sobre ousadia em mudar os rumos da história. O que nos move é a ação política, a persistência e a força. Entre proibições e preconceitos, fizemos e somos parte de uma trajetória escrita a muitas mãos e pés!

 

Referências

COSTA, Leda Maria da. Marias-chuteiras X “Torcedoras Autênticas” Identidade Feminina e Futebol. XII Encontro Regional de História. Anpuh Rio de Janeiro. 2006.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.19, n.2, p.143-51, abr./jun. 2005.

STAHLBERG, Lara Tejada. Jogando em vários campos: torcedoras, futebol e gênero. In: Visão de Jogo: antropologia das práticas esportivas. Luiz Henrique de Toledo e Carlos Eduardo Costa (orgs). Editora Terceiro Nome. São Paulo, 2009.


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Camila Souza Lima

Palmeirense, Cientista Social e mestranda em História, Política e Bens Culturais (CPDOC/FGV). Faz parte do Grupo de Estudos e Pesquisa Aplicados ao Futebol (GEPAF/UFG) e do Laboratório de Estudos do Esporte (LESP/FGV).

Como citar

LIMA, Camila Souza. O que move as torcedoras?. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 38, 2021.
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